AULA DE INGLÊS

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 1º de setembro de 1946.

Neste texto foi mantida a grafia original


RUBEM BRAGA

Is this an elephant?

Minha tendencia imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rapido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visivel de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; e mesmo que morra em consequencia da brutal operação continuará a ser um elefante; continua pois um elefante morto a ser em principio tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convictamente:

- No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me perguntou:

- Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas tijolos ou cerejas maduras - sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no maximo dois segundos:

- No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita - mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciaveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

- Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de duvida antipatica; talvez fosse chefe de serviço ou relogio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse respondi impavido:

- No, it's not!

Minhas palavras soaram alto com certa violencia, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez porem, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malicia, uma especie de insinuação, um longinquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma pergunta decisiva.

- Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinaria semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centimetro e nelas havia reentrancias curvas - duas ou três - na parte superior. Na depressão central, uma especie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e aqui e ali cinzas esparsas, alem de um palito de fosforos já riscado. Respondi:

- Yes!

O que sucedeu então foi indescritivel. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por um onda de alegria; os olhos brilhavam - vitoria! vitoria! - e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos labios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

- Very well! Very well!

Sou um homem de natural timido e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitoria me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho. Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver na vitrina de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabolado uma longa conversação com o embaixador britanico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

- It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradavel a um embaixador ver que sua lingua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa fé do país junto a cujo governo é acreditado.

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