A coleção "História do Samba", lançada pela editora
Globo e pela gravadora BMG (antes RCA), leva pela primeira
vez ao freguês de banca de jornal, em periodicidade
semanal, uma historiografia do gênero em 40 fascículos,
cada qual acompanhado de um CD.
Lançada
inicialmente só no Sudeste e no Sul, a série (hoje no
décimo volume) entrou vendendo 120 mil exemplares. "Coleções
de banca costumam ter uma curva descendente de vendagens.
No
número 6, estávamos em 45 mil exemplares", afirma o
diretor de marketing para fascículos da editora Globo,
Heitor Paixão.
Ele
acredita na sinergia entre samba da antiga e pagode
"moderno". "Com certeza o pagode puxa o interesse pela
história do samba. O pagode se popularizou entre os
jovens, que agora acabam se interessando também pelos
grandes sambistas." "A idéia era fazer uma obra importante,
de referência para o samba. Ninguém ganha milhões com
isso, mas é uma oportunidade de as pessoas conhecerem
um monte de coisa rara", diz o gerente de marketing
estratégico da BMG, Marcelo Falcão.
Ele
tributa a "febre de samba" menos à explosão do pagode
de rádio que ao revigoramento das carreiras de dois
sambistas "clássicos", Paulinho da Viola e Martinho
da Vila. "Paulinho é um grande mestre, sua volta ao
mercado carrega tudo isso aí junto", afirma.
A
EMI, que acaba de relançar também a obra completa da
sambista histórica Clara Nunes, se aprofunda no jogo
comprimindo em duas caixinhas de três CDs cada (leia
texto nesta página) sua versão para os 80 anos de história.
A
coleção sintetiza o que aconteceu na EMI (antes Odeon)
entre o lançamento do compacto "Pelo Telefone" popularizado
como "primeira gravação classificada como samba a alcançar
sucesso comercial", em 1917, e o pagode do Só
Preto sem Preconceito. A gerente de marketing estratégico
da gravadora, Sônia Antunes, que coordena o projeto,
rejeita a idéia de que pagode e axé "puxem" a volta
do samba de raiz. "Acho que se trata de uma resposta
indireta ao pagode e ao Tchan que estão por aí. Acho
que Paulinho da Viola, ganhando seu primeiro disco de
ouro com 'Bebadosamba', é que deslanchou esse processo",
diz.
O
responsável pela execução da coleção "História do Samba",
o jornalista e artista gráfico Elifas Andreato, prefere
o meio termo. "O pagode saturou o mercado de tal forma,
ficou tudo tão igual, que se tornou necessário mostrarmos
o que é o samba, de fato. Mas pelo menos o pagode afastou
a música americana, o que contribuiu para a redescoberta
do samba por uma geração em busca de identidade", afirma.
Ele nega que a hegemonia do pagode e da axé num
cenário em que a MPB ocupa, hoje, 70% do mercado nacional
resulte numa espécie de "reserva de mercado" de música
brasileira. "A música internacional, seja boa ou ruim,
continua chegando. O que se pode hoje é despertar o
público para a música nacional", afirma.
SÉRIE
"APOTEOSE DO SAMBA" É CONVITE À REFLEXÃO
da
Reportagem Local
Se
pesquisas de vendagem continuam a povoar o mercado com
música de qualidade esguia é só olhar a lista
dos vitoriosos de 97, artistas novos continuam
tímidos e pouca coisa acontece por aí, não resta muito
mais que o deleite proporcionado por glórias passadas.
É o que tem oferecido, em pílulas, a coleção de banca
"História do Samba", ainda que alicerçada sobre textos
e disposições de gravações por vezes confusos. E é,
em especial, o que oferece o tratado "Apoteose ao Samba",
abrasadora coleção projetada pelo jornalista Tárik de
Souza que abriga muito do que de mais elevado se produziu
em música popular neste século 20 no Brasil.
Os
incômodos devem ser ressaltados logo de início. Em geral,
limitando-se pela posse de fonogramas, a seleção atropela
peças fundamentais que não estivessem em seus arquivos.
OK,
a EMI é, justamente com a BMG que lança a outra
coleção, a grande mina d'água desse setor. Ainda
assim, perguntas implicantes são inevitáveis: onde estão
os primórdios de Orlando Silva, as marchinhas carnavalescas
de Emilinha Borba, Linda e Dircinha Batista, Jacob do
Bandolim, Elizeth Cardoso, os afro-sambas de Baden Powell,
o samba de moça de Nara Leão, o baiano Batatinha, os
malacos Jair Rodrigues, Martinho da Vila, Bezerra da
Silva e Alcione...?
Não
estão, de fato.
Bem,
não caberiam todos mesmo, e os que couberam constituem,
de qualquer forma, um painel impressionante, irretocável
mesmo que retocável.
A
construção da coletânea é primorosa. Usa o critério
cronológico de composição, mas não necessariamente de
gravação de cada versão eleita. Isso causa contrastes
elucidativos, que fazem da coleção um convite à reflexão.
Tal
acontece, por exemplo, em sequência que começa com os
pândegos Lamartine Babo e Mário Reis exalando machismo
em "Só Dando com uma Pedra Nela" (1932), de Babo. Corte.
