HÁ
20 ANOS, A "LEGALIDADE" MOBILIZOU O RIO GRANDE DO SUL
PARA UMA GUERRA QUE NÃO ACONTECEU
Moacyr
Scliar
Vinte anos decorrido desde o episódio da Legalidade, no Rio
Grande do Sul ainda não se tem uma perspectiva adequada dos
acontecimentos. É possível que os historiadores um
dia venham a considerar a Legalidade o equivalente não violento
de maio de 1968 em Paris. É possível que se diga que
o País nunca esteve tão próximo de uma mudança
estrutural, ao menos no pós-guerra. De qualquer modo vale
a pena lembrar agosto de 1961.
Recordemos: tudo começou com a renúncia do presidente
Jânio Quadros. Que fim terá levado ele? Interessante
que há agora um político de mesmo nome fazendo declarações,
mas não creio que seja a mesma pessoa. Para se identificar
como ex-presidente, o senhor Jânio deveria passar por um teste
crucial: explicar o que vem a ser "forças ocultas".
Para mim, tal expressão sempre sugeriu o título potencial
de um romance de Harold Robbins (sinopse: milionário do jet-set
passa por uma crise terrível, traído pela mulher e
pelo secretário, à beira da falência e sofrendo
de sarna. Graças a uma jovem adolescente reúne suas
forças ocultas etc.).
De qualquer maneira, o Presidente renunciou, deveria assumir o vice,
João Goulart que no momento se encontrava fazendo uma viagem
à China. Houve oposição, ameaça de golpe,
a confusão habitual em países latino-americanos numa
situação dessas. Mas isso em Brasília e no
Rio. Em Porto Alegre...
Porto Alegre, agosto de 1961. Eu era estudante de medicina. Detalhe
importante, porque à época era grande a efervescência
nos meios universitários. Como estudante de medicina, eu
já tinha uma amarga vivência da miséria, nas
enfermarias da Santa Casa, nas vilas populares onde trabalhava como
plantonista da Previdência Social. Passávamos horas
discutindo, no Centro Acadêmico ou no bar em frente ao hospital.
Para nós já estava claro que os problemas sociais
do País não seriam resolvidos com os bilhetinhos do
Presidente (proibindo rinhas de galo, por exemplo) e nem com suas
condecorações par Che Guevara. Sabíamos que
algo estava por vir, mas não esperávamos - acho que
ninguém esperava - que a coisa ocorresse tão depressa.
De repente tinha havido a renúncia, e o golpe estava a caminho
e Brizola anunciava que estava disposto a resistir.
A primeira reação foi de perplexidade. Rapidamente,
porém, a situação ganhou contornos dramáticos.
Já não lembro detalhes, nem meu propósito é
fazer um relato factual, mas tão-somente transmitir um pouco
do estado de espírito reinante naqueles dias. De qualquer
maneira houve um momento em que Brizola começou a receber
o apoio da população; e aí desencadeou-se o
que foi talvez a maior mobilização popular no Rio
Grande do Sul. Comitês formavam-se em todas as partes, grupos
organizados surgiam da noite para o dia; as emissoras de rádio
juntavam-se à Cadeia da Legalidade (a primeira delas, a Guaíba,
tinha sido requisitada pelo governador) e mesmo os adversários
de Brizola resolveram optar pela adesão, ou, pelo menos,
por um silêncio prudente. E que o clima era nervoso, de véspera
de guerra; afinal, os interlocutores de Brizola eram os ministros
militares e, para enfrentar as Forças Armadas, o governo
estadual só dispunha dos contingentes da Brigada Militar
(naquele tempo, chamada de "briosa").
A grande incógnita dizia respeito à posição
do Terceiro Exército, comandado pelo general Machado Lopes.
Diante da possibilidade de um conflito armado, preparativos foram
adotados. Cruzes vermelhas foram pintadas nos telhados dos hospitais,
para protegê-los dos bombardeios aéreos; havia postos
para inscrição de doadores de sangue; e no pátio
da sede da Federação dos Estudantes, universitários
faziam ordem unida. Pouco acostumados a este tipo de disciplina,
os jovens frenquentemente erravam as vozes de comando. Ideologicamente,
todo o mundo sabia o que era esquerda e direita; à voz de
esquerda, volver, contudo, não eram poucos os que viravam
par a direita. Como em maio de 68 na França, os estudantes
tinham um papel importante nos acontecimentos.
No esforço de mobilizar a população, sucediam-se
os comícios, as reuniões, as concentrações
na frente do Palácio. Numa destas, à noite, caiu um
pesado aguaceiro. Eu estava lá, como outros estudantes de
Medicina, todo molhado; e aí avistei um colega com guarda-chuva
- fechado. Abre o guarda-chuva, eu disse. E ele, dramático:
- Contra balas não adianta guarda-chuva.
Tinha razão, embora no momento não estivéssemos
sob uma chuva de balas.
Mas era o que se esperava, uma chuva de balas. Na manhã do
dia seguinte correu a notícia que o comandante do Terceiro
Exército tinha decidido atacar o Palácio e que os
tanques do Regimento da Serraria, zona sul da cidade, já
estavam a caminho. O clima que se criou foi de terror. Os estudantes
começaram a construir barricadas, utilizando os bancos da
Praça da Matriz. Entre eles estava o (hoje conhecido jornalista)
Marcos Faerman, na época ainda um garoto. Tentando arrastar
um banco o pobre Marcos chorava como um bebê; pediu-me que
dissesse a seus país o quanto gostara deles, pois não
esperava escapar vivo daquela.
Os tanques não vieram. Machado Lopes aderiu ao governador
e comprometeu-se a defender a Constituição. Mas a
mobilização popular agora adquirira autonomia, já
não eram só os estudantes: também os trabalhadores
da Carris marchavam pela cidade, o movimento começava a ter
repercussão em outros Estados.
E foi então que João Goulart voltou - para assumir
o cargo. Uma imensa multidão concentrou-se na Praça
da Matriz para saudá-lo. Jango veio à sacada do Palácio,
sorridente, abanou para a multidão - e não falou.
No dia seguinte, vi um jacaré empalhado pendendo de uma árvore
na Avenida Oswaldo Aranha, com um letreiro: Jango. Vou para as montanhas,
me disse um jovem universitário, continuar a luta. Não
foi, naturalmente; a cidade voltou a seu ritmo normal, as coisas
da política sendo decididas em Brasília e no Rio.
Os tanques voltaram a se movimentar, mas isso já em 1964
- outra história.
|