COLEÇÕES SINTETIZAM 80 ANOS DE HISTÓRIA

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2000


Pedro Alexandre Sanches

 

A coleção "História do Samba", lançada pela editora Globo e pela gravadora BMG (antes RCA), leva pela primeira vez ao freguês de banca de jornal, em periodicidade semanal, uma historiografia do gênero em 40 fascículos, cada qual acompanhado de um CD.

Lançada inicialmente só no Sudeste e no Sul, a série (hoje no décimo volume) entrou vendendo 120 mil exemplares. "Coleções de banca costumam ter uma curva descendente de vendagens.

No número 6, estávamos em 45 mil exemplares", afirma o diretor de marketing para fascículos da editora Globo, Heitor Paixão.

Ele acredita na sinergia entre samba da antiga e pagode "moderno". "Com certeza o pagode puxa o interesse pela história do samba. O pagode se popularizou entre os jovens, que agora acabam se interessando também pelos grandes sambistas." "A idéia era fazer uma obra importante, de referência para o samba. Ninguém ganha milhões com isso, mas é uma oportunidade de as pessoas conhecerem um monte de coisa rara", diz o gerente de marketing estratégico da BMG, Marcelo Falcão.

Ele tributa a "febre de samba" menos à explosão do pagode de rádio que ao revigoramento das carreiras de dois sambistas "clássicos", Paulinho da Viola e Martinho da Vila. "Paulinho é um grande mestre, sua volta ao mercado carrega tudo isso aí junto", afirma.

A EMI, que acaba de relançar também a obra completa da sambista histórica Clara Nunes, se aprofunda no jogo comprimindo em duas caixinhas de três CDs cada (leia texto nesta página) sua versão para os 80 anos de história.

A coleção sintetiza o que aconteceu na EMI (antes Odeon) entre o lançamento do compacto "Pelo Telefone" —popularizado como "primeira gravação classificada como samba a alcançar sucesso comercial"—, em 1917, e o pagode do Só Preto sem Preconceito. A gerente de marketing estratégico da gravadora, Sônia Antunes, que coordena o projeto, rejeita a idéia de que pagode e axé "puxem" a volta do samba de raiz. "Acho que se trata de uma resposta indireta ao pagode e ao Tchan que estão por aí. Acho que Paulinho da Viola, ganhando seu primeiro disco de ouro com 'Bebadosamba', é que deslanchou esse processo", diz.

O responsável pela execução da coleção "História do Samba", o jornalista e artista gráfico Elifas Andreato, prefere o meio termo. "O pagode saturou o mercado de tal forma, ficou tudo tão igual, que se tornou necessário mostrarmos o que é o samba, de fato. Mas pelo menos o pagode afastou a música americana, o que contribuiu para a redescoberta do samba por uma geração em busca de identidade", afirma. Ele nega que a hegemonia do pagode e da axé —num cenário em que a MPB ocupa, hoje, 70% do mercado nacional— resulte numa espécie de "reserva de mercado" de música brasileira. "A música internacional, seja boa ou ruim, continua chegando. O que se pode hoje é despertar o público para a música nacional", afirma.

 

SÉRIE "APOTEOSE DO SAMBA" É CONVITE À REFLEXÃO

da Reportagem Local

Se pesquisas de vendagem continuam a povoar o mercado com música de qualidade esguia — é só olhar a lista dos vitoriosos de 97—, artistas novos continuam tímidos e pouca coisa acontece por aí, não resta muito mais que o deleite proporcionado por glórias passadas. É o que tem oferecido, em pílulas, a coleção de banca "História do Samba", ainda que alicerçada sobre textos e disposições de gravações por vezes confusos. E é, em especial, o que oferece o tratado "Apoteose ao Samba", abrasadora coleção projetada pelo jornalista Tárik de Souza que abriga muito do que de mais elevado se produziu em música popular neste século 20 no Brasil.

Os incômodos devem ser ressaltados logo de início. Em geral, limitando-se pela posse de fonogramas, a seleção atropela peças fundamentais que não estivessem em seus arquivos.

OK, a EMI é, justamente com a BMG —que lança a outra coleção—, a grande mina d'água desse setor. Ainda assim, perguntas implicantes são inevitáveis: onde estão os primórdios de Orlando Silva, as marchinhas carnavalescas de Emilinha Borba, Linda e Dircinha Batista, Jacob do Bandolim, Elizeth Cardoso, os afro-sambas de Baden Powell, o samba de moça de Nara Leão, o baiano Batatinha, os malacos Jair Rodrigues, Martinho da Vila, Bezerra da Silva e Alcione...?

Não estão, de fato.

Bem, não caberiam todos mesmo, e os que couberam constituem, de qualquer forma, um painel impressionante, irretocável mesmo que retocável.

A construção da coletânea é primorosa. Usa o critério cronológico de composição, mas não necessariamente de gravação de cada versão eleita. Isso causa contrastes elucidativos, que fazem da coleção um convite à reflexão.

