QUITANDINHA

Publicado na Folha da Noite, sexta-feira, 25 de março de 1949.

Neste texto foi mantida a grafia original

RUBEM BRAGA

É uma imensa catacumba de fantasmas esse enorme hotel quase vazio, de quilometros de corredores e salões onde bocejamos com melancolia. Se querermos ir ao barbeiro, igualmente bocejamos; é tão longe! Da janela dos fundos olhamos os telhados a pique, onde jamais escorregará nenhuma neve normanda; e há uma soturna tristeza nesses telhados, nesses pateos vazios nesses terraços de cimento. Da janela da frente olhamos o lago artificial onde os barcos bocejam vazios perante uns morros devastados; o ruço desce, afunda no vale sua massa parda, alastra-se como um grande monstro informe, lento e humido.

Vamos à piscina de agua quente, onde não há ninguem; nas paredes o vapor vai formando manchas entre os polvos e anemonas da decoração; e as prateleiras do bar estão vazias. Seria impossivel tomar um banho sozinho, talvez uma pantera humana viesse ao longo dos corredores lustrosos e silentes, com passos de seda, espreitar a nossa sombra, e urrar de subito. O hotel funciona com uma insistencia quase heróica, que o torna ao mesmo tempo lamentavel e mau. Às 2 da madrugada negam-nos o menor sanduiche, às 8 da manhã falta força para o elevador. Sabado a "boite" se enche completamente para um "show" cacete, e parece haver uma ressurreição: bebidas, musica, gente, vozes humanas falando, rindo.

Mas é um logro: às 2 e meia, de subito, fica tudo vazio e o enorme hotel cai em um silencio tão perfeito com seus vagos funcionarios cochilando e os salões ermos que parece que tudo foi embuste ou sonho.

É aflitivo pensar alem, muito alem daqueles salões, alem das gaiolas onde tristes passarinhos mal pipilam e um jato de agua equilibra com preguiça uma bola de celuloide (como no tempo da mais remota infancia, no velho chafariz entre os pés de pinha) alem da triste torneira de agua radiativa jorrando passivamente há uma imensa exposição internacional com dezenas de mostruarios que se encompridam, envolvem salões sob cupolas infinitas, alastram-se pelo porão interminavel e lugubre - uma exposição que é um museu de negocios que não houve ou houve. Ah, poderíamos saber coisas de nosso imenso territorio, e de muitos países do mundo, mas tudo seria tedioso e vão, o mundo parou, nada funciona, ninguém vem olhar esse mundo que tanto trabalhou e ora agoniza entre bocejos.

Negocios! Tambem a conta nos dá tristeza, é confusa e incompreensivel, alguem nos explica como em segredo a) que o apartamento está mais barato do que nos disseram e as refeições mais caras devido a um jogo contabil para evitar maiores impostos; b) que estamos pagando mais não sei quantos cruzeiros a mais porque entramos às 9,40 da noite em vez de entrarmos às 10. E lembramos que ao chegar, com a maleta, um sujeito nos pediu para pagar adiantado o apartamento, achando nossa maleta pequena e nossa cara pobre. Na verdade, deveriamos ser pagos para povoar um pouco essa imensidão fria, para interromper o cochilo dos garçons melancolicos.

Domingo à tarde vem muita gente, casais, familias feias e ricas em "short", mas tudo tem um ar nada convincente de piquenique sofisticado e desorganizado, e de repente me precipito sem razão para uma cabine de telefone, a primeira que desocupou, pois todos foram possuidos da subita vontade de falar para o Rio, para o mundo, para alguma parte do planeta onde não haja milhares de poltronas gordas e sofás vazios, onde não haja sobre minha pobre cabeça tão imensos lustres de tão imenso mau gosto e sob meus pés tantas leguas de um piso tão encerado onde um homem decente não pode andar com despreocupação e verdadeira dignidade.

De repente nos vem a idéia de que, insensivelmente, apesar de todos os ritos de limpeza, e ordem, esse gigante apodrece de sutil doença, começamos a descobrir quase imperceptiveis sintomas, e temos um subito carinho por essa imensidão; ficamos agradecidos porque, abrindo a porta do apartamento que entre as paredes de listas verticais é sombria e dura como uma porta de cofre forte, descobrimos um detalhe de bom gosto, a pintura do vaso que sustem o abajur.

Mas alguem fala em teatro; em alguma parte, nesta imensidão, há um teatro que neste momento e eternamente está as escuras, com um imenso palco giratorio imovel onde se joga a tragedia do vazio e da solidão.

Bebemos uisque muito caro, e nossa cabeça tem idéias estranhas: fugir silentemente entre os raros humanos, caminhar horas e horas pelos corredores e salões, penetrar no teatro, mover as maquinas, ir para o centro do palco giratorio e ali, na escuridão, girando lentamente, dormir, sonhar, morrer...

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