HISTORIA DA LITERATURA BRASILEIRA - 1870 A 1920

Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 7 de junho de 1950

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SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Diante do volume com que a sra. Lucia Miguel Pereira acaba de enriquecer os estudos de historia literaria do Brasil (Historia da Literatura Brasileira, soba direção de Alvaro Lins. Volume XII Prosa de Ficção. De 1870 a 1920, por Lucia Miguel Pereira, Livraria José Olimpio Editora, Rio de Janeiro, 1950), impõe-se, quase ao primeiro relance, uma consideração metodológica. A quem encare a historia da literatura como simples provincia das disciplinas historicas tomadas em seu conjunto e pretenda aplicar-lhes rigorosamente os padrões impostos para essas disciplinas, poderá parecer insuficiente a atenção dedicada pela autora a romancistas e contistas menores (no sentido mais literal, não o consagrado pela expressão "poetas menores") em confronto com o interesse minucioso e prolongado que lhe merecem nomes conspicuos.
Aqueles são geralmente abordados e despedidos em poucas palavras e de passagem para mais ilustres; estes é que são o objeto de todo o cuidado. De modo que cada capitulo vem a ser uma constelação de ensaios, mais ou menos independentes, precedida do panorama sumario, que serve principalmente para justificar seu agrupamento, segundo as tendencias dominantes em cada autor. O metodo há de parecer plausível e, no caso, talvez o unico verdadeiramente plausivel, enquanto não se recorra ao simile daqueles historiadores, que só tinham olhos para os grandes feitos politicos e guerreiros, ou para os heróis que os encarnaram. Pois não parece certo que, desdenhando a germinação, o movimento, o crescimento, a continuidade das formas, em favor do fruto maduro, se arriscavam aqueles historiadores a abranger um aspecto quando muito parcial dos fatos que pretendiam estudar?
Sucede, entretanto, que o simile se aplica mal ao caso presente. Em primeiro lugar, porque, o Brasil intelectual era, e ainda é, filho de outro continente. Lá, não aqui, se preparavam os produtos que nos vinham acabados, sem que nos fosse dado acompanhar perfeitamente as etapas da elaboração. O historiador que não quisesse ampliar desmedidamente seu campo de estudo poderia, até certo ponto, desprezar certas criações indigenas mais toscas, que não eram intermediarias para as outras, as maiores, mas quase sempre adaptações malogradas de algum modelo peregrino.
Alem dessa justificativa, de natureza historica, ainda caberá invocar a circustancia especial de se tratar de uma historia literaria. E a historia literaria deve ser inseperavel da visão estetica. A par da genese das grandes obras da literatura, das influencias que as condicionam, do clima espiritual que tornou possivel sua eclosão, há o fenomeno, irredutivel a qualquer consideração estritamente genetica, que certos autores puderam denominar, com alguma solenidade, de o milagre da criação estetica. Isto é em termos um pouco mais pedestres, a relativa independencia das obras de arte, dignas desse nome, com relação aos antecessores, aos contemporaneos e —pois que em sua essencia são unicas e inimitaveis— aos sucessores. É claro que essa unicidade só existe em estado de pureza no reino das abstrações, e tão limitado será o relativismo historico, que vê tudo num contínuo processar-se quanto essa especie de absolutismo estetico —apenas capaz de contemplar as quinta-essenciais sublimes e imutaveis— que, levado às consequencias ultimas, redundará em concepções tais como a do poeta Ezra Pound, para quem a historia da arte é "a das obras primas, não a dos malogros ou a da mediocridade".
O resultado está em que, assim como a critica não pode prescindir verdadeiramente do horizonte historico, também a historia literaria não subsistirá sem a perspectiva estetica. Se em seu livro a sra. Lucia Miguel Pereira pôde sacrificar um pouco os malogros e mediocridades a escritos e autores significativos, chegando a dizer, na introdução, que deixa de tratar de certas peças de teatro porque nenhuma substitui e "nem merece ser exumada", não é por falta de senso historico, mas por uma noção justa do carater sui generis da historia propriamente literaria.
A sua não procura ser erudita e exaustiva, porem critica e compreensiva. E se em alguns casos a visão historica toma francamente a dianteira, nem sempre, creio eu, com muita felicidade —como onde tende a inscrever a obra de Machado de Assis numa especie de linha evolutiva de que seria o ponto culminante, correspondendo a uma suposta maturidade de nosso meio social— isso não perturba em nada a agudeza de visão do critico.
