SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
Diante
do volume com que a sra. Lucia Miguel Pereira acaba de enriquecer
os estudos de historia literaria do Brasil (Historia da Literatura
Brasileira, soba direção de Alvaro Lins. Volume XII
Prosa de Ficção. De 1870 a 1920, por Lucia Miguel
Pereira, Livraria José Olimpio Editora, Rio de Janeiro, 1950),
impõe-se, quase ao primeiro relance, uma consideração
metodológica. A quem encare a historia da literatura como
simples provincia das disciplinas historicas tomadas em seu conjunto
e pretenda aplicar-lhes rigorosamente os padrões impostos
para essas disciplinas, poderá parecer insuficiente a atenção
dedicada pela autora a romancistas e contistas menores (no sentido
mais literal, não o consagrado pela expressão "poetas
menores") em confronto com o interesse minucioso e prolongado
que lhe merecem nomes conspicuos.
Aqueles são geralmente abordados e despedidos em poucas palavras
e de passagem para mais ilustres; estes é que são
o objeto de todo o cuidado. De modo que cada capitulo vem a ser
uma constelação de ensaios, mais ou menos independentes,
precedida do panorama sumario, que serve principalmente para justificar
seu agrupamento, segundo as tendencias dominantes em cada autor.
O metodo há de parecer plausível e, no caso, talvez
o unico verdadeiramente plausivel, enquanto não se recorra
ao simile daqueles historiadores, que só tinham olhos para
os grandes feitos politicos e guerreiros, ou para os heróis
que os encarnaram. Pois não parece certo que, desdenhando
a germinação, o movimento, o crescimento, a continuidade
das formas, em favor do fruto maduro, se arriscavam aqueles historiadores
a abranger um aspecto quando muito parcial dos fatos que pretendiam
estudar?
Sucede, entretanto, que o simile se aplica mal ao caso presente.
Em primeiro lugar, porque, o Brasil intelectual era, e ainda é,
filho de outro continente. Lá, não aqui, se preparavam
os produtos que nos vinham acabados, sem que nos fosse dado acompanhar
perfeitamente as etapas da elaboração. O historiador
que não quisesse ampliar desmedidamente seu campo de estudo
poderia, até certo ponto, desprezar certas criações
indigenas mais toscas, que não eram intermediarias para as
outras, as maiores, mas quase sempre adaptações malogradas
de algum modelo peregrino.
Alem dessa justificativa, de natureza historica, ainda caberá
invocar a circustancia especial de se tratar de uma historia literaria.
E a historia literaria deve ser inseperavel da visão estetica.
A par da genese das grandes obras da literatura, das influencias
que as condicionam, do clima espiritual que tornou possivel sua
eclosão, há o fenomeno, irredutivel a qualquer consideração
estritamente genetica, que certos autores puderam denominar, com
alguma solenidade, de o milagre da criação estetica.
Isto é em termos um pouco mais pedestres, a relativa independencia
das obras de arte, dignas desse nome, com relação
aos antecessores, aos contemporaneos e pois que em sua essencia
são unicas e inimitaveis aos sucessores. É claro
que essa unicidade só existe em estado de pureza no reino
das abstrações, e tão limitado será
o relativismo historico, que vê tudo num contínuo processar-se
quanto essa especie de absolutismo estetico apenas capaz de
contemplar as quinta-essenciais sublimes e imutaveis que,
levado às consequencias ultimas, redundará em concepções
tais como a do poeta Ezra Pound, para quem a historia da arte é
"a das obras primas, não a dos malogros ou a da mediocridade".
O resultado está em que, assim como a critica não
pode prescindir verdadeiramente do horizonte historico, também
a historia literaria não subsistirá sem a perspectiva
estetica. Se em seu livro a sra. Lucia Miguel Pereira pôde
sacrificar um pouco os malogros e mediocridades a escritos e autores
significativos, chegando a dizer, na introdução, que
deixa de tratar de certas peças de teatro porque nenhuma
substitui e "nem merece ser exumada", não é
por falta de senso historico, mas por uma noção justa
do carater sui generis da historia propriamente literaria.
A sua não procura ser erudita e exaustiva, porem critica
e compreensiva. E se em alguns casos a visão historica toma
francamente a dianteira, nem sempre, creio eu, com muita felicidade
como onde tende a inscrever a obra de Machado de Assis numa
especie de linha evolutiva de que seria o ponto culminante, correspondendo
a uma suposta maturidade de nosso meio social isso não
perturba em nada a agudeza de visão do critico.
Precisamente neste capitulo sobre Machado existem algumas paginas
que eu ousaria situar, sem nenhuma hesitação, entre
as maiores que já produziu a critica literaria entre nós.
