HERMETISMO E CRITICA — II


Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 15 de maio de 1951

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Sergio Buarque de Holanda

Do exame de algumas formas de "hermetismo" que caracterizam a poesia atual e deveriam constituir o tema destes comentarios, uma transição natural conduziu-me a abordar certos tipos de inquirição critica surgidos do desejo de estudar objetivamente essa poesia. Para voltar ao tema, fazia-se e faz-se necessario considerar, sumariamente, embora, alguns aspectos mais frequentes daquela inquirição.
O minucioso zelo que numerosos autores puseram em semelhante estudo, a veemencia tantas vezes intolerante com que alguns deles passaram a defender seus pontos de vista e, não menos, a riqueza e variedade de termos especializados ("ambiguidades", "monossignos e plurissignos", "denotações e conotações", "estrutura e textura", "ação simbolica", etc., etc.) de que se serviam, pareceram, por momentos, dar a seu esforço uma aparencia de rigor.
Entretanto, algumas das limitações desse esforço se tornaram logo evidentes. Uma delas estava em que ele se aplicou com exclusividade sintomatica à poesia e, em verdade, somente a determinados tipos de poesia; àqueles mesmos que tornaram possivel o aparecimento dessa nova critica. Exceção feita do movimento que, nos paises de lingua inglesa, vai particularmente de Pound e Eliot aos autores da geração de 30, ela só se ocupou mais intensamente dos seiscentistas ingleses da escola de Donne (os chamados poetas "metafisicos"), cuja reabilitação data de há poucos decenios. E estudos recentes vieram demonstrar, cabalmente, como sua interpretação dos mesmos "metafisicos" foi quase sempre viciada por um apego renitente a dogmas e preconceitos modernos.
No campo da critica e da historia literarias, resultou dessa limitação que muitos nomes longamente consagrados, e até epocas inteiras da historia da poesia foram deixados no limbo, só porque não tinham recebido a agua lustral que os acomodaria a uma critica ocupada insistentemente em desenredar paradoxos ou determinar a função das imagens no contexto. Pode-se supor que a exigencia, em nossos dias de maior inteligibilidade no idioma das ciencias, que repele, cada vez mais, as imprecisões e ambiguidades, reclamava, com urgencia sua contraparte. Na epoca do romantismo, a forma poetica chegara a ser como uma condição patologica da linguagem da prosa, linguagem esta que se viera afinando no crescente contacto com as disciplinas cientificas. Agora, porem, pudera conquistar sua independencia e sua dignidade particular, definindo-se em contraste minuciosamente simetrico com a expressão cientifica. Esta deveria ser reta; aquela, obliqua. Esta, conceitual e transparente; aquela, escura e metaforica.
Que a poesia atual se destinga frequentemente por determinados traços que a opõem à prosa, não vejo nisto nada de escandaloso. Acredito, bem ao contrario, que em mais de um caso aqueles caracteristicos, explicaveis, provavelmente, por circunstancias historicas, armaram o poeta de hoje para a conquista de territorios antes insuspeitados e representaram, sem duvida, um enriquecimento. Mas creio tambem que pretender erigi-los numa especie de padrão absolutista para julgamentos criticos, é fechar definitivamente o caminho à boa compreensão e apreciação da obra literaria, função elementar da critica. Pois aferindo tudo por semelhantes padrões, como deixar de concluir que a poesia, antes do parnasianismo e do simbolismo francês, ou dos doutrinadores da arte pela arte, esteve constantemente sujeita àquilo que alguns teoricos denominaram a "heresia didatica"?
Considerada segundo os atuais criterios esteticos, uma peça como o famoso Mal Secreto, de nosso Raimundo Correia, será de irremediavel prosaismo, com sua linguagem inçada de elementos conceituais que caberiam melhor, talvez, numa predicação sentenciosa. Mas se quisermos ver eliminados, por principio, esses elementos, da linguagem poetica, seria preciso fazer-se então uma revisão verdadeiramente catastrofica de toda a historia da poesia. E se hoje já nos habituamos a julgar um tanto insolita a propaganda dos energumenos que desejariam ver na literatura um mero veiculo para a expressão e expansão de idéias, é porque nos esquecemos facilmente de que semelhante atitude não deixou de ser a mais constante através da historia. E não só nas epocas racionalistas e "prosaicas" como o Setecentos, mas tambem, e talvez sobretudo, naquelas que, vistas de hoje, da distancia, nos parecem embebidas do mais autentico lirismo.