Precisamente neste capitulo sobre Machado existem algumas paginas que eu ousaria situar, sem nenhuma hesitação, entre as maiores que já produziu a critica literaria entre nós. Nem por ter escrito anteriormente todo um livro sobre o mesmo tema, a autora rediz o que dissera ou o que disseram outros. Em menos de cinquenta paginas, temos um quadro exemplar, onde nada de essencial foi olvidado e nada de superfluo foi acrescentado. No entanto algumas breves observações feitas de passagem e sem timbre de novidades, bastam para enriquecer nosso conhecimento e nossa compreensão da arte de Machado de Assis. As observações, por exemplo, sobre a natureza, acumpliciada com os atos humanos. Ou sobre a visão relativista das coisas. Ou sobre a "alma exterior" e as sensações compensadoras, finalmente ilustradas com a teoria a que Brás Cubas batizou de equivalencia das janelas. Ou ainda, e principalmente, sobre essa forma caracteristica em Machado, de desdobramento do observador, ora misturando-se com as personagens, ora separando-se e distanciando-se delas.
Seria talvez licito tentar associar ainda esta ultima forma àquela atitude perspectiva, que um grande critico de nossos dias (Leo Spitzer) pôde discenir excelentemente em Cervantes, e que servindo para isolar o criador de sua criatura é uma afirmação pessoal bem definida, sendo ao mesmo tempo uma proclamação de independencia do artista. Por esse desdobramento de personalidade do observador, que é, em verdade, o contrario da desintegração ou dissolução da personalidade tão tipica de certos autores modernos —de um Proust, um Joyce, um Pirandello, uma Virginia Woof— Machado estaria situado nos antipodas de tais autores.
Não sei se a sra. Lucila Miguel Pereira admitiria de bom grado essa esplendida inatualidade de nosso romancista. Se ao menor neste livro ela não acentua —como o fizeram alguns outros criticos— seu modernismo, no sentido restrito e recente da palavra a verdade é que se esforça por associa-lo de algum modo, aos romancistas e a sociedade de sua epoca, e nisto se revela antes o historiador do que o critico. Mas as pontes que laboriosamente erigiu servem-lhe para denunciar, com notavel penetração critica, o erro de uma concepção do romance que Machado teria ultrapassado onde a observação só se insinua (pg. 30) pela tangente do pitoresco e que parece ser até hoje uma constante ou ao menos uma intermitencia assidua em nossa novelistica.
Essa penetração há de amparar-se, sem duvida, para existir em algum sistema tacito de referencias, que não precisa estar formulada nem reduzir-se a um corpo de doutrina estreito e dogmatico. Nele se situaria, por exemplo, a convicção de que aquela busca do pitoresco pelo pitoresco, só pode gerar formas inferiores e imaturas de arte. E deve situar-se ainda a idéia relacionada à mesma convicção, de que o humano há de sobrepor-se ao nacional, ao regional, mesmo ao social. Certamente essa idéia pode desgarrar-se para a superstição de que o social repugna a verdadeira arte e de que esta há de erigir-se em torre de marfim e refugio contra a vida, quando a verdade é que em toda a criação artistica existe uma "impureza vital" (pg. 234) que não se ajusta sequer ao gosto exagerado da composição. Por outro lado, não cabe contra os que assim sobre-estimam a arte, aceitar a atitude dos que vêem no romance, por exemplo, o deleite de um espirito tranquilo —o caso dos autores tratados no capítulo que, segundo uma frase conhecida de um deles, Afranio Peixoto se intitula "Sorriso da Sociedade". É que, existindo um "dom total" (pg. 235) a arte não pode ser simples jogo ou distração como parece aos diletantes e aos timorados. E enlaçando-se à vida tambem não é por isso copia servil da realidade (pg. 199), uma vez que há de ter sua coerencia propria. De modo que a incapacidade de superar a realidade tangivel e prolongar a observação pelo senso poetico (pg. 153), é quase sempre indicio de impotencia. Impotencia de que geralmente padeceram os nossos naturalistas, ao menos um dos mais ilustres dentre eles: Aluízio Azevedo.
Idéias nítidas e despretensiosas, que se podem rastrear através das paginas deste livro e que formam como seu esqueleto invisível. Sendo penhor da acuidade critica da autora, elas fazem com que esta Historia não seja, ou não seja apenas, uma narração exaustiva de fatos remotos sem relação clara com a vida atual. E sendo uma "Historia" vem a ser a par disso uma constante advetencia para os nossos dias, realizando, nisto a grande missão dos estudos historicos, segundo a sabia concepção goethiana, ou seja, servir ao presente e ao futuro, emancipando do passado
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