SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
A
bibliografia brasileira sobre Franz Kafka ainda está longe de corresponder
ao extenso interesse e à influencia crescente que seus escritos
não cessam de provocar entre nós nestes ultimos anos. No momento
só consigo lembrar-me, entre os trabalhos escritos em lingua portuguesa
sobre o autor de O Processo, dos dois ou três artigos que, em epocas
diferentes, lhe consagrou o sr. Otto Maria Carpeaux - um deles incluido
no volume A Cinza do Purgatorio.
A
verdade, no entanto, é que as idéias desenvolvidas nesses artigos
nasceram e cresceram longe do Brasil, a um tempo em que a curiosidade
suscitada por aquele escritor ainda não se alastrara para muito
alem dos paises da Europa Central. É significativo que um dos trabalhos
de Carpeaux publicado há quase vinte anos - bem antes, por conseguinte,
de tornar-se um dos nossos - já figure na magra resenha de fontes
impressas apenas a um ensaio interpretativo tão necessario até hoje
aos devotos de Kafka quanto o é, por exemplo, o de Léon Pierre Quint
aos admiradores de Marcel Proust ou o são, aos de Joyce, os de Gorman
e Stuart Gilbert - a longa dissertação apresentada por Herbert Tauber
à Universidade de Zurique (e também na relação bibliografica oferecida
por outro companheiro inevitavel daqueles mesmos devotos: o volume
de ensaios impressos há alguns anos, em inglês, pela New Directions
de Nova York sob o título de The Kafka Problem).
É
certamente um privilegio para a seita dos kafkianos brasileiros,
tão ardentes, em geral, posto que menos numerosa, do que a dos proustianos,
o poderem contar, para a boa inteligencia de um mestre notoriamente
dificil e esquivo, com a prestimosa assistencia de quem aprendera
a conhecê-lo quando sua figura ainda não tinha sido atingida, como
hoje, pelas deturpações da moda.
Contudo
essa moda, ou, como já se disse nos Estados Unidos, esse Kafka-Boom,
que chegou a estimular uma legião nem sempre digerivel de interpretações
contraditorias, teve ao menos a grande virtude de exigir, e tornar
possivel, a divulgação de novos documentos capazes de esclarecer
uma das criações mais singulares de nosso tempo.
Assim
é que, ainda no ano passado, puderam imprimir-se em Francoforte
sobre o Meno, quase simultaneamente com o ensaio tão sugestivo e
revelador de Günther Anders (Kafka-Pró e Contra. Monaco, 1951) as
admiraveis Conversações, recolhidas e postas em ordem por um obscuro
admirador de Kafka: Gustav Janouch. E agora, nestes ultimos meses,
tornou-se enfim possivel conhecer na integra um texto que ilumina
de modo decisivo toda a vida e a obra do escritor: sua "Carta ao
Pai" só acessivel, até aqui, através dos poucos fragmentos insertos
por Max Brod em sua conhecida biografia. As razões que por tanto
tempo tinham desaconselhado essa divulgação integral deixaram de
prevalecer - o proprio Brod explica-o no livro que serve de complemento
à biografia: Franz Kafka Glauben und Lehre - desde que desapareceram
as três irmãs de Kafka, vitimas do regime nazista.
Enquanto
não se completa a publicação dos dez ou doze volumes que hão de
formar sua obra completa, pode-se pensar que o simples conhecimento
de textos como esses servia para dar-nos de autor tão discutido
e diversamente interpretado, uma visão mais límpida.
Servirá? Na realidade a arte de Kafka desafia com insistencia os
que, afoitamente, cuidam em reduzi-la a formulações lapidares. Seu
alcance universal provem, de fato, da intensidade com que padeceu
e pôde exprimi-la, dando-lhe por isso mesmo valor simbolico, uma
experiencia singular; mas esses mesmos motivos tornaram-na irredutivel
a explicações e interpretações universalmente validas. Chegamos,
em outras, palavras, ao que só na aparencia constitui um paradoxo:
de sua singularidade depende sua universalidade; mas essa mesma
singularidade só pode fazer-se geralmente inteligivel na forma obliqua
e enigmatica de que o proprio autor se vale para manifestá-la.
De
onde o erro comum a todos os que tratam de retirar de sua obra uma
especie de filosofia, ou - como se dizia há vinte anos - uma verdadeira
"mensagem" espiritual. Se isso fosse possivel ou necessario, quem
duvidaria que ele mesmo o teria feito de preferencia a tornar-se
objeto das mais caprichosas especulações? O que ocorre com a maioria
destas é que são sugeridas pela leitura de seus escritos, mas, em
realidade não partem deles. Procedem de alusões fragmentarias e
vagas que o espirito de sistema, ampliando-se desmedidamente, converte
com frequencia em construções poderosas, coerentes em todas as suas
partes e, ao mesmo tempo, falsificadoras. Embora sugestivas, não
raro e ricas em conteudo, muitas delas pertencem ao especulador,
muito mais do que ao especulado. Não é de estranhar, por conseguinte,
se cada qual, decifrando a seu modo e segundo seu gosto, aquelas
expressões alusivas, busque alistá-lo apaixonadamente em sua propria
facção. De modo que temos hoje em Kafka um filosofo da existencia,
parente chegado de Kierkegaard e Heidegger: é talvez o que encontramos
mais insistentemente nas interpretações modernas.
