GUERRA DENTRO DO BECO
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Publicado
na Folha da Manhã, quinta-feira, 03 de maio de 1951
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Sergio Buarque de Holanda
A proposito da obra poetica do sr. Jorge de Lima, objeto de comentario
anterior, tive ocasião de assinalar como, revelando na aparencia
uma virtuosidade quase sem par em nossa literatura atual, apresenta,
no entanto, vista em seu conjunto, apreciavel coerencia.
É possivel supor, a um contacto superficial, que seu "Livro
de Sonetos", impresso primeiramente em 1949, realize um compromisso
com os ideais formalisticos que presidiram à composição
dos XIV alexandrinos, publicados em 1914. Todavia, parece mais exato
pensar que o "formalismo", se assim se deve dizer, das poesias
recentes, é fruto de uma conquista que teria como ponto de
partida o "informe" das canções nordestinas
e dos poemas negros. Ao passo que os alexandrinos de 1914 teriam resultado,
com todo o seu artificio externo, de uma aquiescencia meio cega à
convenção dominante. O gesto libertario, responsavel
por tantas e tão inconsequentes aventuras, converte-se, desse
modo, em etapa necessaria de um processo unico. A liberdade torna-se
condição da verdadeira e boa ordem.
Já o mesmo não se poderá dizer, com a mesma justeza,
de sua obra novelistica. Os raros romances e novelas até aqui
publicados pelo sr. Jorge de Lima fazem pensar em exercicios marginais,
exercicios de amador, que por isso não guardam entre si um
elo visivel. O elo, se realmente existe, há de ser procurado
fora delas, de preferencia, talvez, na obra poetica do autor. "Calunga"
seria, desse modo, uma especie de expressão marginal do poeta
regionalista e "modernista". Assim como "O Anjo"
traduziria sua tendencia, já notavel ao final da mesma fase,
no sentido de uma evasão da realidade para o mundo da vertigem
e do sonho.
Entretanto, toda tentativa que vise a traçar um rigoroso paralelo
entre expressões tão dissonantes e correspondentes a
solicitações espirituais tão diversas, como o
são, de um lado, a poesia, do outro a prosa de ficção,
pode levar a descaminhos perigosos. No caso presente, ela explicaria
mal a posição verdadeiramente singular que ocupa, não
só na obra deste escritor, mas ainda na literatura brasileira
atual, um livro como "Guerra Dentro do Beco" (Editora A
Noite, Rio de Janeiro, s.d.), que se publicou quase simultaneamente
com o das poesias completas.
É pouco, todavia, falar simplesmente em sua singularidade perante
a literatura brasileira de nosso tempo. Não creio que algum
dia, entre nós, se tenha chegado, tanto quanto neste livro,
a registrar o niilismo fundamental e cada vez mais inseparavel da
sociedade moderna. Aqui, a criação artistica não
chega a valer por si só e como tal, mas vai alcançar
o nivel de uma verdadeira sismografia espiritual.
Consciente dessa função, o autor não tenta sequer
dissimular, através de uma palavra final de esperança,
a definitiva aridez do espetaculo que retrata. Sua negação
parece cabal e sem apelo. Seria talvez licito evocarem, a tal proposito,
outros livros que, em nossa epoca, se propuseram pintar um mundo como
o seu, edificado sobre o vazio. Mas na propria obra mestra de Joyce,
onde tudo é pesado, calculado, medido, a ultima palavra - um
SIM maiusculo e reiterado - não nasceu provavelmente de simples
acaso. E no grande poema de T.S. Eliot, aquela chuva benfazeja do
final é como uma benção celeste que desce sobre
a terra ressequida e ermada.
No romance que nos oferece agora o sr. Jorge de Lima, fechamos a ultima
pagina diante de uma porta de hospital que abre caminho para a claridade
profana das ruas e de sua miseria. Para trás dessa porta ficara,
talvez, como num mundo de impossiveis, aquela visão da Fé
que tinha transparecido dos olhos de Bruna moribunda, ou aquela confusão
das sombras, no jardim que parece realizar por instantes, rapidos
embora, a alucinada aspiração de outro personagem em
sua cama de doente: "... é preciso incendiar os tabiques
que separam as criaturas..."
A resposta a essa aspiração não se encontra,
não poderia encontrar-se, na desolada paisagem de "Guerra
Dentro do Beco". O unico fogo capaz de incendiar os tabiques
é aquele de que nos fala uma das poesias do autor, no começo
de sua fase cristã:
E
depois, que venha o fogo do céu queimar as oferendas.
