Moacyr
Scliar
1. O homem que inventou a roda
Primeiro
foram os operários menos especializados, depois os mais especializados,
e por fim chegou a vez dos executivos: Helmuth Mayer foi despedido
da fábrica de automóveis onde trabalhava. Tratava-se
de um administrador competente e criativo, mas, como disse o diretor,
era necessário provar que nem mesmo os altos escalões
estavam imunes e assim mandaram-no embora.
Ao receber a notícia de sua demissão Helmuth Mayer
não disse nada. Entrou em seu carro, ligou a máquina
e tomou o rumo de casa...
Tomou o rumo de casa, mas não chegou lá. No caminho
aconteceu-lhe uma coisa muito estranha. Deteve-se numa esquina e
de repente esqueceu que marcha tinha de engatar para arrancar. Pior:
nem sabia para que servia a alavanca de câmbio, nem o volante,
nada. Um caso de amnésia traumática, naturalmente,
mas Helmuth Mayer não sabia que isso existia, ou se sabia,
tinha esquecido também. Tinha esquecido tudo. Não
se sentia mal por causa desta situação: um pouco esquisito,
apenas. Mas alegre, como se tivesse bebido algo delicioso e inebriante.
Buzinavam furiosamente atrás dele. Não deu importância
aos vociferantes motoristas: abriu a porta do carro e saiu andando,
sem destino. Lá pelas tantas deu-se conta de que carregava
sua pasta de executivo; mas como tal objeto já não
lhe significava nada, e era pesado, jogou-o fora. E também
se desfez do paletó e da gravata, porque fazia calor.
Caminhando sempre, chegou ao limite da cidade, embrenhou-se pelo
mato e foi indo, até que já não avistava nenhum
vestígio da civilização. Naquela noite, dormiu
ao relento. No dia seguinte, livrou-se das roupas; sentia-se melhor
sem elas. Teve fome; movido por puro instinto, comeu umas frutinhas,
aliás muito gostosas. E movido por este instinto foi sobrevivendo.
Nos dias que se seguiram aprenderia a pescar e a caçar e
até a plantar alguma coisa. A família procurou-o desesperada,
mobilizando polícia, amigos, detetives particulares. Não
o encontrando, concluíram que se tinha suicidado e desistiram
de procurá-lo. Com o tempo, todos acabaram por esquecê-lo.
Helmuth, entretanto, vivia feliz. Ele não sabia que era feliz,
porque tinha esquecido o significado desta palavra, de todas as
palavras, mas era feliz.
Até que um dia fez uma roda.
Isso mesmo: trabalhando com seu machado de pedra num tronco roliço,
fez uma roda. Não sabia que aquilo se chamava roda, mas gostou
da coisa porque rodava. Aí lhe ocorreu fazer um orifício
na roda e colocar um eixo. Um pouco mais adiante já tinha
as quatro rodas, estava pensando no chassi e no motor. E de repente
se lembrava do nome das coisas: roda, chassi, motor.
Foi então que começou a desconfiar que aquela coisa
podia não dar certo. Mas agora ia adiante. Já que
tinha começado ia adiante. E ficou pensando em quem botaria
na rua quando tivesse sua fábrica de automóveis.
2.
A maior moeda do mundo
Numa
tarde de primavera, ao cobrar uma antiga dívida, um homem
realiza um sonho longamente acalentado.
Todo o dinheiro do país - moedas de cobre, de prata e até
mesmo de ouro - agora lhe pertence. Todo o dinheiro. Uma proeza
que até mesmo o mais visionário dos financistas julgaria
impossível. Todo o meio circulante de um país - nas
mãos de uma só pessoa! É verdade que o país
é muito pequeno e muito pobre, mas isto não chega
a diminuir as proporções do feito, único na
história da humanidade.
E o que faz o homem? Não perde tempo se vangloriando, não
dormirá sobre os louros da vitória. O êxito
que obteve faz parte de um plano e a este ele dará prosseguimento.
Chama seus assessores, manda retirar dos depósitos secretos
as moedas. Caixas e caixas são trazidas pelos guardas armados.
O conteúdo delas, milhões de moedas, é despejado
no grande forno há anos conservado aceso justamente para
esta ocasião. Fundidores e cunhadores trabalham ativamente...
Pela manhã a população é convocada,
por arautos, a comparecer à praça principal da capital.
Ali, de pé num grande palanque, o rosto resplandecendo de
orgulho, está o homem.
Atrás dele, o sonho de uma vida: uma gigantesca moeda, a
maior moeda do mundo, sem dúvida, pois tem três metros
de diâmetro. Foi obtida pela fusão de todas as outras
moedas. Numa das faces, a efígie do dono: na outra, nada.
E deveria ter algo? O valor? Mas que valor? É incalculável,
o valor desta moeda, é fenômeno que ultrapassou os
limites da ciência das finanças. Todos olham fascinados
o gigantesco disco de metal que brilha ao sol. Fascinados e indecisos.
Indecisos quanto ao que fazer. Pois, eles podem reconhecer o dono
da moeda como mestre e senhor, e prostrar-se diante dele; ou podem,
revoltando-se, arremeter contra o palanque, derrubando-o, arrebatando
a moeda, derretendo o cunhando de novo o dinheiro tal como o conhecem
- ou podem, considerando a infelicidade trazida por esse dinheiro
(saúde arruinada de trabalhadores, suicidas da Bolsa etc.)
jogar a moeda ao mar e voltar ao sistema de trocas. Podem mirar-se
na superfície polida, rindo. Podem rodar a moeda pela cidade,
sempre rindo.
O momento é de indecisão. Um breve momento, mas é
justamente este o instante que o homem aproveita par desfrutar o
grande prazer de sua vida.
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