Serio
Buarque de Holanda
Pode-se resumir em breves palavras a reflexão mais generalizada
entre os que desejam ver no idioma da poesia apenas e exclusivamente
aquilo que não pode oferecer a prosa discursiva e tratam
de defini-lo por esse contraste. O cientista fixaria, sobretudo,
aspectos isolados e necessariamente esquematicos da realidade, ao
passo que o poeta procuraria refletir a propria densidade da vida,
conciliando, numa harmonia superior e organica, formas heterogeneas
e até contraditorias.
Já procurei mostrar como este ponto de vista é valido,
quando muito, com relação à poesia atual -
deveria precisar: com relação a parte da poesia atual
- em outras epocas, servindo-se embora, de recursos peculiares,
como o metro, o ritmo, o acento, a assonancia, a rima, ela não
buscava necessariamente aquela conciliação de contrarios,
ou não a buscava através de linguagens especiais,
de tecnicas especiais, inacessiveis, umas e outras, à pura
operação logica.
Dado, entretanto, que parte da poesia atual pretende servir-se de
uma idioma proprio, alogico ou metalogico (assim como os povos naturais,
na concepção de Levy-Bruehi, posteriormente renegada
por seu proprio autor, se caracterizariam pela mentalidade pré-logica),
resta ainda saber se os criterios de analise forjados para elucidá-la
se distinguiriam por um plausivel rigor.
Explica-se facilmente que semelhantes criterios visassem, antes
de tudo, aos problemas da linguagem do estilo, da tecnica, uma vez
que tais problemas se prendem imediatamente à nova concepção
da linguagem poetica. Assim, em face de um texto literario, o analista
haveria de comportar-se um pouco à maneira do medico psicanalista
em face de um caso de nevrose. Sucede, porem, que à psicanalise
está associada uma terapeutica, e que o bom ou mau exito
do tratamento permitem até certo ponto ajuizar do valor dos
recursos empregados. E apesar da chamada "critica nova"
ter tido (e ter ainda hoje) alguns devotos tão fervorosos
como os teve - e tem - a psicanalise freudiana, o certo é
que no seu caso nos achamos privados de qualquer meio decisivo para
comprovar a justeza das suas pretensões. Podemos sempre admirar,
é certo, a precisão, o discernimento, a sutileza do
devoto, mas não são essas mesmas as virtudes que,
para compensar tamanhos pecados, já distinguiam certos criticos
impressionistas?
Contra os metodos do impressionismo sempre vale, certamente, a acusação
de precariedade e falibilidade, mas quem nos garante a maior eficacia
da alternativa sugerida? Um dos mais autorizados expoentes da "critica
nova", F. R. Leavis, reconhece que, sendo a poesia "concreta"
e a prosa "abstrata", as palavras do poeta convidam, não
a "pensar sobre" e a julgar, mas a sentir e viver a obra
criticada, realizando uma experiencia plena, que é dada em
palavras. Apenas essa experiencia, uma vez transposta em letra de
forma, irá ganhar, graças a uma inexplicavel metamorfose,
o acento proprio das verdades axiomaticas e universais.
E ainda uma vez cabe lembrar, neste ponto, aquele observação
bem significativa de Ransom: a analise dos textos faceis é
geralmente dificil, ao passo que a dos textos dificeis é
geralmente facil. O certo é que diante de um texto dificil,
o critico poderá dar redea solta às suas associações
pessoais, sem que o leitor inadvertido se aperceba em muitos casos
do engano. É claro que uma poesia que se distinga pela expressão
"rica" e "espessa", em contraste com a linguagem
rala da prosa, será a mais fertil para semelhante analise.
De onde a importancia absorvente que esse tipo de poesia vai assumindo
entre as preocupações de certa critica. De onde, tambem,
a posição verdadeiramente privilegiada de que ela
desfruta em recentes tentativas de revisão dos valores esteticos
consagrados.
Não ando muito longe de supor que os progresso na critica
de literatura se prendem hoje, e cada vez mais, aos progressos na
moderna estilistica. Apenas parece-me tão parcial e enganoso
o criterio daqueles que, por principio, aspiram a ver eliminado,
no verdadeiro estilo poetico, todo elemento discursivo e conceitual,
quanto o de outros, gramaticos e retoricos, que repudiam, por sua
vez, a dimensão emotiva, incapaz de capitular, em suas expressões
mais intensas, ante as interpretações puramente logicas,
e irredutivel, por isso mesmo, a uma explicação didatica.