Entra "Arrasta a Sandália", um dos primeiros sucessos
de Moreira da Silva, o rei do samba de breque. A versão,
no entanto, é de 68, levada pelos magníficos Cinco Crioulos
(Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Mauro Duarte, Nelson
Sargento e Anescar), em instrumental batuqueiro de entortar
a leitora laser. Corte. O samba seguinte, ''Agora É
Cinza'', um dos mais lindos de sempre, é de Bide e Marçal,
datado de 1934. A versão escolhida, no entanto, é puro
choque: o galante Lúcio Alves, um dos melhores cantores
de sempre, internacionaliza o samba e nacionaliza a
delicadeza, em 1959, em plena eclosão da bossa nova.
A sequência continua: cantando "Conversa de Botequim",
Noel Rosa se revela um pré-Lúcio Alves, pela tranquilidade
vocal; a seguir, Silvio Caldas reinstala a turbulência
e a ortodoxia em "Minha Palhoça", que depois serviria
de matriz para Caetano no diálogo inovador de sua "Tropicália"
(esta, naturalmente, ausente da coletânea).
Outra
sequência é demonstrativa. Carmen Miranda abre o segundo
CD, fincando trinados que zombeteiam (e reverenciam)
o canto lírico em "Adeus, Batucada", de Synval Silva
isso em 1935. Corte. Carlos Cachaça quebra o ritmo,
em gravação de 40 anos depois, em "Não Quero Mais Amar
a Ninguém", dele, de Zé da Zilda e de Cartola que
só se tornaria famoso mesmo 30 anos depois. Corte. Seguem-se
duas tríades dialéticas: Noel ("Último Desejo"), Assis
Valente ("Camisa Listada") e Lupicinio Rodrigues ("Se
Acaso Você Chegasse") vêem a cronologia de seus sambas
ser bagunçada por versões de cantoras de três gerações
divergentes pela ordem, Maria Bethânia (68) e
samba-bolero, Carmen Miranda (38) e samba-ópera, Elza
Soares (59) e samba-jazz. Sem cortes. "Chega de Saudade".
Nem sempre a estratégia funciona.
Para
ilustrar o advento da bossa nova, bem no meio da coleção,
surge "Chega de Saudade". Mas não comparece João Gilberto
a gravadora tem ao menos a fineza de explicar,
em encarte, os "problemas contratuais", e sim
Joyce. O samba sai de cena, como sai também quando Leila
Pinheiro encerra a caixa cantando "Catavento e Girassol".
O que parece tropeço aqui e ali se revela capricho das
divindades musicais.
O
"Samba de Uma Nota Só", outro ''standard'' de João,
vem em versão anedótica do instrumentista Laurindo Almeida.
Seria um pequeno vexame, não houvesse a versão do mesmo
Laurindo para "Desafinado" sido sampleada, ano passado,
em "Readymade", do pop star norte-americano Beck.
Trata-se
de laço com a contemporaneidade que se torna prova evidente
do alcance tentacular do samba terceiro-mundista que
o Brasil legou ao mundo, aqui sob a figura da bossa
nova. Entre os altos e os baixos, a história do samba
desfila, hiperbólica. Nos primeiros três CDs, enfileiram-se
João da Baiana, Aracy Cortes, Pixinguinha, Patrício
Teixeira, Almirante, Ismael Silva, Francisco Alves,
Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira, Wilson Batista,
Ataulfo, Dalva & Herivelto, João de Barro & Alberto
Ribeiro, Custódio Mesquita, Pedro Caetano, Monsueto,
Isaura Garcia... "Chega de Saudade" pulveriza o samba
em zil modalidades. Na segunda caixinha, concorrem sambistas
"cool" (Antonio Maria & Dolores Duran, Tito Madi, Sylvia
Telles, João Donato, Chico Buarque, Nana Caymmi, Djavan),
políticos (Sérgio Ricardo, Marcos Valle, Gonzaguinha),
"alienados" (Wilson Simonal, Jorge Ben), sambistas do
morro (Zé Keti, Cartola, Nelson Cavaquinho), excêntricos
(Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Odete Amaral,
Aniceto do Império)...
Em
raríssima versão vocal de "Manhã de Carnaval", Luiz
Bonfá, precursor e co-inaugurador da bossa, faz a ponte
com o sambista-símbolo do novo momento _o da reestruturação
do samba, à parte bossas, tropicalismos, rocks, pagodes,
axés: Paulinho da Viola. Aí se vê que ele liderou (ladeado
por artistas como Clara Nunes, Candeia, Hermínio Bello
de Carvalho, Ivone Lara) uma geração que soube recolher
o melhor da velha guarda (Orlando Silva, Noel, Assis
Valente), da média guarda (Lúcio Alves, Dick Farney,
Cyro Monteiro, Elizeth), da jovem guarda (Caetano, Roberto,
Chico, Bethânia), a um tempo reverenciando e ignorando
o mestre João. Era um instante inédito ao samba, que
a caixa faz suspeitar que se tenha atomizado em poeira
de estrela. Pois os anos 80 em diante são ralos em "Apoteose
ao Samba".
Certo,
seria constrangedor terminar com Só pra Contrariar e
coisas assim, e o apêndice Só Preto sem Preconceito,
que aparece lá no final, parece só constar para incluir
a participação especial de Martinho da Vila.
Seja
qual for a razão da supressão, a conclusão é inevitável:
segundo a história da EMI, o samba acabou lá por 1982,
melancolicamente, com Gonzaguinha. Mais motivo para
reflexão.
Caixas:
Apoteose ao Samba 1 e 2
Gravadora: EMI