Por
outro lado, entre os sobreviventes do surrealismo, o proprio André
Breton inclue-o com destaque em sua antologia do humour negro. Há
ainda o adepto da chamada "teologia da crise" ou o que conduz até
aos extremos limites certos pressupostos do jansenismo, do protestantismo,
especialmente do calvinismo, retomando e enriquecendo, em nossos
dias a tradição de Bunyan. Outros, especialmente H. J. Scheps, porfiam
em assinalar nas suas obras certos traços que provém da teologia
e da mistica judaica da Diaspora. Max Bord, por sua vez, denuncia
os que como Klossowski e em geral os tomistas franceses, procurariam
atraí-lo para o pensamento catolico. O ensaista argentino Ezequiel
Martinez Estrada, em artigo inserto em The Kafka Problem tenta filiá-lo
à velha sabedoria chinesa e acredita que o taoismo seria o unico
precedente conhecido para sua concepção do mundo. E embora certa
publicação comunista tivesse organizado um amplo inquerito intitulado
"Devemos Queimar Kafka?" não faltou, entre autores de esquerda e
mesmo marxistas - um Max Lerner, um Slochower, um Burgum - quem
acenasse para o carater intensamente problematico, senão social,
de uma arte que forneceria às novas gerações o instrumento capaz
de quebrar o mar de gelo abrigado em seu intimo.
É
significativo que o autor de um artigo para o Quartly Journal of
Literature onde se criticam de modo bastante plausivel os exegetas
"cabalistas" de Kafka, o critico Charles Neider se viu envolvido,
por sua vez, numa nova e poderosa "cabala" - a da psicanalise -
logo que expandiu seu trabalho no livro sugestivamente intitulado
The Fronzen Sea (Nova York, 1948). A suspeita de que Kafka teria
a obsessão da psicanalise e dos simbolos freudianos, "deliberadamente"
introduzidos em seus escritos, suspeita de todo gratuita, e que
a leitura dos Diarios, só agora publicados na integra, está longe
de autorizar, conduzui-o incidentalmente a esse tipo de investigações.
No caso de outro norte-americano, de Paul Goodman - autor de Kafka's
Prayer, Nova York, 1947 - a psicanalise é, ao contrario, não só
um ponto de partida mas um metodo consistente segundo ao longo de
quase trezentas paginas. E não são, esses, senão alguns dos exemplos
mais significativos dos extremos a que, especialmente em terras
de lingua inglesa, têm podido chegar, a respeito, a critica dos
psicanalistas. É preciso admitir, no entanto, que a obscuridade
da expressão representa neste caso quase um convite a esse tipo
de inquirições. E em realidade o "cabalismo" dos interpretes de
Kafka parece ter começado com o primeiro deles, seu amigo dileto
e responsavel pela publicação postuma de seus escritos. Que um autor
pode ser inconscientemente atraiçoado pelos que lhe estiveram mais
proximos, tanto quanto o seria por estranhos, não há nisto nada
de novo. O intenso convivio das ideias alheias inclina-nos, com
frequencia, a associá-las às proprias e o pensamento longamente
solidario pede, ao cabo, certo grau de reciprocidade. O caso de
Elisabeth Forster Nietzsche erigindo seu irmão, contra as evidencias
cada vez mais tangiveis, num anti-semita rancoroso e até numa especie
de hitlerista avant la lettre, é apenas um dos mais recentes e instrutivos.
Não seria tambem um pouco, o caso de Max Brod, quando insiste por
sua vez em frisar na obra de Kafka a parte do judaismo e especialmente
do sionismo?
É
caracteristico que essa insistencia parece fortalecer-se na medida
em que uma carga emotiva maior vai pesar sobre as proprias convicções
sionistas de Brod. Menos sensivel na biografia de 1937 ela é manifesta
no romance O Reino Encantado do Amor, onde a lembrança de Kafka
irá animar a figura do personagem Garta. Mas ainda aqui o que havia
de menos definido na religiosidade e nos ideias de Garta-Kafka irá
dissipar-se por completo na figura do irmão imaginario que lhe sobrevive:
Eric Samuel retoma o pensamento do morto para completá-lo num sentido
positivo, quer dizer, mais fiel às convicções do proprio romancista.
Já em seu mais recente trabalho interpretativo e este francamente
polemico, Brod vai quase ao ponto de transformar Franz Kafka em
um novo profeta de Israel.
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