Plínio Marcos
Zero
a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, aos trinta e cinco,
aos quarenta, aos quarenta da fase final, zero a zero aos quarenta
minutos da fase final de um jogo decisão de título,
decisão de título da segunda divisão, da maldita
segunda divisão, zero a zero, zero a zero, zero a zero, zero
a zero aos quarenta minutos, cinco pra acabar e a bola rolando,
rolando, rolando e atrás dela músculos, nervos, sangue
de vinte e dois homens, de vinte e dois homens desesperados, jogando
o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens desesperados, jogando
o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens rolando suas vidas
atrás da bola, da bola miúda da segunda divisão,
da segunda divisão do futebol do absurdo, vinte e dois absurdos
profissionais dançam uma estranha dança que milhares
de olhos seguem atentamente a cada lance, a cada lance, a cada lance.
Mas, só vêem o que parece, o lance. Os socos, os pontapés,
as cotoveladas, as escarradas, as escarradas, as escarradas que
se dão uns na cara dos outros e os socos e os pontapés
e as cotoveladas que se dão uns nos outros ninguém
vê, ou finge não ver. A bola, a bola, a bola miúda
dos tristes boleiros da maldita segunda divisão rola, rola,
rola e os vinte e dois têm que fazê-la rolar, rolar,
rolar e eles vão atrás, dela, com fúria, com
fúria, com fúria, uns no começo da carreira
desesperados prá escaparem da maldita segunda divisão
do maldito futebol do absurdo, e outros desesperados, ja com as
pernas pesadas, injetadas de estimulantes, lutando agoniadamente
prá não acabarem, não acabarem de vez na maldita
segunda divisão do maldito futebol do absurdo. E todos os
vinte e dois, vinte e dois jogadores jogando a vida e a morte, rolando
seus desesperos e esperanças atrás da bola miúda,
da miúda bola da segunda divisão, da decisão
do titulo da maldita segunda divisão. Zero a zero, zero a
zero, zero a zero. Trinta, trinta e cinco, quarenta minutos. Quarenta
minutos da fase final, faltando apenas cinco minutos para o jogo
acabar. Apenas cinco. E o juiz apita, apita, apita. Tem um jogador
caído na área do adversário. O juiz apita,
apita, apita pênalti. Zero a zero aos quarenta minutos da
fase final do jogo decisivo do campeonato da segunda divisão,
da maldita segunda divisão do absurdo. O juiz apita, apita,
apita. Pênalti.
Pênalti, pênalti, pênalti. Tiro livre direto de
pequena distância, penalidade máxima. Pênalti,
pênalti. O juiz apitou, apitou, apitou e correu pra área
apontando a marca do pênalti. Pênalti aos quarenta minutos
da fase final de uma partida decisiva. Pênalti, Pênalti.
Pênalti. As torcidas berram aflitas, os jogadores correm pra
cima do juiz, se empurram, se xingam, se xingam, se escarram nas
caras uns dos outros, se xingam, se xingam, se xingam. Pênalti.
Pênalti. Pênalti. Aos quarenta minutos da fase final
de um jogo de decisão do título, do título,
do título da maldita segunda divisão do futebol do
absurdo. E ele, ele, o veterano em fim de carreira, ele que teve
tantas glórias, ele que tem muita experiência, ele
é que tem que cobrar o pênalti. Um pênalti, um
maldito pênalti, apitado por um juiz que ele sabe, ele que
é veterano, ele que teve tantas glórias, ele que tem
muita experiência sabe, sabe bem, sabe muito bem que o juiz
apitou aquele maldito pênalti, apitou aos quarenta minutos
finais de um jogo de decisão de título, apitou pênalti,
faltando cinco minutos para o fim do jogo porque estava pago, pago
prá influir no resultado. Pago, muito bem pago prá
apitar o pênalti, só pago, muito bem pago, o juiz apitou,
apitou o pênalti. Pênalti aos quarenta minutos da fase
final de uma decisão de título. De título da
segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol
do absurdo, mas sempre uma decisão. E ele, logo ele, o veterano,
o craque que teve tantas glórias, o craque que foi de seleção,
que jogou na grande bola, que jogou nos grandes estádios,
ele, o mais experiente do time é que ia ter que chutar. Logo
ele é que ia ter que chutar o pênalti aos quarenta
minutos finais de um jogo de decisão de título, a
cinco minutos do final do jogo decisão de título da
segunda divisão, da maldita segunda divisão do futebol
do absurdo, pênalti. E ele tinha que chutar. Ele, o veterano,
o craque que teve tantas glórias, ele, o mais experiente
do time.
