HERMETISMO E CRITICA
(CONCLUSÃO)

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 22 de maio de 1951

Neste texto foi mantida a grafia original

Serio Buarque de Holanda

Pode-se resumir em breves palavras a reflexão mais generalizada entre os que desejam ver no idioma da poesia apenas e exclusivamente aquilo que não pode oferecer a prosa discursiva e tratam de defini-lo por esse contraste. O cientista fixaria, sobretudo, aspectos isolados e necessariamente esquematicos da realidade, ao passo que o poeta procuraria refletir a propria densidade da vida, conciliando, numa harmonia superior e organica, formas heterogeneas e até contraditorias.
Já procurei mostrar como este ponto de vista é valido, quando muito, com relação à poesia atual - deveria precisar: com relação a parte da poesia atual - em outras epocas, servindo-se embora, de recursos peculiares, como o metro, o ritmo, o acento, a assonancia, a rima, ela não buscava necessariamente aquela conciliação de contrarios, ou não a buscava através de linguagens especiais, de tecnicas especiais, inacessiveis, umas e outras, à pura operação logica.
Dado, entretanto, que parte da poesia atual pretende servir-se de uma idioma proprio, alogico ou metalogico (assim como os povos naturais, na concepção de Levy-Bruehi, posteriormente renegada por seu proprio autor, se caracterizariam pela mentalidade pré-logica), resta ainda saber se os criterios de analise forjados para elucidá-la se distinguiriam por um plausivel rigor.
Explica-se facilmente que semelhantes criterios visassem, antes de tudo, aos problemas da linguagem do estilo, da tecnica, uma vez que tais problemas se prendem imediatamente à nova concepção da linguagem poetica. Assim, em face de um texto literario, o analista haveria de comportar-se um pouco à maneira do medico psicanalista em face de um caso de nevrose. Sucede, porem, que à psicanalise está associada uma terapeutica, e que o bom ou mau exito do tratamento permitem até certo ponto ajuizar do valor dos recursos empregados. E apesar da chamada "critica nova" ter tido (e ter ainda hoje) alguns devotos tão fervorosos como os teve - e tem - a psicanalise freudiana, o certo é que no seu caso nos achamos privados de qualquer meio decisivo para comprovar a justeza das suas pretensões. Podemos sempre admirar, é certo, a precisão, o discernimento, a sutileza do devoto, mas não são essas mesmas as virtudes que, para compensar tamanhos pecados, já distinguiam certos criticos impressionistas?
Contra os metodos do impressionismo sempre vale, certamente, a acusação de precariedade e falibilidade, mas quem nos garante a maior eficacia da alternativa sugerida? Um dos mais autorizados expoentes da "critica nova", F. R. Leavis, reconhece que, sendo a poesia "concreta" e a prosa "abstrata", as palavras do poeta convidam, não a "pensar sobre" e a julgar, mas a sentir e viver a obra criticada, realizando uma experiencia plena, que é dada em palavras. Apenas essa experiencia, uma vez transposta em letra de forma, irá ganhar, graças a uma inexplicavel metamorfose, o acento proprio das verdades axiomaticas e universais.
E ainda uma vez cabe lembrar, neste ponto, aquele observação bem significativa de Ransom: a analise dos textos faceis é geralmente dificil, ao passo que a dos textos dificeis é geralmente facil. O certo é que diante de um texto dificil, o critico poderá dar redea solta às suas associações pessoais, sem que o leitor inadvertido se aperceba em muitos casos do engano. É claro que uma poesia que se distinga pela expressão "rica" e "espessa", em contraste com a linguagem rala da prosa, será a mais fertil para semelhante analise. De onde a importancia absorvente que esse tipo de poesia vai assumindo entre as preocupações de certa critica. De onde, tambem, a posição verdadeiramente privilegiada de que ela desfruta em recentes tentativas de revisão dos valores esteticos consagrados.
Não ando muito longe de supor que os progresso na critica de literatura se prendem hoje, e cada vez mais, aos progressos na moderna estilistica. Apenas parece-me tão parcial e enganoso o criterio daqueles que, por principio, aspiram a ver eliminado, no verdadeiro estilo poetico, todo elemento discursivo e conceitual, quanto o de outros, gramaticos e retoricos, que repudiam, por sua vez, a dimensão emotiva, incapaz de capitular, em suas expressões mais intensas, ante as interpretações puramente logicas, e irredutivel, por isso mesmo, a uma explicação didatica.