Nesse sentido será licito dizer que a popularidade atual dos poetas da era barroca proviria muito menos de uma inteligencia precisa de suas obras do que da analogia ficticia que se estabeleceu entre os principios onde essas obras descansam e as convenções do pós-simbolismo. Longe de professar teorias que pudessem assimilar-se, sequer remotamente, às da arte pela arte, o que procuravam eles apesar de suas imagens tantas vezes abstratas, era - conforme o mostrou exuberantemente Rosamond Tuve - atingir uma "precisão logica e uma firmeza intelectual" a toda prova. A poesia que criavam se enlaçava à Retorica, à Filosofia e não menos, à logica da epoca, na comum aspiração de servir à Verdade e submeter ao seu jugo os corações e a sabedoria dos homens. Essa a soberana missão do poeta, missão que aceitava, não com revolta, mas com entusiasmo, por que deveria assegurar ao seu esforço uma dignidade sagrada e perene.
É certo que sua mesma fidelidade a doutrinas ainda carregadas de "pseudoconceitos", que alguns autores modernos buscam eliminar do discurso teorico, tende, por sua vez, a dar-lhes em nossos dias alguma coisa da tonalidade emotiva e ambigua em que se compraz o atual idioma da poesia. Depois, sobretudo, que autores desenvolveram uma severa logica, fundada em sistemas de simbolos de um rigor matematico, parece bem claro que muitas das especulações antigas já participam um pouco daquela mesma tonalidade pertencente de direito, ao dominio da poesia. Transferidos para o verso já não são de natureza a turvar seu natural encantamento.
Hoje costumamos pensar que a operação logica ideal deve carecer de poesia, assim como a operação poetica deve carecer de logica. E é bem possivel que em um outro caso estejamos com a razão. Mas não vai um grave engano de perspectiva, certamente fatal para a apreciação critica, em julgar-se que tambem assim o pensavam os antigos? Lembro-me a esse proposito de que meu amigo Eurialo Canabrava, em conferencia pronunciada há pouco o Clube de Poesia de São Paulo, se fazia arauto do pensamento que tende a favorecer a absoluta emancipação do idioma da poesia. Os processos que se achariam à base desse idioma não teriam a seu ver, sentido univoco e nem comportariam a irreversibilidade aparentemente inseparavel das operações logicas. O grande verso de Dante - Amor che muove il Sole e l'altre stelle - parece-lhe tremendamente falso do ponto de vista da linguagem cientifica e, não obstante isso, ou antes, por isso mesmo, lhe oferece uma admiravel sugestão poetica. "O que move o sol e as estrelas" declarou, "não é o amor, mas o que está expresso na lei de Kepler, de acordo com o qual os astros descrevem, na sua orbita, uma elipse, de que o sol ocupa um dos focos". E acrescenta: "Admitamos, porem, que não se conheça a lei Kepler. Mesmo nessa hipotese, o verso da "Divina Comedia" jamais seria considerado uma proposição cientifica".
Jamais? Mal ou bem, continuo a pensar que na epoca de Dante se podia serenamente dizer do Amor divino, que move o sol e as outras estrelas, sem medo de contestação ponderavel. Tratava-se de verdade rigorosamente "cientifica" e ortodoxa, numa epoca que ainda timbrava em ignorar a logistica e a fisica atomica. É bem certo que o autor de Três Temas do Espirito Moderno não faz depender o preço de uma obra de arte da verdade atual das suas proposições. Nisto, e em muito mais, estarei sempre pronto para dar-lhe razão. Apenas afino mal com a idéia, talvez arbitraria e "cientificamente" improvavel, de que se devem hipostasiar convenções modernas para convertê-las em invariavel criterio de apreciação estetica. E ainda que suspeito que não me afastaria muito de quem, como ele, acaba afirmando que precisamos "reconhecer com simplicidade" o carater relativo do julgamento critico.
Mas não ousarei desenvolver ao extremo este ponto de vista, com medo de ter de subscrever o que um jovem e simpatico filosofo, o sr. Luis Washington, disse há poucos dias, em jornal de São Paulo, o qual filosofo, depois de deplorar a ausencia de critica literaria entre nós, investe em palavras acres contra aqueles que "se transmutam em palmatorias do mundo, em defesa de uma tomada de posição historicista estriada de nocionamentos à maneira de Richads, como é o caso de Sergio Buarque de Holanda". Palavras, a meu ver, onde se encerra grandissimo exagero.


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