RUBEM
BRAGA
Assim
é o homem que espera a mulher. Vê o relogio, fuma, e telefona.
Sabe que ela vem; tem vindo. Pode estar tranquilo; mais cinco
minutos e chegará. E, como é natural, ela chega. Mas no bojo desse
fato simples, esperado, certo há um elemento de surpresa, um recondito
milagre. O instante em que ela chega pode ser rigorosamente previsto.
Sabemos que está no trem; mas quando o trem pára e ela surge,
isso não é um fenomeno que vem atrás do outro numa cadeia de coisas.
Essa presença é sempre um fato inedito, o céu interveio. Ou não
digamos o céu; vamos dizer que a força secreta da vida saltou
de subito, produziu um instante livre, novo, solto em si mesmo.
Não foi o onibus, nem o trem, nem o taxi que a trouxe. Se ela
veio andando não veio andando pela rua. É evidente que podemos
reconstituir materialmente sua viagem; mas no instante em que
chega há o leve choque de algo que aparece, como a leve carga
de chuva grossa e rapida que uma pequena nuvem lança, ou como
um raio de sol que intervem, louro, fino, vibrante, entre duas
massas de penumbra. Se ela desceu atrás da casa pelo pomar, sentimos
que não apenas passou sob as mangueiras. "Baixou" como dizem os
espiritas.
É
uma realidade superior, um mundo de fantasias que se encarna de
subito aos nossos olhos. A natureza da mulher é assim feita não
só da estrita carne e da voz, os olhos liquidos e os cabelos,
a tenue veia atrás dos joelhos, os vestidos, a boca e, santo Deus,
os braços; há a substancia improvisada de algas, nuvens e brisas;
e mais. Um leve murmurio de estrelas. Está visto que falar assim
é dizer bobagens. Mas por que lembrarmos a leve onda tremula,
ou um apito longo de trem que ouvimos uma tarde numa capoeira,
depois de um silencio deixado por um bando de periquitos? As sensações
da vida sobem dentro de nós; há um leve aperto de garganta. Lembramos
inhames à beira do corrego, e o calor do pescoço do cavalo sob
a crina; em alguma parte há marolas gulosas de agua verde lambendo
o batelão.
É
flor! É inacreditavel como a mulher se parece com a flor. Fixemos
uma flor. Sabemos o que é, como nasceu, e que morrerá. Mas nossa
botanica não explica a frescura desse milagre; nem muito menos
porque nos emociona. Podemos passar diante de uma casa de flores,
e ver, e achar belas as flores. Mas a flor que de repente nasce
no muro familiar, que adianta prová-la? É uma aparição; algo que
traz do fundo da terra uma inesperada palavra de candor. Parece
dizer: eis-me aqui. E não é apenas a brisa que a estremece: é
a vida.
Vejam
concidadãos. Eu escrevia as coisas acima em minha casa, há cinco
minutos. Tinha o pensamento longe. Na verdade confesso que, ao
pôr o papel na maquina, o primeiro que bati foi o titulo do que
ia escrever. E era: "Recordação da aldeia de Pavana." Ia falar
de uma aldeia onde tive a revelação da primavera, na Italia; falaria
das casas e do céu: mas no meio da escrita me esqueci, embora
por baixo das palavras sobre a mulher e a flor eu sentisse confusamente
respirar a aldeia. Escrevo em minha casa. Pois ouvi uma voz e
cheguei à janela. Era uma jovem que passou para dizer bom dia;
vai à praia. Entrou, sentou-se; tivemos uma rapida conversa banal.
É moça, bela, simples; é mais conhecida que amiga. Temos uma especie
de amizade distraida, fraca, suave. Quando se foi, cheguei à janela,
e acompanhei-a com os olhos até a esquina. Ela não sabia que estava
sendo vista. Andava com seu passo natural, e não se voltou. Ia
pensando suas coisas. Comoveu-me. Não sei porque seus saltos altos
me comoveram, enquanto andava e assim tambem o leve movimento
de seus cabelos. Seria despropositado dizer-lhe a minima palavra
de ternura, hoje, amanhã, ou nunca. Não podemos recolher o brilho
do lombo elastico de uma onda e fazer um discurso ao mar, acaso
podemos? Quando subimos aquela capoeira estorricada, entre carvões
de troncos, do sol ardente. Antes de pegar o caminho do outro
lado do morro, parámos um instante sob uma arvore qualquer; e
então uma brisa vinda dos morros passou em nossa cara suada. Temos
um vago sentimento de benção; a sombra, a leve mão da brisa. Mas
seria absurdo dizer: muito obrigado. Na verdade, falámos muito
pouco, embora, nos botequins, levemos horas a tagarelar. No fundo,
somos calados; para a ternura e para a ofensa. Como poderia dizer,
a essa moça que nos comoveu seu corpo de breves ancas andando
sobre os saltos altos; ou que o leve movimento de seus cabelos
castanhos nos fez bem?
Se
estamos apaixonados, então temos o direito de dizer: escute, minha
senhora, quando levantou os dois braços para arrumar os cabelos,
duas bandeiras amigas acenaram por um céu distante, os coleiras
do brejo ergueram vôo; a arvore meneou suas franças, e as nuvens
se tornaram violetas. Lembramos confusamente cachoeiras se deixando
cair com um ar fidalgo. A parte de dentro de seus braços é mais
clara que a de fora, e isso, tão facil de prever, nos comove como
um segredo amigo; a senhora erguendo os braços com as mãos atrás
da cabeça fica mais alta.
Isso,
concidadãos, podemos dizer, se estamos apaixonados; mas mesmo
isso escassamente dizemos. E ora não estamos apaixonados. Nossa
comoção por essa moça é gratuita. O que sentimos por ela é uma
especie de gratidão. Não tinhamos pensado nisso; mas agora nos
damos conta de que sua presença é um favor da vida; e quando a
encontramos numa esquina achamos que é uma gentileza da municipalidade
para com nossa mesquinha, às vezes surdamente aflita pobre pessoa.
Tenho
vontade de vos conclamar para uma grande manifestação publica,
mas cada um onde estiver, no onibus galopante, diante da mesa
ou em casa ou na rua; deitado em sua cama, no chuveiro ou no trabalho.
Uma grande manifestação de boa vontade e boa fé. Vamos fazer isso
em silencio, e depois não comentaremos. Vamos agradecer a brisa
na cara suada; a mulher com luz nos olhos; o menino, a onda, o
passaro, o chão.
O
bom chão; dormir no chão. Morrer, descansar no bom umido chão,
não mais imprudente, não mais aflitos, não mais aflitos!