Um esforço audacioso e em larga escala para vencer as limitações dos criticos empenhados em desembaraçar as complexidades do idioma poetico, efetuou-o, não há muito, o norte-americano Cleanth Brooks. Se uma das consequencias de semelhante empenho tem sido a opinião bastante generalizada entre aqueles criticos, de que a boa, a genuina poesia, há de ser a mais complexa, quer dizer, mais carregada de agudezas, paradoxos e ironias, Brooks nada faz para retificar tal opinião, que tambem é a sua. O que faz é tentar mostrar como uma analise meticulosa torna possivel discenirem-se atrozes "complexidades", mesmo em textos poeticos aparentemente chãos e cristalinamente claros.
Ninguem dirá que, a rigor, isso seja impossivel, mas resta saber-se se não se torna já de si suspeito o escrutinhio minucioso de um poema, quando se tenha em mira, sistematicamente, chegar àquele resultado. E tambem, se um metodo talvez prestimoso para a elucidação de certo tipo de textos "dificeis", é cabivel na analise de outros, onde precisamente a agudeza, o paradoxo, a ironia, constituem exceção à regra? Não seria isto querer forçar a atenção sobre o acessorio em detrimento do essencial? Quando Brooks, diante de uma passagem obscura de T. S. Eliot, se reporta a Jessie Weston e a Frazer para explicar que o cabelo é simbolo da fertilidade, ninguem se alarmará com a interpretação, visto como o proprio poeta, a proposito de outras passagens de sua obra, não esconde que se apoiara expressamente naqueles autores, e tambem porque essa forma de simbolismo lhe é peculiar. Mas quando (em seu livro The Well Wrought Urn) o mesmo critico procura distinguir o mesmo simbolo em Milton (pg. 73), ou em Herrick (pg. 73), ou em Pope (pg. 86), não é preciso, creio, um conhecimento aprofundado da poesia inglesa para se presumir com bons motivos que entra aqui um motivo obsessor do critico, não dos criticados.
Obsessões como essa vão encontrar-se aliás, não só em escritos de Brooks como nos de outros adeptos do new-criticism. Não me recordo se, em sua admiravel tradução de Romeu e Julieta, o sr. Onestaldo Penaforte, tão habil no transpor para o português os jogos de palavras do original, aproveitou o sentido dubio que teria no inglês do seculo XVII o verbo to die (significando "morrer" e ao mesmo tempo "praticar o ato amoroso"), que segundo um dos seus inerpretes - F. C. Prescott - Shakespeare utilizou conscientemente. O fato é que, depois desse achado de Prescott, não faltou quem o empregasse na interpretação critica de outros poetas, e não só do seculo XVII. Kenneth Burke, por exemplo (em A Grammar of Motives) descobre a mesma dubiedade em um poema de Keats. O proprio Cleanth Brooks (em Modern Poetry and the Tradition) discerne-a não só em Keats, e ainda em Donne, mas até em um poeta, como Pope, notoriamente avesso a esses exercicios tantas vezes mortais.
Dessa especie de ultra-analise, que em geral redunda num meticuloso impressionismo - conforme já foi notado aqui mesmo - não se pode evidentemente presumir que represente uma superação efetiva do impressionismo vulgar. E a pretenção constante, entre seus adeptos, levada por vezes às ultimas consequencias, de que ao critico será sempre licito encontrar numa obra circunstancias que ao proprio autor terão escapado, é um fraco argumento, que não convencerá aos mais exigentes. Hoje, quando os postulados fundamentais da "critica nova" já perderam a sedução da novidade e foram largamente abandonados ou ultrapassados, parece quase uma impertinencia querer insistir em que sua ambição de fornecer uma alternativa para o relativismo não se realizou. Menos infrutifera foi, talvez, seu esforço para penetrar no intimo da linguagem poetica. Mas já se viu que mesmo esse esforço se distinguiu por uma unilateralidade a toda prova e introduziu no julgamento literário escalas de valores extremamente caprichosas. Os criterios absolutistas que imaginou fazer para esse julgamento foram adquiridos através de exclusões inaceitaveis.
Isso não quer dizer que a unica alternativa licita para quem estude a poesia será a de conformar-se com velhos criterios subjetivos. A obrigação dos que se dedicam a esse estudo está em procurar reduzir, através de metodos cada vez mais acurados, a zona de misterio que envolve a poesia. Varias tentativas modernas, sobretudo nos dominios da estilistica, indicam que tal redução é possivel, e para isso os proprios adeptos da "critica nova" trouxeram contribuições que, certamente, não poderão ser rejeitadas em bloco. Através de alguns daqueles estudos, que tentarei abordar em outra ocasião, a ciencia poderá, cada vez mais, aproximar-se da compreensão do misterio da poesia, embora sem a esperança de desvendá-lo em sua plenitude.



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