Logo ele, que não conseguiu dormir na noite da véspera
do jogo decisão, logo ele, que rolou na cama como um principiante
assustado, logo ele, que perdeu a fome, logo ele, que pensou em
se fingir de machucado prá não jogar, logo ele, logo
ele, o veterano, o craque que teve tantas glórias, o mais
experiente do time, é que ia ter que chutar o pênalti,
o pênalti, o maldito pênalti apitado aos quarenta minutos
finais de um jogo de decisão de título, apitado por
um maldito juiz vendido, sujo como um porco, um bebedor de suor,
chupador de sangue. E ele é que tinha que chutar o pênalti.
O maldito pênalti. Ele, ele, ninguém além dele
poderia naquele time bater aquele pênalti, ele o veterano,
ele o craque que teve tantas glórias, ele o mais experiente.
Ele, que por ser já um veterano, ele, justamente ele, que
por ser o mais experiente, recebeu dinheiro, muito dinheiro, dinheiro
pra não marcar nem aquele gol, nem nenhum outro gol naquele
jogo, naquele maldito jogo da decisão de título da
maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo.
Quando o repelente abutre imaginador de repelências o procurou
com o dinheiro, com o dinheiro, com o maldito dinheiro para suborná-lo,
ele teve ódio, muito ódio, um ódio terrível
do repelente abutre imaginador de repelências. Sentiu vontade
de esganar aquele maldito subornador, sentiu vontade de lhe arrancar
a língua, sentiu vontade de fazer o repelente abutre imaginador
de repelências engolir cada uma das malditas notas do dinheiro
do maldito suborno. Mas vacilou, pensou, pensou, pensou, se devia
escutar o repelente abutre expor a repelência, pegar o dinheiro
e entregar pro seu clube. E enquanto ele pensava, pensava, pensava,
continha o ódio, continha, e o repelente abutre falava, falava,
falava, mansamente, como quem não quer ganhar, pacientemente,
como quem não quer perder.
- Seu nome, seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola, a
sua grande bola acabou, você acabou, acabou, acabou, todos
que rolam nas voltas da bola, mesmo nas voltas da grande bola, na
grande bola dos grandes craques, você acabou, acabou, acabou
nesta triste bola miúda de segunda divisão, você
usou as multicoloridada camisas vermelhas, vermelhas, vermelhas,
as azuis, as verdes, as vermelhas, as amarelas, as verdes, as pretas,
as brancas, as vermelhas, as vermelhas, usou todas elas, as multicoloridas
camisas dos grandes clubes, mas onde estão elas? Descoraram
e resta essa bola miúda da segunda divisão. Seu nome,
seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola grande, tudo, tudo,
tudo, reduzido a essa bola miúda da segunda divisão.
E as pernas, suas pernas, as suas pernas? Como estão suas
pernas? Comidas pela bola, com os ossos, os nervos, os músculos
estilhaçados, assim estão suas pernas. E só
resta para essas suas pernas esgotadas essa bola miúda da
segunda divisão. E até quando resta? Até quando?
E o que você tem de seu? Está rico? Pode parar de correr
atrás da bola miúda? Eu te dou dinheiro. Dinheiro.
Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro.
Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, trinta e cinco,
quarenta minutos da fase final de um jogo de decisão de título
do maldito título, do maldito campeonato, da maldita segunda
divisão, do maldito futebol do absurdo, aos quarenta minutos
da fase final, e o maldito juiz, um juiz sujo como um porco, um
bebedor de suor, um chupador de sangue, um juiz pago pelo repelente
abutre imaginador de repelências, apita, apita, apita um pênalti,
pênalti, pênalti que ele tem que cobrar, ele, justo
ele, ele o veterano, ele que teve tantas glórias, ele o mais
experiente, ele, justo ele, que pegou dinheiro para não fazer
nem aquele, nem nenhum gol naquele jogo. Maldito pênalti,
maldito juiz, maldito jogo. Até ali, tinha sido fácil,
fácil de enganar técnico, diretores, companheiros,
torcida. Até os quarenta minutos finais daquele jogo, ele,
ele enganou, não precisou de muito prá enganar, na
verdade ele enganava também o repelente abutre imaginador
de repelências. Enganava a todos, a todos, a todos. Correr
há muito não corria, lançar certo há
muito não lançava, enervar os meninos há muito
ele já fazia, reclamando de todos prá esconder seus
erros, nas divididas já há muito não ía.
