SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
A
imagem que o público fixou de meu filho não é correta. Para o público,
Chico é tímido (antes de tudo, tímido), bonzinho, retraído. Nada
disso. Pelo menos em família e com os amigos, é completamente diferente,
um rapaz brincalhão, extrovertido, bem para fora. Quando ele aparece
em público, torna-se diferente. Talvez seja o medo de parecer ridículo.
Mas podem crer, ele não é tímido, nem bonzinho. É, sem dúvida, uma
boa pessoa. Mas não bonzinho, no sentido em que esta palavra é interpretada.
Quando criança, jamais foi um rebelde. Posso assegurar que se tratava
de uma criança normal. Procurava sempre ser independente. E essa
independência ele afirmava, procurando fazer tudo o que faziam os
irmãos mais velhos. Nem um "amor de criança", nem um "enfant terrible".
Normal. Não era nem ligado ao pai nem à mãe. Dava-se bem com todos.
Com as irmãs, tias e avós. Quando viajamos para a Itália (nesse
tempo tinha 8 anos), deixou para avó um bilhete: "Avó, vou para
Itália. Quando eu voltar, provavelmente a senhora estará morta.
Mas não se preocupe. Eu vou me tornar um cantor de rádio. É só a
senhora ligar o rádio do céu que vai me escutar". Desde menino,
sempre se interessou por música e futebol. Jogo, não perdia uma
irradiação. Seus ídolos eram Telê, do Fluminense, e Pagão, do Santos.
Na Itália, torcia pelo Genoa. Da música popular, seus ídolos eram
Ismael Silva, Caymmi e Ataulfo Alves. Mas tarde, João Gilberto,
de quem procurava imitar o estilo. Não acredito que Noel exerça
influência sobre Chico. A maior semelhança entre os dois é a temática:
urbana. Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel. Chico também
não é um compositor de classe média, como afirmam por aí. Não há
dúvida, Noel e Chico também se assemelham um pouco, porque ambos
enfocam temas urbanos. Nada mais. Aliás, há no Brasil uma mania
de Noel! Qualquer compositor que surge é imediatamente comparado
com o grande criador carioca. Creio que há um pouco de exagero em
tudo isso. Quando surgiu a bossa-nova, Chico se encontrou com ela.
Apreciava muito João Gilberto e ouvia-o seguidas vezes. Viníncius,
muito amigo da família, aparecia sempre em festas e Chico ficava
a ouvi-lo, com grande admiração. Desde cedo, Chico já tinha namorada.
Sempre foi muito vivo e alegre. Jogava futebol nas ruas, como todos
os garotos de sua idade. Quanto aos estudos, dedicava-se a eles
principalmente às vésperas de exame. Estudava duas ou três horas
seguidas, depois cansava e ia se divertir. Em 1962, quando terminou
o curso científico, foi orador da turma, provocando muitas risadas
com seu discurso cheio de humor. O sucesso não o mudou essencialmente,
chateia-o um pouco, apenas. Hoje, não pode sair às ruas sem que
lhe venham pedir autógrafos. Para ir à praia, há dificuldades, só
em São Conrado. Bem longe. Continua fiel aos amigos, embora não
tenha muito tempo para se dedicar a eles. Assim que chega a são
Paulo, telefona para todos, organiza noitada com eles. Chico sempre
viveu em bando, com muitos amigos, uma verdadeira turma. Sua formação
é, sem dúvida, paulista. Nasceu no Rio, mas quando completou 2 anos,
mudamos para São Paulo. Aqui, passou toda sua infância. Preferiu
fazer o científico porque achava que o curso clássico era coisa
de mulher. Dado momento, escolheu um ramo bem aproximado do artístico:
arquitetura. Ficava em casa criando cidades imaginárias. Todas tinham
uma fonte no meio da praça: lembrança das fontes de Roma, onde moramos
algum tempo. Chico, em vez de começar a falar, cantou. Desde que
tentou se expressar foi através da música. Mas tarde, ficava com
as irmãs aí pela sala, inventando música. Dizia que já que não conhecia
de cor música de outros compositores, era obrigado a inventar as
próprias. O sucesso veio de repente, sem que ninguém esperasse.
