1961, A NOSSA QUASE GUERRA

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 23 de agosto de 1981

HÁ 20 ANOS, A "LEGALIDADE" MOBILIZOU O RIO GRANDE DO SUL PARA UMA GUERRA QUE NÃO ACONTECEU

Moacyr Scliar

Vinte anos decorrido desde o episódio da Legalidade, no Rio Grande do Sul ainda não se tem uma perspectiva adequada dos acontecimentos. É possível que os historiadores um dia venham a considerar a Legalidade o equivalente não violento de maio de 1968 em Paris. É possível que se diga que o País nunca esteve tão próximo de uma mudança estrutural, ao menos no pós-guerra. De qualquer modo vale a pena lembrar agosto de 1961.
Recordemos: tudo começou com a renúncia do presidente Jânio Quadros. Que fim terá levado ele? Interessante que há agora um político de mesmo nome fazendo declarações, mas não creio que seja a mesma pessoa. Para se identificar como ex-presidente, o senhor Jânio deveria passar por um teste crucial: explicar o que vem a ser "forças ocultas". Para mim, tal expressão sempre sugeriu o título potencial de um romance de Harold Robbins (sinopse: milionário do jet-set passa por uma crise terrível, traído pela mulher e pelo secretário, à beira da falência e sofrendo de sarna. Graças a uma jovem adolescente reúne suas forças ocultas etc.).
De qualquer maneira, o Presidente renunciou, deveria assumir o vice, João Goulart que no momento se encontrava fazendo uma viagem à China. Houve oposição, ameaça de golpe, a confusão habitual em países latino-americanos numa situação dessas. Mas isso em Brasília e no Rio. Em Porto Alegre...
Porto Alegre, agosto de 1961. Eu era estudante de medicina. Detalhe importante, porque à época era grande a efervescência nos meios universitários. Como estudante de medicina, eu já tinha uma amarga vivência da miséria, nas enfermarias da Santa Casa, nas vilas populares onde trabalhava como plantonista da Previdência Social. Passávamos horas discutindo, no Centro Acadêmico ou no bar em frente ao hospital. Para nós já estava claro que os problemas sociais do País não seriam resolvidos com os bilhetinhos do Presidente (proibindo rinhas de galo, por exemplo) e nem com suas condecorações par Che Guevara. Sabíamos que algo estava por vir, mas não esperávamos - acho que ninguém esperava - que a coisa ocorresse tão depressa. De repente tinha havido a renúncia, e o golpe estava a caminho e Brizola anunciava que estava disposto a resistir.
A primeira reação foi de perplexidade. Rapidamente, porém, a situação ganhou contornos dramáticos. Já não lembro detalhes, nem meu propósito é fazer um relato factual, mas tão-somente transmitir um pouco do estado de espírito reinante naqueles dias. De qualquer maneira houve um momento em que Brizola começou a receber o apoio da população; e aí desencadeou-se o que foi talvez a maior mobilização popular no Rio Grande do Sul. Comitês formavam-se em todas as partes, grupos organizados surgiam da noite para o dia; as emissoras de rádio juntavam-se à Cadeia da Legalidade (a primeira delas, a Guaíba, tinha sido requisitada pelo governador) e mesmo os adversários de Brizola resolveram optar pela adesão, ou, pelo menos, por um silêncio prudente. E que o clima era nervoso, de véspera de guerra; afinal, os interlocutores de Brizola eram os ministros militares e, para enfrentar as Forças Armadas, o governo estadual só dispunha dos contingentes da Brigada Militar (naquele tempo, chamada de "briosa").
A grande incógnita dizia respeito à posição do Terceiro Exército, comandado pelo general Machado Lopes. Diante da possibilidade de um conflito armado, preparativos foram adotados. Cruzes vermelhas foram pintadas nos telhados dos hospitais, para protegê-los dos bombardeios aéreos; havia postos para inscrição de doadores de sangue; e no pátio da sede da Federação dos Estudantes, universitários faziam ordem unida. Pouco acostumados a este tipo de disciplina, os jovens frenquentemente erravam as vozes de comando. Ideologicamente, todo o mundo sabia o que era esquerda e direita; à voz de esquerda, volver, contudo, não eram poucos os que viravam par a direita. Como em maio de 68 na França, os estudantes tinham um papel importante nos acontecimentos.
No esforço de mobilizar a população, sucediam-se os comícios, as reuniões, as concentrações na frente do Palácio. Numa destas, à noite, caiu um pesado aguaceiro. Eu estava lá, como outros estudantes de Medicina, todo molhado; e aí avistei um colega com guarda-chuva - fechado. Abre o guarda-chuva, eu disse. E ele, dramático:
- Contra balas não adianta guarda-chuva.
Tinha razão, embora no momento não estivéssemos sob uma chuva de balas.
Mas era o que se esperava, uma chuva de balas. Na manhã do dia seguinte correu a notícia que o comandante do Terceiro Exército tinha decidido atacar o Palácio e que os tanques do Regimento da Serraria, zona sul da cidade, já estavam a caminho. O clima que se criou foi de terror. Os estudantes começaram a construir barricadas, utilizando os bancos da Praça da Matriz. Entre eles estava o (hoje conhecido jornalista) Marcos Faerman, na época ainda um garoto. Tentando arrastar um banco o pobre Marcos chorava como um bebê; pediu-me que dissesse a seus país o quanto gostara deles, pois não esperava escapar vivo daquela.
Os tanques não vieram. Machado Lopes aderiu ao governador e comprometeu-se a defender a Constituição. Mas a mobilização popular agora adquirira autonomia, já não eram só os estudantes: também os trabalhadores da Carris marchavam pela cidade, o movimento começava a ter repercussão em outros Estados.
E foi então que João Goulart voltou - para assumir o cargo. Uma imensa multidão concentrou-se na Praça da Matriz para saudá-lo. Jango veio à sacada do Palácio, sorridente, abanou para a multidão - e não falou. No dia seguinte, vi um jacaré empalhado pendendo de uma árvore na Avenida Oswaldo Aranha, com um letreiro: Jango. Vou para as montanhas, me disse um jovem universitário, continuar a luta. Não foi, naturalmente; a cidade voltou a seu ritmo normal, as coisas da política sendo decididas em Brasília e no Rio. Os tanques voltaram a se movimentar, mas isso já em 1964 - outra história.

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