FÁBULAS ECONÔMICAS

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 4 de outubro de 1981

Moacyr Scliar

1. O homem que inventou a roda

Primeiro foram os operários menos especializados, depois os mais especializados, e por fim chegou a vez dos executivos: Helmuth Mayer foi despedido da fábrica de automóveis onde trabalhava. Tratava-se de um administrador competente e criativo, mas, como disse o diretor, era necessário provar que nem mesmo os altos escalões estavam imunes e assim mandaram-no embora.
Ao receber a notícia de sua demissão Helmuth Mayer não disse nada. Entrou em seu carro, ligou a máquina e tomou o rumo de casa...
Tomou o rumo de casa, mas não chegou lá. No caminho aconteceu-lhe uma coisa muito estranha. Deteve-se numa esquina e de repente esqueceu que marcha tinha de engatar para arrancar. Pior: nem sabia para que servia a alavanca de câmbio, nem o volante, nada. Um caso de amnésia traumática, naturalmente, mas Helmuth Mayer não sabia que isso existia, ou se sabia, tinha esquecido também. Tinha esquecido tudo. Não se sentia mal por causa desta situação: um pouco esquisito, apenas. Mas alegre, como se tivesse bebido algo delicioso e inebriante. Buzinavam furiosamente atrás dele. Não deu importância aos vociferantes motoristas: abriu a porta do carro e saiu andando, sem destino. Lá pelas tantas deu-se conta de que carregava sua pasta de executivo; mas como tal objeto já não lhe significava nada, e era pesado, jogou-o fora. E também se desfez do paletó e da gravata, porque fazia calor.
Caminhando sempre, chegou ao limite da cidade, embrenhou-se pelo mato e foi indo, até que já não avistava nenhum vestígio da civilização. Naquela noite, dormiu ao relento. No dia seguinte, livrou-se das roupas; sentia-se melhor sem elas. Teve fome; movido por puro instinto, comeu umas frutinhas, aliás muito gostosas. E movido por este instinto foi sobrevivendo. Nos dias que se seguiram aprenderia a pescar e a caçar e até a plantar alguma coisa. A família procurou-o desesperada, mobilizando polícia, amigos, detetives particulares. Não o encontrando, concluíram que se tinha suicidado e desistiram de procurá-lo. Com o tempo, todos acabaram por esquecê-lo.
Helmuth, entretanto, vivia feliz. Ele não sabia que era feliz, porque tinha esquecido o significado desta palavra, de todas as palavras, mas era feliz.
Até que um dia fez uma roda.
Isso mesmo: trabalhando com seu machado de pedra num tronco roliço, fez uma roda. Não sabia que aquilo se chamava roda, mas gostou da coisa porque rodava. Aí lhe ocorreu fazer um orifício na roda e colocar um eixo. Um pouco mais adiante já tinha as quatro rodas, estava pensando no chassi e no motor. E de repente se lembrava do nome das coisas: roda, chassi, motor.
Foi então que começou a desconfiar que aquela coisa podia não dar certo. Mas agora ia adiante. Já que tinha começado ia adiante. E ficou pensando em quem botaria na rua quando tivesse sua fábrica de automóveis.

2. A maior moeda do mundo

Numa tarde de primavera, ao cobrar uma antiga dívida, um homem realiza um sonho longamente acalentado.
Todo o dinheiro do país - moedas de cobre, de prata e até mesmo de ouro - agora lhe pertence. Todo o dinheiro. Uma proeza que até mesmo o mais visionário dos financistas julgaria impossível. Todo o meio circulante de um país - nas mãos de uma só pessoa! É verdade que o país é muito pequeno e muito pobre, mas isto não chega a diminuir as proporções do feito, único na história da humanidade.
E o que faz o homem? Não perde tempo se vangloriando, não dormirá sobre os louros da vitória. O êxito que obteve faz parte de um plano e a este ele dará prosseguimento. Chama seus assessores, manda retirar dos depósitos secretos as moedas. Caixas e caixas são trazidas pelos guardas armados. O conteúdo delas, milhões de moedas, é despejado no grande forno há anos conservado aceso justamente para esta ocasião. Fundidores e cunhadores trabalham ativamente...
Pela manhã a população é convocada, por arautos, a comparecer à praça principal da capital. Ali, de pé num grande palanque, o rosto resplandecendo de orgulho, está o homem.
Atrás dele, o sonho de uma vida: uma gigantesca moeda, a maior moeda do mundo, sem dúvida, pois tem três metros de diâmetro. Foi obtida pela fusão de todas as outras moedas. Numa das faces, a efígie do dono: na outra, nada. E deveria ter algo? O valor? Mas que valor? É incalculável, o valor desta moeda, é fenômeno que ultrapassou os limites da ciência das finanças. Todos olham fascinados o gigantesco disco de metal que brilha ao sol. Fascinados e indecisos. Indecisos quanto ao que fazer. Pois, eles podem reconhecer o dono da moeda como mestre e senhor, e prostrar-se diante dele; ou podem, revoltando-se, arremeter contra o palanque, derrubando-o, arrebatando a moeda, derretendo o cunhando de novo o dinheiro tal como o conhecem - ou podem, considerando a infelicidade trazida por esse dinheiro (saúde arruinada de trabalhadores, suicidas da Bolsa etc.) jogar a moeda ao mar e voltar ao sistema de trocas. Podem mirar-se na superfície polida, rindo. Podem rodar a moeda pela cidade, sempre rindo.
O momento é de indecisão. Um breve momento, mas é justamente este o instante que o homem aproveita par desfrutar o grande prazer de sua vida.

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