HERMETISMO E CRITICA

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 08 de maio de 1951

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Sergio Buarque de Holanda

Referindo-se, em uma das suas cartas, à dificuldade de interpretação de algumas passagens dos Sonetos de Orfeu, Rilke assinala a impertinencia das analises criticas que se fundam na explicação didatica dos textos. Pela sua propria natureza, escrevia ele a Clara Rilke, a dificuldade não é, no caso, das que requerem explicação, mas das que reclamam aquiescencia submissa.
Essa mesma passagem serviu a um critico e pensador atual —Romano Guardini— para ilustrar a distinção que, interpretada com alguma liberdade, se pode aplicar vantajosamente ao que chamamos poesia hermetica. O misterio, diz um critico, é qualitativamente diverso do problema. Este precisa ser resolvido, e uma vez resolvido, perdeu sua razão de ser; aquele —o misterio— há de ser sentido, respeitado, vivido. Misterio que se esclarece não é misterio. E embora em literatura, particularmente, possa confundir-se, às vezes, com algum ardiloso artificio nascido do simples desejo de mistificar, sua incompatibilidade fundamental com a erudição didatica associa-se geralmente a motivos bem diversos: à impossibilidade, sobretudo, de reduzi-lo a termos racionais, por conseguinte, de resolvê-lo ou sequer explicá-lo.
Um poema de Augusto dos Anjos, por exemplo, pode ser "traduzido" ou parafraseado em prosa, e suportar, neste caso, esclarecimentos didaticos destinados àqueles que não se acham familiarizados com a linguagem cientifica do autor. Corresponde, naturalmente, à epoca em que os criticos poderiam distinguir, ou distinguiam, com mais razão do que hoje, entre "forma" e "fundo" numa obra de arte, já que os elementos assim rotulados podiam, não digo dissociar-se inteiramente, porem constituir objeto de estudos a parte.
E mesmo onde o puro misterio parece dominar sem contraste, quantas vezes a aparente obscuridade de certas poesias não provem do recurso, da parte do autor, a uma especie de mitologia pessoal, cuja chave, uma vez encontrada, abrirá as portas à sua ampla compreensão? Ou então da alusão insistente a fatos, a personagens, a objetos historicos, que a generalidade dos leitores só poderá reconhecer mediante iniciação previa? Um moderno critico norte-americano, R. P. Blackmur, pôde demonstrar, por exemplo, que a escureza de certos "Cantos" de um dos mestres mais acatados da nova poesia anglo-saxonia, Ezra Pound, se dissipa, como ao toque de uma vara magica, desde que se conheçam suas fontes literarias, muitas vezes inacessiveis sem longo preparo. Quando o leitor estiver apto a distinguir as alusões greco-romanas, provençais, italianas, chinesas, que saturam sua obra poetica, então tudo se tornará claro como o dia.
Não é a essa, creio eu, que se poderia chamar razoavelmente, e em sentido estrito, poesia hermetica. E mesmo nas criações poeticas onde "forma" o "fundo" são, por assim dizer, consubstanciais e sua separação se torna, não apenas improficua, mas rigorosamente impossivel, parece licito distinguirem-se pelo menos dois tipos e hermetismo literario. Os quais corresponderiam, um tanto grosseiramente, às duas manifestações que sempre passaram por caracteristicas da poesia barroca: cultismo e conceitismo. Em outras palavras, a que procede por meio de amplificações, pela sobrecarga de elementos decorativos, e a que age, ao contrario, por um excesso de tensão e contensão.
E ainda aqui é dado, por vezes, ao interprete, fazer subir à tona e destacar, com maior ou menor exito, a estrutura racional, o esquema de referencias objetivas que serviriam para pôr certa ordem nas emoções representadas, embora nessa tentativa ora o risco de falsear por excesso de imaginação ou engenho, o verdadeiro sentido da obra examinada.
De qualquer modo, a possibilidade de explicar o que está vagamente implicito, de virar para o avesso o poema, a fim de desvendar sua face oculta, de considerar, alem disso, certos aspectos que a critica recente destacou com singular enfase, como o das conotações, das imagens chamadas funcionais, da "tonalidade" afetiva, sem desdenhar as particularidades tecnicas e formas, pode resultar numa operação quase sempre sedutora para o critico e, em alguns casos, para o leitor.
