RUBEM
BRAGA
O
taxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse
ir vendo os numeros das casas. Quando vi o 118, mandei parar.
Tinha de ir ao 227 e perguntar por dona Maria de Sousa. Era quase
certo que não me seguiam; de qualquer modo não convinha parar
o taxi diante da casa para não chamar a atenção. Tive, alem disso,
o cuidado de deixar o carro se afastar sem que o chofer pudesse
ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo viviamos cercados
de precauções, porque o perigo estava em toda a parte. O menor
descuido era a prisão, e as noticias que vinham "lá de dentro"
eram de fazer tremer.
Andei
pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente
viviam familias ricas. Agora os ricos viviam em outras partes
da cidade e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de
grandes arvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um
auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
Apertei
a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim,
ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
Ao
bater, ouvi um rumor lá dentro. Depois senti alguem me espiava
pela veneziana, sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns
rumores dentro do quarto, e, por fim, uma voz nervosa perguntou:
-
Quem é?
Marina
não me havia reconhecido e, com certeza, estava inquieta. Tranquilizei-a:
-
Sou eu, Domingos.
A
porta abriu-se.
Tinha
visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua.
Nunca haviamos trocado mais de duas ou três palavras ocasionais.
Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradavel, com seu
ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com
certa severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar
de sorrir quando a vi metida em um macacão.
-
O macacão do Alberto? Trago notícias dele.
Dei
o recado que um politico solto no dia anterior havia trazido.
Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não
o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de sair tão
cedo. Era melhor que ela tentasse sair da capital, onde podia
ser presa a qualquer momento, e fosse para um pequeno Estado do
Nordeste onde morava sua familia. A viagem por mar seria impossivel.
O melhor era ir até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo
São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do
dinheiro e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse
mais. Era preciso abrir o caixote de livros e queimar um papel
que estava dentro das "Poesias" de Olavo Bilac. Dei-lhe um numero
para onde devia telefonar.
-
Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
Dei-lhe
minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando
o pegou, a policia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro
sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido
umas historias velhas, de São Paulo...
-
E você como vai?
Ela
fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito
a comida, mais oito dias. Não tinha mais dinheiro, nem para cigarros.
Ofereci-lhe dos meus:
-
Não sabia que você fumava.
Não
fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias
e dias, semanas e semanas, começara a fumar. Há mais três meses
não saia à rua. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos
fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros
que tinha, e estava cansada de ler.
-
Isso aqui é pior do que estar presa. Às vezes tenho vontade de
sair, tomar um onibus, andar por aí, ir a um banho de mar...
Arriscara-se
certa vez a ir a um cinema do bairro e quase morreu de medo. Na
volta, um homem a seguiu. Teve a certeza de que ia ser presa.
Quando estava perto de casa, o homem, mal encarado, apertou o
passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou tremula
e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando,
em um desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa...
Contava
essas coisas sentada na cama, um pouco excitada e estava engraçada
assim metida no macacão do marido, com uma regua na mão, contando
o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para
um lado e outro, batendo com a regua na coxa.
-
Que é que você acha que devo fazer?
Acendi
um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse,
de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguem que
fosse amigo do Governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse...
-
Tambem está preso.
-
O dr. Antunes? Não é possível!
Vi
que estava mal informada do que acontecia e lhe dei varias noticias.
Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a
regua no joelho. Ficamos em silencio. Achei que devia despedir-me,
mas ela me deteve:
-
Espere, quero saber de uma coisa...
Perguntou-me
pelos Amaral, era verdade que a mulher se tinha suicidado. Era
boato, ou pelo menos parecia. Havia quem dissesse que o casal
estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no Norte
do Parana, em Londrina...
Surgiram
outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguem,
e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a
falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora
em seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava
do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema
alheio, com frieza e logica. Tinha na gaveta um velho guia Levi,
e consultou preços de passagens e horarios. Certamente deveria
tomar o trem em alguma estação do Estado do Rio, se resolvesse
ir para o Norte.
-
Vai?
-
Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de
minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo,
mas... Voltou a perguntar se não havia mesmo nenhum jeito de fazer
alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado
amigo dos Amaral, pudesse...
Balancei
a cabeça. A policia não estava soltando ninguem. Prendera gente
demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo
mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguem. Uma ou
outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte
e estava completamente inocente . Alberto já fôra preso antes,
era um elemento "marcado"... A unica esperança estava numa mudança
que diziam que ia haver no Ministerio. Mas estavam sempre dizendo
essas coisas, e ninguem saia do Governo. Dava a impressão de que
ia ser assim eternamente...
-
Que coisa!
Voltou
a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado
por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa...
Começou quase a lamentar-se e, subitamente, pareceu de novo tranquila.
Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo
gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora
sua voz parecia ter cinquenta.
-
A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia
ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na
hora de alugar este quarto, estive quase me resolvendo outra vez
a fugir. Mas queria esperar Alberto... Está visto que posso ficar
esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade...
Era
engraçado que me chamasse de "senhor", quando começara me tratando
de "você". Mas logo na frase seguinte, com uma pequena hesitação
na voz, voltou a me chamar de "você".
Levantei-me
e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia.
Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
-
Posso deixar a janela aberta? Está quente... Sentada na cama ela
ficou em silencio. Resolvi ir-me embora e fiquei pensando se devia
lhe dar dez mil reis que tinha no bolso. Eu voltaria de bonde.
Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente, e me deu um aperto
de mão rapido. Sua voz era tranquila, quase fria:
-
Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez.
Meu nome aqui é Maria de Sousa.
-
Sei. Tem telefone?
-
Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim? Tirou
uma carta da gaveta, envelope e começou a escrever o endereço.
Junto à janela lá fora eu via as grandes arvores gordas, beijadas
pelo luar enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
Comentei
ao acaso:
-
Bonito luar...
Ela
acabara de escrever o endereço e respondeu dando um olhar rapido
a janela:
-
É
Foi
um "é" tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse
dito alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela
veio para junto da janela, onde eu estava. Para ver melhor lá
de fora abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda,
branca, entre as copas das arvores. Foi apenas um instante. Ela
fechou os dois lados da janela com brutalidade:
-
Não faça isso! Estupido! Não vê que eu não posso com isso? Que
estou sozinha há quase um ano desde que Alberto foi preso? Ficou
um momento diante de mim palida, os labios tremulos; eu não sabia
o que dizer.
-
Vá-se embora! Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e
começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso
sob o macacão azul.