E era isso que o repelente abutre imaginador de repelências
queria que ele fizesse, pagava prá ele fazer e era o que
ele há muito tempo vinha fazendo. Mas o pênalti, o
maldito pênalti, o maldito pênalti apitado pelo maldito
juiz aos quarenta minutos da fase final do jogo decisivo do título,
do maldito campeonato da segunda divisão, da maldita segunda
divisão, do maldito futebol do absurdo, o pênalti,
o pênalti, o pênalti era ele, ele o veterano, o craque
de tantas glórias, o mais experiente do time, ele é
que tinha que chutar.
Zero a zero, zero a zero, zero a zero. Aos quarenta minutos da fase
final do jogo decisivo do campeonato da segunda divisão do
futebol do absurdo, o juiz, um maldito juiz, sujo como um porco,
bebedor de suor, chupador de sangue, coloca a bola, a bola, a bola
na marca do pênalti, da penalidade máxima, e ele, ele
o veterano, o craque de tantas glórias, o mais experiente
do time, se coloca pra chutar. Ele que recebeu dinheiro, dinheiro,
dinheiro pra não marcar nem aquele, nem nenhum gol. Ele olha
a bola, a bola miúda da segunda divisão, a bola que
prá ele já foi a grande bola de craque, a bola dos
grandes estádios, a bola dos grandes contratos, a bola da
seleção, e agora está ali miúda, miudinha,
rolando quadrada, quente, à esmo e ele olha a bola, a bola,
a bola e a trave, a trave, a trave, a meta, a meta, e embaixo da
trave o goleiro, o goleiro pálido de espanto, atrás
do goleiro o alambrado, a torcida pálida de espanto, e entre
a torcida o repelente abutre imaginador de repelências com
seu enorme nariz comprido, com seus olhos sem luz e sem brilho encravados
nas amareladas e macilentas carnes de sua cara inexpressiva, com
sua boca rasgada onde nunca aflora um sorriso. E ele vê, vê,
vê tudo e espera a hora de chutar. O silêncio desce
pesadamente sobre o campinho de segunda divisão, as aflições
se sufocam na garganta. Ele ganhou dinheiro prá não
marcar aquele gol. Ele, ele, ele... ele pensa... vê e revê
toda sua vida... vida rolada atrás da bola... rolada atrás
de títulos... Ele... ele... ele... atrás dele os adversários
xingando, rogando praga, tentando enervá-lo, os companheiros
sem querer olhar, ao seu lado o juiz, sujo como um porco na sua
frente a bola, o goleiro, a trave, o alambrado, a torcida e o repelente
abutre imaginador de repelências. Ele decide. Vai marcar,
vai marcar, vai marcar, acaba a carreira com um título, um
título de segunda divisão, mas um título.
Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos quarenta minutos finais,
penalti. O juiz apita, ele vai para a bola, bate nela com toda força,
fecha os olhos, ouve o berreiro, o berreiro, o berreiro da torcida,
vaias, vaias, vaias, ele abre os olhos. Os adversários se
abraçam, ele errou. Seus companheiros choram, ele errou.
Chora o técnico, choram os diretores, ele errou. Mas não
queria errar. Não queria. Ele chora. Chora. Chora. Chora.
Zero a zero, zero a zero, zero a zero, acabou o jogo da decisão
do título da maldita segunda divisão do maldito futebol
do absurdo. No frio, escuro, bolorento vestiário, ele, ele
o veterano, o craque que já teve tantas glórias, o
mais experiente do time, chora, e ninguém o consola, ninguém.
Mas o repelente abutre imaginador de repelências se aproxima
e fala, fala, fala, mansamente como quem não tem nada a ganhar,
pacientemente como quem não tem nada a perder.
Você chora, chora, chora como um artista. Te vendo
chorar assim até eu, até eu, chego a pensar que você
errou sem querer.
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