Um esforço audacioso e em larga escala para vencer as limitações
dos criticos empenhados em desembaraçar as complexidades
do idioma poetico, efetuou-o, não há muito, o norte-americano
Cleanth Brooks. Se uma das consequencias de semelhante empenho tem
sido a opinião bastante generalizada entre aqueles criticos,
de que a boa, a genuina poesia, há de ser a mais complexa,
quer dizer, mais carregada de agudezas, paradoxos e ironias, Brooks
nada faz para retificar tal opinião, que tambem é
a sua. O que faz é tentar mostrar como uma analise meticulosa
torna possivel discenirem-se atrozes "complexidades",
mesmo em textos poeticos aparentemente chãos e cristalinamente
claros.
Ninguem dirá que, a rigor, isso seja impossivel, mas resta
saber-se se não se torna já de si suspeito o escrutinhio
minucioso de um poema, quando se tenha em mira, sistematicamente,
chegar àquele resultado. E tambem, se um metodo talvez prestimoso
para a elucidação de certo tipo de textos "dificeis",
é cabivel na analise de outros, onde precisamente a agudeza,
o paradoxo, a ironia, constituem exceção à
regra? Não seria isto querer forçar a atenção
sobre o acessorio em detrimento do essencial? Quando Brooks, diante
de uma passagem obscura de T. S. Eliot, se reporta a Jessie Weston
e a Frazer para explicar que o cabelo é simbolo da fertilidade,
ninguem se alarmará com a interpretação, visto
como o proprio poeta, a proposito de outras passagens de sua obra,
não esconde que se apoiara expressamente naqueles autores,
e tambem porque essa forma de simbolismo lhe é peculiar.
Mas quando (em seu livro The Well Wrought Urn) o mesmo critico procura
distinguir o mesmo simbolo em Milton (pg. 73), ou em Herrick (pg.
73), ou em Pope (pg. 86), não é preciso, creio, um
conhecimento aprofundado da poesia inglesa para se presumir com
bons motivos que entra aqui um motivo obsessor do critico, não
dos criticados.
Obsessões como essa vão encontrar-se aliás,
não só em escritos de Brooks como nos de outros adeptos
do new-criticism. Não me recordo se, em sua admiravel tradução
de Romeu e Julieta, o sr. Onestaldo Penaforte, tão habil
no transpor para o português os jogos de palavras do original,
aproveitou o sentido dubio que teria no inglês do seculo XVII
o verbo to die (significando "morrer" e ao mesmo tempo
"praticar o ato amoroso"), que segundo um dos seus inerpretes
- F. C. Prescott - Shakespeare utilizou conscientemente. O fato
é que, depois desse achado de Prescott, não faltou
quem o empregasse na interpretação critica de outros
poetas, e não só do seculo XVII. Kenneth Burke, por
exemplo (em A Grammar of Motives) descobre a mesma dubiedade em
um poema de Keats. O proprio Cleanth Brooks (em Modern Poetry and
the Tradition) discerne-a não só em Keats, e ainda
em Donne, mas até em um poeta, como Pope, notoriamente avesso
a esses exercicios tantas vezes mortais.
Dessa especie de ultra-analise, que em geral redunda num meticuloso
impressionismo - conforme já foi notado aqui mesmo - não
se pode evidentemente presumir que represente uma superação
efetiva do impressionismo vulgar. E a pretenção constante,
entre seus adeptos, levada por vezes às ultimas consequencias,
de que ao critico será sempre licito encontrar numa obra
circunstancias que ao proprio autor terão escapado, é
um fraco argumento, que não convencerá aos mais exigentes.
Hoje, quando os postulados fundamentais da "critica nova"
já perderam a sedução da novidade e foram largamente
abandonados ou ultrapassados, parece quase uma impertinencia querer
insistir em que sua ambição de fornecer uma alternativa
para o relativismo não se realizou. Menos infrutifera foi,
talvez, seu esforço para penetrar no intimo da linguagem
poetica. Mas já se viu que mesmo esse esforço se distinguiu
por uma unilateralidade a toda prova e introduziu no julgamento
literário escalas de valores extremamente caprichosas. Os
criterios absolutistas que imaginou fazer para esse julgamento foram
adquiridos através de exclusões inaceitaveis.
Isso não quer dizer que a unica alternativa licita para quem
estude a poesia será a de conformar-se com velhos criterios
subjetivos. A obrigação dos que se dedicam a esse
estudo está em procurar reduzir, através de metodos
cada vez mais acurados, a zona de misterio que envolve a poesia.
Varias tentativas modernas, sobretudo nos dominios da estilistica,
indicam que tal redução é possivel, e para
isso os proprios adeptos da "critica nova" trouxeram contribuições
que, certamente, não poderão ser rejeitadas em bloco.
Através de alguns daqueles estudos, que tentarei abordar
em outra ocasião, a ciencia poderá, cada vez mais,
aproximar-se da compreensão do misterio da poesia, embora
sem a esperança de desvendá-lo em sua plenitude.
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