Entre os nomes de autores europeus ou americanos que, ao lado de
um Fernando Pessoa, por exemplo, ou de um Rilke, ou de um Valery,
vêm merecendo a decidida preferencia das gerações
ascendentes de poetas brasileiros, o de T. S. Eliot ocupa um dos
lugares privilegiados. E essa simples preferencia, ao menos no caso
de Eliot, já é, talvez, indicio seguro de um momento
novo na poesia nacional.
Não se pode dizer, é certo, que os autores citados
tenham sido desconhecidos das gerações anteriores.
Mas o fato é que se chegavam a interessar muito vivamente
a este ou àquele escritor, tratava-se de fenomenos isolados,
sem força para imprimir novo rumo às correntes dominantes.
Hoje, ao contrario, e com poucas discrepancias, eles tendem a formar
uma especie de parnaso coerente e todo-poderoso, capaz de impor
ritmo aos animos mais recalcitrantes. Alguns, é verdade que
não estimulariam, para empregar a imagem musical do sr. Ledo
Ivo, aquele amor sem jaça à quadratura finita, quer
dizer à composição menor e disciplinada, em
contraste com os versos tumultuosos e desmanchados, "que se
desdobram de si mesmos como as ondas do mar e os discursos dos comicios".
Mas então é porque lisonjeariam seu gosto, não
menos acendrado, pela expressão metaforica ou sibilina.
As novas preferencias intelectuais pareceriam, à primeira
vista, encaminhar as essas novas fidelidades. Ou será mais
verdadeira a reciproca? E, neste caso, não se daria aqui
o que tão frequentemente sucede em casos tais, que os fiéis
fabricam seus idolos à propria imagem e semelhança?
Em 1924, um dos representantes do imagismo inglês, o poeta
F. S. Flint, ao dar conta, nas paginas da revista Criterion, de
Londres, do aparecimento, entre nós, de Estetica, então
um dos orgãos do movimento modernista no Brasil, não
deixava de exprimir sua surpresa ante o realce que na publicação
sul-americana já se dava a uma serie de autores britanicos
ainda quase desconhecidos em sua terra de origem. Dessa serie constava
o nome de Eliot, então diretor da propria Criterion, e autor
de um longo poema - The Waste Land - que, publicado dois anos antes,
atraira a atenção de alguns circulos de vanguarda
na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Deve-se confessar, todavia, que o interesse então suscitado
entre escritores brasileiros pela obra de Eliot não passou
de uma curiosidade limitada e, às vezes, creio que pouco
simpatica. Estava-se muito perto da descendencia direta de Rimbaud
ou da descendencia de Whitman - de um Apollinaire, de um Max Jacob,
de um Cendrard, de um Cocteau, de certos italianos como Seffici
ou Palazzeschi - para dar grande atenção a representantes
do incipiente movimento anglo-saxão, que não se cansava
de proclamar sua divida a Corbiere ou a Laforgue. Depois, tivemos
a invasão surrealista que, se não nos submergiu de
todo, deixou marca em muitos autores, entre os mais representativos
do tempo.
Hoje, volta-se a descobrir no Brasil o autor do The Waste Land,
mas já não se trata de simples complacencia distraida.
E, ainda desta vez, o fato encontrou quem o registrasse entre os
que, longe do Brasil, se ocupam de coisas brasileiras. Escrevendo
há poucos meses para a "Hudson Review" de Nova
York, o jovem historiador e critico Richard M. Morse observou, quase
sem exagero, que os nossos escritores só tomaram conhecimento
da obra de Eliot há oito ou dez anos, embora empreendam agora
"valentes esforços" para assimilá-la.
Refere-se, de passagem, à Revista Brasileira de Poesia, de
São Paulo, e não deixa de acrescentar que, por mais
de um motivo, a ação daquele poeta aqui não
teve o significado que assumiu há quase três decenios
em terras de lingua inglesa. "Em primeiro lugar - escreve -
os criterios e a psicologia do Brasil, por volta de 1940 e, agora,
de 50, não se comparam aos dos Estados Unidos do decenio
de 20. Depois, Eliot chega ao Brasil, não como um fenomeno
pessoal extraordinario, mas como respeitavel instituição,
assistida por uma numerosa literatura critica e explanatoria".
