NÃO MAIS AFLITOS

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 26 de maio de 1946.

Neste texto foi mantida a grafia original

RUBEM BRAGA

Assim é o homem que espera a mulher. Vê o relogio, fuma, e telefona. Sabe que ela vem; tem vindo. Pode estar tranquilo; mais cinco minutos e chegará. E, como é natural, ela chega. Mas no bojo desse fato simples, esperado, certo há um elemento de surpresa, um recondito milagre. O instante em que ela chega pode ser rigorosamente previsto. Sabemos que está no trem; mas quando o trem pára e ela surge, isso não é um fenomeno que vem atrás do outro numa cadeia de coisas. Essa presença é sempre um fato inedito, o céu interveio. Ou não digamos o céu; vamos dizer que a força secreta da vida saltou de subito, produziu um instante livre, novo, solto em si mesmo. Não foi o onibus, nem o trem, nem o taxi que a trouxe. Se ela veio andando não veio andando pela rua. É evidente que podemos reconstituir materialmente sua viagem; mas no instante em que chega há o leve choque de algo que aparece, como a leve carga de chuva grossa e rapida que uma pequena nuvem lança, ou como um raio de sol que intervem, louro, fino, vibrante, entre duas massas de penumbra. Se ela desceu atrás da casa pelo pomar, sentimos que não apenas passou sob as mangueiras. "Baixou" como dizem os espiritas.

É uma realidade superior, um mundo de fantasias que se encarna de subito aos nossos olhos. A natureza da mulher é assim feita não só da estrita carne e da voz, os olhos liquidos e os cabelos, a tenue veia atrás dos joelhos, os vestidos, a boca e, santo Deus, os braços; há a substancia improvisada de algas, nuvens e brisas; e mais. Um leve murmurio de estrelas. Está visto que falar assim é dizer bobagens. Mas por que lembrarmos a leve onda tremula, ou um apito longo de trem que ouvimos uma tarde numa capoeira, depois de um silencio deixado por um bando de periquitos? As sensações da vida sobem dentro de nós; há um leve aperto de garganta. Lembramos inhames à beira do corrego, e o calor do pescoço do cavalo sob a crina; em alguma parte há marolas gulosas de agua verde lambendo o batelão.

É flor! É inacreditavel como a mulher se parece com a flor. Fixemos uma flor. Sabemos o que é, como nasceu, e que morrerá. Mas nossa botanica não explica a frescura desse milagre; nem muito menos porque nos emociona. Podemos passar diante de uma casa de flores, e ver, e achar belas as flores. Mas a flor que de repente nasce no muro familiar, que adianta prová-la? É uma aparição; algo que traz do fundo da terra uma inesperada palavra de candor. Parece dizer: eis-me aqui. E não é apenas a brisa que a estremece: é a vida.

Vejam concidadãos. Eu escrevia as coisas acima em minha casa, há cinco minutos. Tinha o pensamento longe. Na verdade confesso que, ao pôr o papel na maquina, o primeiro que bati foi o titulo do que ia escrever. E era: "Recordação da aldeia de Pavana." Ia falar de uma aldeia onde tive a revelação da primavera, na Italia; falaria das casas e do céu: mas no meio da escrita me esqueci, embora por baixo das palavras sobre a mulher e a flor eu sentisse confusamente respirar a aldeia. Escrevo em minha casa. Pois ouvi uma voz e cheguei à janela. Era uma jovem que passou para dizer bom dia; vai à praia. Entrou, sentou-se; tivemos uma rapida conversa banal. É moça, bela, simples; é mais conhecida que amiga. Temos uma especie de amizade distraida, fraca, suave. Quando se foi, cheguei à janela, e acompanhei-a com os olhos até a esquina. Ela não sabia que estava sendo vista. Andava com seu passo natural, e não se voltou. Ia pensando suas coisas. Comoveu-me. Não sei porque seus saltos altos me comoveram, enquanto andava e assim tambem o leve movimento de seus cabelos. Seria despropositado dizer-lhe a minima palavra de ternura, hoje, amanhã, ou nunca. Não podemos recolher o brilho do lombo elastico de uma onda e fazer um discurso ao mar, acaso podemos? Quando subimos aquela capoeira estorricada, entre carvões de troncos, do sol ardente. Antes de pegar o caminho do outro lado do morro, parámos um instante sob uma arvore qualquer; e então uma brisa vinda dos morros passou em nossa cara suada. Temos um vago sentimento de benção; a sombra, a leve mão da brisa. Mas seria absurdo dizer: muito obrigado. Na verdade, falámos muito pouco, embora, nos botequins, levemos horas a tagarelar. No fundo, somos calados; para a ternura e para a ofensa. Como poderia dizer, a essa moça que nos comoveu seu corpo de breves ancas andando sobre os saltos altos; ou que o leve movimento de seus cabelos castanhos nos fez bem?

Se estamos apaixonados, então temos o direito de dizer: escute, minha senhora, quando levantou os dois braços para arrumar os cabelos, duas bandeiras amigas acenaram por um céu distante, os coleiras do brejo ergueram vôo; a arvore meneou suas franças, e as nuvens se tornaram violetas. Lembramos confusamente cachoeiras se deixando cair com um ar fidalgo. A parte de dentro de seus braços é mais clara que a de fora, e isso, tão facil de prever, nos comove como um segredo amigo; a senhora erguendo os braços com as mãos atrás da cabeça fica mais alta.

Isso, concidadãos, podemos dizer, se estamos apaixonados; mas mesmo isso escassamente dizemos. E ora não estamos apaixonados. Nossa comoção por essa moça é gratuita. O que sentimos por ela é uma especie de gratidão. Não tinhamos pensado nisso; mas agora nos damos conta de que sua presença é um favor da vida; e quando a encontramos numa esquina achamos que é uma gentileza da municipalidade para com nossa mesquinha, às vezes surdamente aflita pobre pessoa.

Tenho vontade de vos conclamar para uma grande manifestação publica, mas cada um onde estiver, no onibus galopante, diante da mesa ou em casa ou na rua; deitado em sua cama, no chuveiro ou no trabalho. Uma grande manifestação de boa vontade e boa fé. Vamos fazer isso em silencio, e depois não comentaremos. Vamos agradecer a brisa na cara suada; a mulher com luz nos olhos; o menino, a onda, o passaro, o chão.

O bom chão; dormir no chão. Morrer, descansar no bom umido chão, não mais imprudente, não mais aflitos, não mais aflitos!

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