RUBEM
BRAGA
É
uma imensa catacumba de fantasmas esse enorme hotel quase vazio,
de quilometros de corredores e salões onde bocejamos com melancolia.
Se querermos ir ao barbeiro, igualmente bocejamos; é tão longe!
Da janela dos fundos olhamos os telhados a pique, onde jamais
escorregará nenhuma neve normanda; e há uma soturna tristeza nesses
telhados, nesses pateos vazios nesses terraços de cimento. Da
janela da frente olhamos o lago artificial onde os barcos bocejam
vazios perante uns morros devastados; o ruço desce, afunda no
vale sua massa parda, alastra-se como um grande monstro informe,
lento e humido.
Vamos
à piscina de agua quente, onde não há ninguem; nas paredes o vapor
vai formando manchas entre os polvos e anemonas da decoração;
e as prateleiras do bar estão vazias. Seria impossivel tomar um
banho sozinho, talvez uma pantera humana viesse ao longo dos corredores
lustrosos e silentes, com passos de seda, espreitar a nossa sombra,
e urrar de subito. O hotel funciona com uma insistencia quase
heróica, que o torna ao mesmo tempo lamentavel e mau. Às 2 da
madrugada negam-nos o menor sanduiche, às 8 da manhã falta força
para o elevador. Sabado a "boite" se enche completamente para
um "show" cacete, e parece haver uma ressurreição: bebidas, musica,
gente, vozes humanas falando, rindo.
Mas
é um logro: às 2 e meia, de subito, fica tudo vazio e o enorme
hotel cai em um silencio tão perfeito com seus vagos funcionarios
cochilando e os salões ermos que parece que tudo foi embuste ou
sonho.
É
aflitivo pensar alem, muito alem daqueles salões, alem das gaiolas
onde tristes passarinhos mal pipilam e um jato de agua equilibra
com preguiça uma bola de celuloide (como no tempo da mais remota
infancia, no velho chafariz entre os pés de pinha) alem da triste
torneira de agua radiativa jorrando passivamente há uma imensa
exposição internacional com dezenas de mostruarios que se encompridam,
envolvem salões sob cupolas infinitas, alastram-se pelo porão
interminavel e lugubre - uma exposição que é um museu de negocios
que não houve ou houve. Ah, poderíamos saber coisas de nosso imenso
territorio, e de muitos países do mundo, mas tudo seria tedioso
e vão, o mundo parou, nada funciona, ninguém vem olhar esse mundo
que tanto trabalhou e ora agoniza entre bocejos.
Negocios!
Tambem a conta nos dá tristeza, é confusa e incompreensivel, alguem
nos explica como em segredo a) que o apartamento está mais barato
do que nos disseram e as refeições mais caras devido a um jogo
contabil para evitar maiores impostos; b) que estamos pagando
mais não sei quantos cruzeiros a mais porque entramos às 9,40
da noite em vez de entrarmos às 10. E lembramos que ao chegar,
com a maleta, um sujeito nos pediu para pagar adiantado o apartamento,
achando nossa maleta pequena e nossa cara pobre. Na verdade, deveriamos
ser pagos para povoar um pouco essa imensidão fria, para interromper
o cochilo dos garçons melancolicos.
Domingo
à tarde vem muita gente, casais, familias feias e ricas em "short",
mas tudo tem um ar nada convincente de piquenique sofisticado
e desorganizado, e de repente me precipito sem razão para uma
cabine de telefone, a primeira que desocupou, pois todos foram
possuidos da subita vontade de falar para o Rio, para o mundo,
para alguma parte do planeta onde não haja milhares de poltronas
gordas e sofás vazios, onde não haja sobre minha pobre cabeça
tão imensos lustres de tão imenso mau gosto e sob meus pés tantas
leguas de um piso tão encerado onde um homem decente não pode
andar com despreocupação e verdadeira dignidade.
De
repente nos vem a idéia de que, insensivelmente, apesar de todos
os ritos de limpeza, e ordem, esse gigante apodrece de sutil doença,
começamos a descobrir quase imperceptiveis sintomas, e temos um
subito carinho por essa imensidão; ficamos agradecidos porque,
abrindo a porta do apartamento que entre as paredes de listas
verticais é sombria e dura como uma porta de cofre forte, descobrimos
um detalhe de bom gosto, a pintura do vaso que sustem o abajur.
Mas
alguem fala em teatro; em alguma parte, nesta imensidão, há um
teatro que neste momento e eternamente está as escuras, com um
imenso palco giratorio imovel onde se joga a tragedia do vazio
e da solidão.
Bebemos
uisque muito caro, e nossa cabeça tem idéias estranhas: fugir
silentemente entre os raros humanos, caminhar horas e horas pelos
corredores e salões, penetrar no teatro, mover as maquinas, ir
para o centro do palco giratorio e ali, na escuridão, girando
lentamente, dormir, sonhar, morrer...