O autor poderia expor as razões e as inevitaveis defassagens
que caracterizam essa aparente influencia se dissesse que o prestigio
atual de Eliot e de alguns outros poetas de lingua inglesa no Brasil
é teoricamente explicavel pelo prestigio do gosto "classico"
entre nossas novas gerações, contraposto ao "romantismo"
dos homens de 22. O tradicionalismo politico, religioso - high church
- e em certos pontos até literario de um Eliot e de um Pound,
tradicionalismo que o coronel Lawrence, em uma das suas cartas,
compara finamente ao afã do "homem neve", em busca
de antepassados ilustres (Eliot e Pound são americanos do
Middle West), concordam bem com esse gesto.
Na pratica, entretanto, a distancia não poderia ser maior.
O "equilibrio" classico, se assim se pode dizer, daqueles
poetas, é um equilibrio de contrarios, uma harmonia entre
o espiritual e o material, entre o grandioso e o grotesco, entre
a paixão e a ironia, entre o poetico e o prosaico. Nos nossos
autores novos, semelhante equilibrio é inexistente e, em
realidade, desnecessario, uma vez que eles buscam, com raras exceções,
expurgar de suas criações, o ironico e o prosaico.
Por esse aspecto é inevitavel tentar discernir na admiração
que tantos professam pela estetica eliotiana algum misterioso mal-entendido.
Seu "classicismo" compara-se precisamente ao que, segundo
aquela estetica, não passa, em verdade, de romantismo, que
seria justamente a incapacidade de tolerar qualquer entrelaçamento
de emoções contrastante e de admitir que o prosaico,
em muitos casos, pode intensificar o poetico. É certo que
sua atitude os aproxima do outro e veneravel classicismo, o da querela
dos antigos e modernos, ao tempo em que se discutia com seriedade
sobre se determinados temas, determinados motivos, determinadas
palavras, têm cabimento na linguagem alevantada de poesia.
A esse respeito, é bem significativo, por exemplo, que um
dos guias do nosso pós-modernismo, tradutor, ele proprio,
de Eliot, o sr. Domingos Carvalho da Silva, tenha lastimado, não
há muito, que um dos nossos poetas ousasse escrever "fruta"
em vez de "fruto", que lhe parece tão mais poetico.
E que não titubeasse em dizer "cachorro", quando
temos a palavra "cão", capaz de suscitar tão
velhas e nobres evocações. Estou certo de que, embora
preferindo notoriamente os gatos, Eliot não deixaria de usar
o equivalente de "cachorro", caso oferecesse, em inglês,
a mesma conotação prosaica que envolve entre nós.
Em alguns casos, o apego ao decorativo convencional torna-se hoje
inteligivel como reação contra a especie de jornalismo
poetico em que tantas vezes descairam os epigonos da geração
precedentes. Contudo, a opção pelos ritmos estereotipados,
pelas expressões convencionalizadas, só pode satisfazer
os gestos faceis ou as imaginações preguiçosas.
E não deixa de ser um paradoxo dos mais curiosos, que, hoje,
seus adeptos se recrutem de preferencia entre aqueles mesmos que
reclamam com insopitavel energia um novo artesanato poetico. A superação
efetiva do modernismo não estará certamente em opor-se
convenções pré ou contra-revolucionarias a
convenções revolucionarias. Que um superação
é possivel, prova-o admiravelmente o ultimo livro de poesia
do sr. João Cabral de Melo Neto. E, para lembrar apenas mais
um caso, prova-o tambem, em plano bem diferente, uma obra como O
Carrossel do sr. Decio Pignatari, que ao lado do Auto do Possesso,
do sr. Haroldo Campos, foi a mais surpreendente revelação
dos Cadernos do Clube de Poesia de São Paulo. Esses dois
exemplos mostram o chamado pós-modernismo em sua fase realmente
afirmativa, e não na simples atitude de reação,
que é, em suma, uma atitude de dependencia.
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