Tal acontece, por exemplo, em sequência que começa com os pândegos Lamartine Babo e Mário Reis exalando machismo em "Só Dando com uma Pedra Nela" (1932), de Babo. Corte. Entra "Arrasta a Sandália", um dos primeiros sucessos de Moreira da Silva, o rei do samba de breque. A versão, no entanto, é de 68, levada pelos magníficos Cinco Crioulos (Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Mauro Duarte, Nelson Sargento e Anescar), em instrumental batuqueiro de entortar a leitora laser. Corte. O samba seguinte, ''Agora É Cinza'', um dos mais lindos de sempre, é de Bide e Marçal, datado de 1934. A versão escolhida, no entanto, é puro choque: o galante Lúcio Alves, um dos melhores cantores de sempre, internacionaliza o samba e nacionaliza a delicadeza, em 1959, em plena eclosão da bossa nova. A sequência continua: cantando "Conversa de Botequim", Noel Rosa se revela um pré-Lúcio Alves, pela tranquilidade vocal; a seguir, Silvio Caldas reinstala a turbulência e a ortodoxia em "Minha Palhoça", que depois serviria de matriz para Caetano no diálogo inovador de sua "Tropicália" (esta, naturalmente, ausente da coletânea).

Outra sequência é demonstrativa. Carmen Miranda abre o segundo CD, fincando trinados que zombeteiam (e reverenciam) o canto lírico em "Adeus, Batucada", de Synval Silva —isso em 1935. Corte. Carlos Cachaça quebra o ritmo, em gravação de 40 anos depois, em "Não Quero Mais Amar a Ninguém", dele, de Zé da Zilda e de Cartola —que só se tornaria famoso mesmo 30 anos depois. Corte. Seguem-se duas tríades dialéticas: Noel ("Último Desejo"), Assis Valente ("Camisa Listada") e Lupicinio Rodrigues ("Se Acaso Você Chegasse") vêem a cronologia de seus sambas ser bagunçada por versões de cantoras de três gerações divergentes —pela ordem, Maria Bethânia (68) e samba-bolero, Carmen Miranda (38) e samba-ópera, Elza Soares (59) e samba-jazz. Sem cortes. "Chega de Saudade". Nem sempre a estratégia funciona.

Para ilustrar o advento da bossa nova, bem no meio da coleção, surge "Chega de Saudade". Mas não comparece João Gilberto —a gravadora tem ao menos a fineza de explicar, em encarte, os "problemas contratuais"—, e sim Joyce. O samba sai de cena, como sai também quando Leila Pinheiro encerra a caixa cantando "Catavento e Girassol". O que parece tropeço aqui e ali se revela capricho das divindades musicais.

O "Samba de Uma Nota Só", outro ''standard'' de João, vem em versão anedótica do instrumentista Laurindo Almeida. Seria um pequeno vexame, não houvesse a versão do mesmo Laurindo para "Desafinado" sido sampleada, ano passado, em "Readymade", do pop star norte-americano Beck.

Trata-se de laço com a contemporaneidade que se torna prova evidente do alcance tentacular do samba terceiro-mundista que o Brasil legou ao mundo, aqui sob a figura da bossa nova. Entre os altos e os baixos, a história do samba desfila, hiperbólica. Nos primeiros três CDs, enfileiram-se João da Baiana, Aracy Cortes, Pixinguinha, Patrício Teixeira, Almirante, Ismael Silva, Francisco Alves, Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ataulfo, Dalva & Herivelto, João de Barro & Alberto Ribeiro, Custódio Mesquita, Pedro Caetano, Monsueto, Isaura Garcia... "Chega de Saudade" pulveriza o samba em zil modalidades. Na segunda caixinha, concorrem sambistas "cool" (Antonio Maria & Dolores Duran, Tito Madi, Sylvia Telles, João Donato, Chico Buarque, Nana Caymmi, Djavan), políticos (Sérgio Ricardo, Marcos Valle, Gonzaguinha), "alienados" (Wilson Simonal, Jorge Ben), sambistas do morro (Zé Keti, Cartola, Nelson Cavaquinho), excêntricos (Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Odete Amaral, Aniceto do Império)...

Em raríssima versão vocal de "Manhã de Carnaval", Luiz Bonfá, precursor e co-inaugurador da bossa, faz a ponte com o sambista-símbolo do novo momento _o da reestruturação do samba, à parte bossas, tropicalismos, rocks, pagodes, axés: Paulinho da Viola. Aí se vê que ele liderou (ladeado por artistas como Clara Nunes, Candeia, Hermínio Bello de Carvalho, Ivone Lara) uma geração que soube recolher o melhor da velha guarda (Orlando Silva, Noel, Assis Valente), da média guarda (Lúcio Alves, Dick Farney, Cyro Monteiro, Elizeth), da jovem guarda (Caetano, Roberto, Chico, Bethânia), a um tempo reverenciando e ignorando o mestre João. Era um instante inédito ao samba, que a caixa faz suspeitar que se tenha atomizado em poeira de estrela. Pois os anos 80 em diante são ralos em "Apoteose ao Samba".

Certo, seria constrangedor terminar com Só pra Contrariar e coisas assim, e o apêndice Só Preto sem Preconceito, que aparece lá no final, parece só constar para incluir a participação especial de Martinho da Vila.

Seja qual for a razão da supressão, a conclusão é inevitável: segundo a história da EMI, o samba acabou lá por 1982, melancolicamente, com Gonzaguinha. Mais motivo para reflexão.

Caixas: Apoteose ao Samba 1 e 2
Gravadora: EMI



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