Sergio Buarque de Holanda
Do
exame de algumas formas de "hermetismo" que caracterizam
a poesia atual e deveriam constituir o tema destes comentarios,
uma transição natural conduziu-me a abordar certos
tipos de inquirição critica surgidos do desejo de
estudar objetivamente essa poesia. Para voltar ao tema, fazia-se
e faz-se necessario considerar, sumariamente, embora, alguns aspectos
mais frequentes daquela inquirição.
O minucioso zelo que numerosos autores puseram em semelhante estudo,
a veemencia tantas vezes intolerante com que alguns deles passaram
a defender seus pontos de vista e, não menos, a riqueza
e variedade de termos especializados ("ambiguidades",
"monossignos e plurissignos", "denotações
e conotações", "estrutura e textura",
"ação simbolica", etc., etc.) de que se
serviam, pareceram, por momentos, dar a seu esforço uma
aparencia de rigor.
Entretanto, algumas das limitações desse esforço
se tornaram logo evidentes. Uma delas estava em que ele se aplicou
com exclusividade sintomatica à poesia e, em verdade, somente
a determinados tipos de poesia; àqueles mesmos que tornaram
possivel o aparecimento dessa nova critica. Exceção
feita do movimento que, nos paises de lingua inglesa, vai particularmente
de Pound e Eliot aos autores da geração de 30, ela
só se ocupou mais intensamente dos seiscentistas ingleses
da escola de Donne (os chamados poetas "metafisicos"),
cuja reabilitação data de há poucos decenios.
E estudos recentes vieram demonstrar, cabalmente, como sua interpretação
dos mesmos "metafisicos" foi quase sempre viciada por
um apego renitente a dogmas e preconceitos modernos.
No campo da critica e da historia literarias, resultou dessa limitação
que muitos nomes longamente consagrados, e até epocas inteiras
da historia da poesia foram deixados no limbo, só porque
não tinham recebido a agua lustral que os acomodaria a
uma critica ocupada insistentemente em desenredar paradoxos ou
determinar a função das imagens no contexto. Pode-se
supor que a exigencia, em nossos dias de maior inteligibilidade
no idioma das ciencias, que repele, cada vez mais, as imprecisões
e ambiguidades, reclamava, com urgencia sua contraparte. Na epoca
do romantismo, a forma poetica chegara a ser como uma condição
patologica da linguagem da prosa, linguagem esta que se viera
afinando no crescente contacto com as disciplinas cientificas.
Agora, porem, pudera conquistar sua independencia e sua dignidade
particular, definindo-se em contraste minuciosamente simetrico
com a expressão cientifica. Esta deveria ser reta; aquela,
obliqua. Esta, conceitual e transparente; aquela, escura e metaforica.
Que a poesia atual se destinga frequentemente por determinados
traços que a opõem à prosa, não vejo
nisto nada de escandaloso. Acredito, bem ao contrario, que em
mais de um caso aqueles caracteristicos, explicaveis, provavelmente,
por circunstancias historicas, armaram o poeta de hoje para a
conquista de territorios antes insuspeitados e representaram,
sem duvida, um enriquecimento. Mas creio tambem que pretender
erigi-los numa especie de padrão absolutista para julgamentos
criticos, é fechar definitivamente o caminho à boa
compreensão e apreciação da obra literaria,
função elementar da critica. Pois aferindo tudo
por semelhantes padrões, como deixar de concluir que a
poesia, antes do parnasianismo e do simbolismo francês,
ou dos doutrinadores da arte pela arte, esteve constantemente
sujeita àquilo que alguns teoricos denominaram a "heresia
didatica"?
Considerada segundo os atuais criterios esteticos, uma peça
como o famoso Mal Secreto, de nosso Raimundo Correia, será
de irremediavel prosaismo, com sua linguagem inçada de
elementos conceituais que caberiam melhor, talvez, numa predicação
sentenciosa. Mas se quisermos ver eliminados, por principio, esses
elementos, da linguagem poetica, seria preciso fazer-se então
uma revisão verdadeiramente catastrofica de toda a historia
da poesia. E se hoje já nos habituamos a julgar um tanto
insolita a propaganda dos energumenos que desejariam ver na literatura
um mero veiculo para a expressão e expansão de idéias,
é porque nos esquecemos facilmente de que semelhante atitude
não deixou de ser a mais constante através da historia.
E não só nas epocas racionalistas e "prosaicas"
como o Setecentos, mas tambem, e talvez sobretudo, naquelas que,
vistas de hoje, da distancia, nos parecem embebidas do mais autentico
lirismo.