E tudo caia com os rostos na terra,
porque a poesia está muito alta,
acima de vós, mundo muito pequeno!
Por
esse lado, ao menos, o ultimo romance do sr. Jorge de Lima poderá
parecer, como os anteriores, uma criação à margem
de sua obra poetica. Desta vez, à margem da poesia que se iniciara
com "Tempo e Eternidade". Mas o carater marginal não
deve entender-se como significando, tambem aqui uma especie de distração
caprichosa. Parece inevitavel pensar que nos casos dos seus romances
anteriores de "Calunga", e sobretudo de "O Anjo"
a escolha, para veiculo de expressão, da prosa narrativa, fora
simplesmente arbitrária: por isso cabia dizer que não
passavam de novelas de amador. A forma novelistica representara uma
alternativa entre outras. Agora, no entanto, fez-se exigencia imperiosa:
o que está dito em "Guerra Dentro do Beco" não
poderia dizer-se fora moldura de um romance.
Logo às paginas iniciais, sua leitura faz pensar, é
certo, na tragedia do artista incompreendido, insatisfeito, intimamente
solitario, que uma epoca de individualismo estetico e inconformismo
social quis erigir em materia romanceavel. Mas logo verificamos que
a lição nele contida é justamente o reverso daquela
"lição do mestre" de uma das novelas de Henry
James, onde se apresenta o drama do artista a quem o casamento e a
necessidade de sustentar familia levara a comercializar sua arte.
Neste caso, o enaltecimento do artista associal, celibatario e sem
compromissos, tem seu correlativo numa estetica idealista, que procura
retificar e mesmo substituir a ação pelo extremo da
estilização, defendendo-se com o sofisma de que a arte
deveria transmitir-nos a essencia, não os acidentes da vida.
Como se essa especie de decantação ou destilação
não ficasse no polo oposto à arte do romance, que em
duas maiores expressões sempre buscou transmitir-nos, por assim
dizer, a essencia através do episodico, não à
custa dele.
No livro do sr. Jorge de Lima, muitas das paginas mais caracteristicas
não constituem, em verdade, peças de antologia. Separadas
o contexto, chegam a transpor, às vezes, as raias do macabro
folhetinesco ou as da inverossimilhança tecnica. No conjunto,
porem, sustentam-se todas de modo admiravel e ajudam, mesmo nos seus
pormenores aparentemente irrelevantes, a comunicar-nos, em sua essencia,
o drama que o autor quis registrar.
Esse drama já não é o do artista incompreendido
e orgulhoso de sua solidão, mas o do homem condenação
à esterilidade. O plano da arte deveria depender, até
certo ponto, do processo da natureza e não emancipar-se deste
no afã de ganhar vida propria. Inumeros, entre os quadros de
Júlio, "representavam o permanente movimento da fecundidade
masculina, que desejara transmitir à esposa". "Isso
ganhava certa grandeza tragica, projetando-se, como por força
propria em figuras transcendentes que deveram ser a historia de sua
ascendencia ou a delineação da prole surgindo da amada,
como Eva surgira da propria fecundidade do homem".
Em Bruna, porem, a arvore tinha crescido e não quizera dar
frutos. Esquivara-se à missão que lhe fora delegada,
de desdobrar-se "no misterio vegetal e organico", tornando-se
protagonista necessario no ritmo da criação divina.
Ao quebrar esse ritmo, para afirmar, endeusando-a, a propria autonomia
e finitude, fora como se transgredisse uma lei implacavel. O "não"
assim oposto à natureza irá abolir no homem o movimento
para realizar sua personalidade, que só ganha sentido e rumo
quando ultrapassar os limites do individuo isolado e vai alongar-se
em outros seres humanos. E essa agua parada é, em verdade,
o solo de eleição do espírito negador.
O demonio secularizado, que Gide e Thomas Mann ressuscitaram, depois
de Dostoievski, faz assim sua primeira aparição no romance
brasileiro. Com Mauricio, o doador de sangue, e em outra escala com
o "grande professor" Magnus, completa-se o simbolismo deste
livro. Através desse simbolismo, e sem perder sua força
dramatica, pode-se dizer que adquiriu uma densidade raras vezes alcançada,
até aqui, em nossa prosa de ficção.
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