Referindo-se,
em uma das suas cartas, à dificuldade de interpretação
de algumas passagens dos Sonetos de Orfeu, Rilke assinala a impertinencia
das analises criticas que se fundam na explicação
didatica dos textos. Pela sua propria natureza, escrevia ele a Clara
Rilke, a dificuldade não é, no caso, das que requerem
explicação, mas das que reclamam aquiescencia submissa.
Essa mesma passagem serviu a um critico e pensador atual Romano
Guardini para ilustrar a distinção que, interpretada
com alguma liberdade, se pode aplicar vantajosamente ao que chamamos
poesia hermetica. O misterio, diz um critico, é qualitativamente
diverso do problema. Este precisa ser resolvido, e uma vez resolvido,
perdeu sua razão de ser; aquele o misterio há
de ser sentido, respeitado, vivido. Misterio que se esclarece não
é misterio. E embora em literatura, particularmente, possa
confundir-se, às vezes, com algum ardiloso artificio nascido
do simples desejo de mistificar, sua incompatibilidade fundamental
com a erudição didatica associa-se geralmente a motivos
bem diversos: à impossibilidade, sobretudo, de reduzi-lo
a termos racionais, por conseguinte, de resolvê-lo ou sequer
explicá-lo.
Um poema de Augusto dos Anjos, por exemplo, pode ser "traduzido"
ou parafraseado em prosa, e suportar, neste caso, esclarecimentos
didaticos destinados àqueles que não se acham familiarizados
com a linguagem cientifica do autor. Corresponde, naturalmente,
à epoca em que os criticos poderiam distinguir, ou distinguiam,
com mais razão do que hoje, entre "forma" e "fundo"
numa obra de arte, já que os elementos assim rotulados podiam,
não digo dissociar-se inteiramente, porem constituir objeto
de estudos a parte.
E mesmo onde o puro misterio parece dominar sem contraste, quantas
vezes a aparente obscuridade de certas poesias não provem
do recurso, da parte do autor, a uma especie de mitologia pessoal,
cuja chave, uma vez encontrada, abrirá as portas à
sua ampla compreensão? Ou então da alusão insistente
a fatos, a personagens, a objetos historicos, que a generalidade
dos leitores só poderá reconhecer mediante iniciação
previa? Um moderno critico norte-americano, R. P. Blackmur, pôde
demonstrar, por exemplo, que a escureza de certos "Cantos"
de um dos mestres mais acatados da nova poesia anglo-saxonia, Ezra
Pound, se dissipa, como ao toque de uma vara magica, desde que se
conheçam suas fontes literarias, muitas vezes inacessiveis
sem longo preparo. Quando o leitor estiver apto a distinguir as
alusões greco-romanas, provençais, italianas, chinesas,
que saturam sua obra poetica, então tudo se tornará
claro como o dia.
Não é a essa, creio eu, que se poderia chamar razoavelmente,
e em sentido estrito, poesia hermetica. E mesmo nas criações
poeticas onde "forma" o "fundo" são,
por assim dizer, consubstanciais e sua separação se
torna, não apenas improficua, mas rigorosamente impossivel,
parece licito distinguirem-se pelo menos dois tipos e hermetismo
literario. Os quais corresponderiam, um tanto grosseiramente, às
duas manifestações que sempre passaram por caracteristicas
da poesia barroca: cultismo e conceitismo. Em outras palavras, a
que procede por meio de amplificações, pela sobrecarga
de elementos decorativos, e a que age, ao contrario, por um excesso
de tensão e contensão.
E ainda aqui é dado, por vezes, ao interprete, fazer subir
à tona e destacar, com maior ou menor exito, a estrutura
racional, o esquema de referencias objetivas que serviriam para
pôr certa ordem nas emoções representadas, embora
nessa tentativa ora o risco de falsear por excesso de imaginação
ou engenho, o verdadeiro sentido da obra examinada.
De qualquer modo, a possibilidade de explicar o que está
vagamente implicito, de virar para o avesso o poema, a fim de desvendar
sua face oculta, de considerar, alem disso, certos aspectos que
a critica recente destacou com singular enfase, como o das conotações,
das imagens chamadas funcionais, da "tonalidade" afetiva,
sem desdenhar as particularidades tecnicas e formas, pode resultar
numa operação quase sempre sedutora para o critico
e, em alguns casos, para o leitor.