Quantas dificuldades não se apresentariam ao interprete, por outro lado, se andasse empenhado em redizer por outro meio, por meio do discurso logico e racional, o que, no caso da poesia "não hermetica", já fora dito de modo inequivoco, trocando-se em moeda corrente a linguagem sempre unica, embora, aqui, transparente, da poesia?
Nesse sentido, e em verdade só nele, parece de todo plausivel o paradoxo, sugerido por um critico moderno, John Crowe Ransom, quando escreveu que a analise dos textos dificeis é geralmente facil, ao passo que a dos textos faceis é quase sempre dificil.
Não é por acaso que, ao considerarmos certos padrões de analise que pretendem desmontar em todas as suas minucias, para melhor estudá-las, as diferentes formas de poesia, ocorrem-nos quase unicamente nomes ingleses e norte-americanos. É que essa analise corresponde, especialmente nos ultimos tempos, a certo tipo de dificuldade ou do hermetismo que se desenvolveu sobretudo na poesia dos paises de lingua inglesa, a partir de T. S. Eliot e da ultima fase do W. B. Yeats. Foi a ambição de estudar uma forma literaria refrataria, até certo ponto, aos metodos criticos habituais, o que determinou a expansão de uma nova forma de critica.
Isso não significa que os metodos de analise suscitados por aquelas dificuldades sejam totalmente invalidos se moderadamente aplicados à poesia de outras epocas e outros paises. Mesmo no Brasil, quando ainda se encontrava no apogeu a "nova critica" anglo-saxonia, um ilustre estudioso destes assuntos, o sr. Osmar Pimentel, pôde servir-se com vantagem da noção dos "plurissignos" cunhada e desenvolvida por Philip Wheelright, para a analise da linguagem poetica dos "metafisicos" ingleses do seculo XVII e de certos modernos, na interpretação de textos de Carlos Drummond de Andrade e de Cassiano Ricardo.
Foi, entretanto, na aplicação sistematica daqueles, metodos, que esse tipo de analise revelou suas limitações essenciais. Assim é que chegou a degenerar, com facilidade, numa especie de ultra-analise, procurando atribuir a obra estudada, a fim de melhor exercer-se intenções secretas que estariam menos no autor do que no critico. E assim, sob a capa enganadora do rigor e do sistema, descaiu em verdade, para um novo impressionismo, apenas mais minucioso do que aqueles que professava combater. Do assunto, que exige consideração mais atenta, procurarei tratar em artigo vindouro.
Contudo, não encerrarei o presente comentario sem referir-me a outra falada caracteristica desses metodos de critica e que é largamente responsavel pelo seu crescente descredito em nossos dias. Criados para a interpretação de determinadas formas de poesia, esses metodos mostraram-se naturalmente ineficazes, quando aplicados e formas diferentes. E em lugar de admitir a relatividade dos criterios de que usavam, os partidarios de tais criterios não hesitaram em decretar a inferioridade fundamental de todas as criações literarias que se mostrassem infensas ao seu emprego. Com isso puderam fixar um aparente hierarquia de valores, que a um exame superficial parecia fornecer-lhes a arma infalivel e sempre acessivel no combate ao impressionismo critico e ao relativismo.
De onde, tambem, os excessos de analise, os excessos de simplificação, os excessos de aplicação que, segundo reconhece hoje um dos iniciadores mais ilustres de tais metodos, constituem a patologia habitual de todas as tecnicas convertidas em metodo, de todos os metodos convertidos em metodologia. No mesmo artigo onde reconhece tamanhos excessos (artigo publicado no numero de inverno de 1951 da "Hudson Review" de Nova York), R. P. Blackmur faz a observação de que parte consideravel da critica recente não passa de uma anomalia nascida da suposição ou suposição parcial, entre os criticos, "de que a literatura e arte independente, ou autonoma ou pura, de onde concluem que o ato critico tambem há de ser independente, ou autonomo, se não perfeitamente puro; por isso terá seus metodos proprios, validos para todas as circunstancias".


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