Nem por ter escrito anteriormente todo um livro sobre o mesmo tema,
a autora rediz o que dissera ou o que disseram outros. Em menos
de cinquenta paginas, temos um quadro exemplar, onde nada de essencial
foi olvidado e nada de superfluo foi acrescentado. No entanto algumas
breves observações feitas de passagem e sem timbre
de novidades, bastam para enriquecer nosso conhecimento e nossa
compreensão da arte de Machado de Assis. As observações,
por exemplo, sobre a natureza, acumpliciada com os atos humanos.
Ou sobre a visão relativista das coisas. Ou sobre a "alma
exterior" e as sensações compensadoras, finalmente
ilustradas com a teoria a que Brás Cubas batizou de equivalencia
das janelas. Ou ainda, e principalmente, sobre essa forma caracteristica
em Machado, de desdobramento do observador, ora misturando-se com
as personagens, ora separando-se e distanciando-se delas.
Seria talvez licito tentar associar ainda esta ultima forma àquela
atitude perspectiva, que um grande critico de nossos dias (Leo Spitzer)
pôde discenir excelentemente em Cervantes, e que servindo
para isolar o criador de sua criatura é uma afirmação
pessoal bem definida, sendo ao mesmo tempo uma proclamação
de independencia do artista. Por esse desdobramento de personalidade
do observador, que é, em verdade, o contrario da desintegração
ou dissolução da personalidade tão tipica de
certos autores modernos de um Proust, um Joyce, um Pirandello,
uma Virginia Woof Machado estaria situado nos antipodas de
tais autores.
Não sei se a sra. Lucila Miguel Pereira admitiria de bom
grado essa esplendida inatualidade de nosso romancista. Se ao menor
neste livro ela não acentua como o fizeram alguns outros
criticos seu modernismo, no sentido restrito e recente da
palavra a verdade é que se esforça por associa-lo
de algum modo, aos romancistas e a sociedade de sua epoca, e nisto
se revela antes o historiador do que o critico. Mas as pontes que
laboriosamente erigiu servem-lhe para denunciar, com notavel penetração
critica, o erro de uma concepção do romance que Machado
teria ultrapassado onde a observação só se
insinua (pg. 30) pela tangente do pitoresco e que parece ser até
hoje uma constante ou ao menos uma intermitencia assidua em nossa
novelistica.
Essa penetração há de amparar-se, sem duvida,
para existir em algum sistema tacito de referencias, que não
precisa estar formulada nem reduzir-se a um corpo de doutrina estreito
e dogmatico. Nele se situaria, por exemplo, a convicção
de que aquela busca do pitoresco pelo pitoresco, só pode
gerar formas inferiores e imaturas de arte. E deve situar-se ainda
a idéia relacionada à mesma convicção,
de que o humano há de sobrepor-se ao nacional, ao regional,
mesmo ao social. Certamente essa idéia pode desgarrar-se
para a superstição de que o social repugna a verdadeira
arte e de que esta há de erigir-se em torre de marfim e refugio
contra a vida, quando a verdade é que em toda a criação
artistica existe uma "impureza vital" (pg. 234) que não
se ajusta sequer ao gosto exagerado da composição.
Por outro lado, não cabe contra os que assim sobre-estimam
a arte, aceitar a atitude dos que vêem no romance, por exemplo,
o deleite de um espirito tranquilo o caso dos autores tratados
no capítulo que, segundo uma frase conhecida de um deles,
Afranio Peixoto se intitula "Sorriso da Sociedade". É
que, existindo um "dom total" (pg. 235) a arte não
pode ser simples jogo ou distração como parece aos
diletantes e aos timorados. E enlaçando-se à vida
tambem não é por isso copia servil da realidade (pg.
199), uma vez que há de ter sua coerencia propria. De modo
que a incapacidade de superar a realidade tangivel e prolongar a
observação pelo senso poetico (pg. 153), é
quase sempre indicio de impotencia. Impotencia de que geralmente
padeceram os nossos naturalistas, ao menos um dos mais ilustres
dentre eles: Aluízio Azevedo.
Idéias nítidas e despretensiosas, que se podem rastrear
através das paginas deste livro e que formam como seu esqueleto
invisível. Sendo penhor da acuidade critica da autora, elas
fazem com que esta Historia não seja, ou não seja
apenas, uma narração exaustiva de fatos remotos sem
relação clara com a vida atual. E sendo uma "Historia"
vem a ser a par disso uma constante advetencia para os nossos dias,
realizando, nisto a grande missão dos estudos historicos,
segundo a sabia concepção goethiana, ou seja, servir
ao presente e ao futuro, emancipando do passado.
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