Recebi a notícia de que Chico tinha ganho o Festival de Música Popular
Brasileira com "A Banda", quando estava em Nova York. Um jornal
norte-americano publicou a notícia. Claro que me senti muito orgulhoso.
Cheguei à conclusão - o que uma revista publicou na época - de que,
antes, ele era meu filho. E depois do festival eu passei a ser o
pai dele. Não há posição melhor. Têm surgido boatos por aí, de que
eu componho as músicas para ele. Mas, meu Deus, quem sou eu para
ter tanto talento? Se eu soubesse escrever músicas como ele, há
muito tempo não seria eu mesmo, mas Chico Buarque de Holanda. São
boatos sem fundamentos, como muitos que vão por aí. Como essas notícias
que circulam, afirmando coisas que jamais afirmamos. Um jornal carioca
publicou que, após ver a peça "Roda Viva", eu tinha dito: "eu sabia
que havia tudo isso aí dentro do meu filho". A frase talvez pudesse
ter sido dita por mim, mas que não disse, não disse. Das suas músicas
todas, gosto mais de "A Banda", "Pedro Pedreiro", "Roda Viva" e
"Carolina". Nunca me esquecerei do dia em ouvi "A Banda" pela primeira
vez, em Nova York, na casa de um amigo. Foi uma grande emoção. Não
obstante todo o sucesso, o qual não lhe provoca muito prazer, é
bem capaz de Chico largar tudo isso e partir para uma outra coisa
qualquer, bem diferente. Ele é bem capaz disso. Muito inquieto.
Muito inteligente. Sempre gostou muito de ler. Guimarães Rosa é
um de seus autores preferidos. Quando fez "Pedro Pedreiro", inventou
uma palavra: penseiro. Talvez inspirado em Guimarães Rosa, que também
era dado a inventar palavras. Tolstoi e Dostoiévski também eram
seus favoritos. Assim como Kafka. Em geral, ele ia lendo tudo o
que caía em suas mãos. A música é responsável por ele ter abandonado
o curso de arquitetura, decisão que tomou sozinho. O sucesso abriu
uma impossibilidade de estudar. Excesso de compromissos, solicitações.
Creio que, na música, ele se realiza mais, se torna muito mais feliz.
É preferível um compositor realizado, que um arquiteto frustado,
como todo mundo sabe. Quando vai compor, geralmente fica isolado,
no quarto, sozinho. A música e a letra sempre nascem juntas, uma
ligada à outra, indissoluvelmente. Encontrou grande dificuldade
em musicar "Morte e Vida Severina", porque a letra não era sua.
Desde que aprendeu a tocar violão, com sua irmã Heloisa, hoje casada
com João Gilberto e morando em Nova York, nunca mais deixou de compor.
Sua adolescência foi normal, sem nenhum conflito especial. Posso
considerá-lo um rapaz feliz. Suas primeiras composições falavam
de amor. Mais tarde, quando ingressou na faculdade, passou a fazer
música de participação, sendo que a primeira foi "Pedro Pedreiro".
A família ficou um pouco tonta com o sucesso tão fulminante, tão
rápido. Mas já nos acostumamos. Chico é que não se habituou a ele.
Ficou muito contente de ter ido a Paris, porque ninguém o conhecia
por lá. Talvez o sucesso tenha provocado uma espécie de defesa,
tornando-o um pouco retraído. De fato, meu filho não é tímido. É
bem diferente a imagem que temos dele. Trata-se de uma pessoa normal,
alegre, sem problemas graves de personalidade. Eu sei o que eu estou
falando. Sou seu pai há 23 anos.
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