Quantas dificuldades não se apresentariam ao interprete,
por outro lado, se andasse empenhado em redizer por outro meio,
por meio do discurso logico e racional, o que, no caso da poesia
"não hermetica", já fora dito de modo inequivoco,
trocando-se em moeda corrente a linguagem sempre unica, embora,
aqui, transparente, da poesia?
Nesse sentido, e em verdade só nele, parece de todo plausivel
o paradoxo, sugerido por um critico moderno, John Crowe Ransom,
quando escreveu que a analise dos textos dificeis é geralmente
facil, ao passo que a dos textos faceis é quase sempre dificil.
Não é por acaso que, ao considerarmos certos padrões
de analise que pretendem desmontar em todas as suas minucias, para
melhor estudá-las, as diferentes formas de poesia, ocorrem-nos
quase unicamente nomes ingleses e norte-americanos. É que
essa analise corresponde, especialmente nos ultimos tempos, a certo
tipo de dificuldade ou do hermetismo que se desenvolveu sobretudo
na poesia dos paises de lingua inglesa, a partir de T. S. Eliot
e da ultima fase do W. B. Yeats. Foi a ambição de
estudar uma forma literaria refrataria, até certo ponto,
aos metodos criticos habituais, o que determinou a expansão
de uma nova forma de critica.
Isso não significa que os metodos de analise suscitados por
aquelas dificuldades sejam totalmente invalidos se moderadamente
aplicados à poesia de outras epocas e outros paises. Mesmo
no Brasil, quando ainda se encontrava no apogeu a "nova critica"
anglo-saxonia, um ilustre estudioso destes assuntos, o sr. Osmar
Pimentel, pôde servir-se com vantagem da noção
dos "plurissignos" cunhada e desenvolvida por Philip Wheelright,
para a analise da linguagem poetica dos "metafisicos"
ingleses do seculo XVII e de certos modernos, na interpretação
de textos de Carlos Drummond de Andrade e de Cassiano Ricardo.
Foi, entretanto, na aplicação sistematica daqueles,
metodos, que esse tipo de analise revelou suas limitações
essenciais. Assim é que chegou a degenerar, com facilidade,
numa especie de ultra-analise, procurando atribuir a obra estudada,
a fim de melhor exercer-se intenções secretas que
estariam menos no autor do que no critico. E assim, sob a capa enganadora
do rigor e do sistema, descaiu em verdade, para um novo impressionismo,
apenas mais minucioso do que aqueles que professava combater. Do
assunto, que exige consideração mais atenta, procurarei
tratar em artigo vindouro.
Contudo, não encerrarei o presente comentario sem referir-me
a outra falada caracteristica desses metodos de critica e que é
largamente responsavel pelo seu crescente descredito em nossos dias.
Criados para a interpretação de determinadas formas
de poesia, esses metodos mostraram-se naturalmente ineficazes, quando
aplicados e formas diferentes. E em lugar de admitir a relatividade
dos criterios de que usavam, os partidarios de tais criterios não
hesitaram em decretar a inferioridade fundamental de todas as criações
literarias que se mostrassem infensas ao seu emprego. Com isso puderam
fixar um aparente hierarquia de valores, que a um exame superficial
parecia fornecer-lhes a arma infalivel e sempre acessivel no combate
ao impressionismo critico e ao relativismo.
De onde, tambem, os excessos de analise, os excessos de simplificação,
os excessos de aplicação que, segundo reconhece hoje
um dos iniciadores mais ilustres de tais metodos, constituem a patologia
habitual de todas as tecnicas convertidas em metodo, de todos os
metodos convertidos em metodologia. No mesmo artigo onde reconhece
tamanhos excessos (artigo publicado no numero de inverno de 1951
da "Hudson Review" de Nova York), R. P. Blackmur faz a
observação de que parte consideravel da critica recente
não passa de uma anomalia nascida da suposição
ou suposição parcial, entre os criticos, "de
que a literatura e arte independente, ou autonoma ou pura, de onde
concluem que o ato critico tambem há de ser independente,
ou autonomo, se não perfeitamente puro; por isso terá
seus metodos proprios, validos para todas as circunstancias".
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