Nesse sentido será licito dizer que a popularidade atual
dos poetas da era barroca proviria muito menos de uma inteligencia
precisa de suas obras do que da analogia ficticia que se estabeleceu
entre os principios onde essas obras descansam e as convenções
do pós-simbolismo. Longe de professar teorias que pudessem
assimilar-se, sequer remotamente, às da arte pela arte,
o que procuravam eles apesar de suas imagens tantas vezes abstratas,
era - conforme o mostrou exuberantemente Rosamond Tuve - atingir
uma "precisão logica e uma firmeza intelectual"
a toda prova. A poesia que criavam se enlaçava à
Retorica, à Filosofia e não menos, à logica
da epoca, na comum aspiração de servir à
Verdade e submeter ao seu jugo os corações e a sabedoria
dos homens. Essa a soberana missão do poeta, missão
que aceitava, não com revolta, mas com entusiasmo, por
que deveria assegurar ao seu esforço uma dignidade sagrada
e perene.
É certo que sua mesma fidelidade a doutrinas ainda carregadas
de "pseudoconceitos", que alguns autores modernos buscam
eliminar do discurso teorico, tende, por sua vez, a dar-lhes em
nossos dias alguma coisa da tonalidade emotiva e ambigua em que
se compraz o atual idioma da poesia. Depois, sobretudo, que autores
desenvolveram uma severa logica, fundada em sistemas de simbolos
de um rigor matematico, parece bem claro que muitas das especulações
antigas já participam um pouco daquela mesma tonalidade
pertencente de direito, ao dominio da poesia. Transferidos para
o verso já não são de natureza a turvar seu
natural encantamento.
Hoje costumamos pensar que a operação logica ideal
deve carecer de poesia, assim como a operação poetica
deve carecer de logica. E é bem possivel que em um outro
caso estejamos com a razão. Mas não vai um grave
engano de perspectiva, certamente fatal para a apreciação
critica, em julgar-se que tambem assim o pensavam os antigos?
Lembro-me a esse proposito de que meu amigo Eurialo Canabrava,
em conferencia pronunciada há pouco o Clube de Poesia de
São Paulo, se fazia arauto do pensamento que tende a favorecer
a absoluta emancipação do idioma da poesia. Os processos
que se achariam à base desse idioma não teriam a
seu ver, sentido univoco e nem comportariam a irreversibilidade
aparentemente inseparavel das operações logicas.
O grande verso de Dante - Amor che muove il Sole e l'altre stelle
- parece-lhe tremendamente falso do ponto de vista da linguagem
cientifica e, não obstante isso, ou antes, por isso mesmo,
lhe oferece uma admiravel sugestão poetica. "O que
move o sol e as estrelas" declarou, "não é
o amor, mas o que está expresso na lei de Kepler, de acordo
com o qual os astros descrevem, na sua orbita, uma elipse, de
que o sol ocupa um dos focos". E acrescenta: "Admitamos,
porem, que não se conheça a lei Kepler. Mesmo nessa
hipotese, o verso da "Divina Comedia" jamais seria considerado
uma proposição cientifica".
Jamais? Mal ou bem, continuo a pensar que na epoca de Dante se
podia serenamente dizer do Amor divino, que move o sol e as outras
estrelas, sem medo de contestação ponderavel. Tratava-se
de verdade rigorosamente "cientifica" e ortodoxa, numa
epoca que ainda timbrava em ignorar a logistica e a fisica atomica.
É bem certo que o autor de Três Temas do Espirito
Moderno não faz depender o preço de uma obra de
arte da verdade atual das suas proposições. Nisto,
e em muito mais, estarei sempre pronto para dar-lhe razão.
Apenas afino mal com a idéia, talvez arbitraria e "cientificamente"
improvavel, de que se devem hipostasiar convenções
modernas para convertê-las em invariavel criterio de apreciação
estetica. E ainda que suspeito que não me afastaria muito
de quem, como ele, acaba afirmando que precisamos "reconhecer
com simplicidade" o carater relativo do julgamento critico.
Mas não ousarei desenvolver ao extremo este ponto de vista,
com medo de ter de subscrever o que um jovem e simpatico filosofo,
o sr. Luis Washington, disse há poucos dias, em jornal
de São Paulo, o qual filosofo, depois de deplorar a ausencia
de critica literaria entre nós, investe em palavras acres
contra aqueles que "se transmutam em palmatorias do mundo,
em defesa de uma tomada de posição historicista
estriada de nocionamentos à maneira de Richads, como é
o caso de Sergio Buarque de Holanda". Palavras, a meu ver,
onde se encerra grandissimo exagero.