Plínio Marcos
O
seco olhar do velho indio, seco como o olhar de um corpo sem alma,
correu pelo chão seco da triste aldeia e parou na gente seca
de sua outrora tão gloriosa tribo. Gente seca que, com as
mão secas de almas sem esperança, teciam, a duras
penas, vergados sob o peso da indolência, seus ofícios
aviltantes, nesses secos tempos, tempos dos tempos da raça.
E o ofício ali exercido por gente seca, de mãos secas
de almas sem esperança, lhes foi generosamente legado por
seus bravos antepassados, por seus venerados antepassados, que foram
bravos e foram venerados justamente porque exerceram esses ofícios
orgulhosamente em seus tempos, em foram muitos tempos, tempos bastantes
para os fundamentos da tribo serem plantados, tempos bastantes pra
vida da tribo ser honrada por várias gerações.
E o seco olhar do velho indio, seco como o olhar de um corpo sem
alma, já turvo por tantos tempos de sua existência
seca, começava a bem ver, ver de ver, ver de perceber, ver
de penetrar nas entranhas das coisas, ver de enxergar o essencial.
E o seco olhar do velho indio, seco como o olhar de um corpo sem
alma, via, via pela primeira vez que o arco, a flecha, o tacape
e os cocares de penas multicoloridas, que as mãos secas de
almas sem esperança dos lamentáveis indios sem cor,
sem brilho, sem cantos arrematavam, vergados ao peso da indolência,
jamais seriam as armas de valor provado em tantas batalhas, como
aquelas que, em outros tempos, empunhadas por bravos guerreiros,
foram guardiãs da honra da tribo, da liberdade da tribo,
do respeito da tribo por si mesma. E o seco olhar do velho indio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via pela primeira vez
que o barro, amassado sem nenhum encantamento pelas secas índias,
de mamas secas, de ventre apodrecido, parideiras de uma prole sem
cor, sem brilho, sem cantos, prole que não encarnava o bravo
espírito dos bravos guerreiros de outrora, jamais seria a
cuia das doces bebidas que os deuses ensinaram os bravos índios
a beber pra terem sempre seus ânimos renovados para os duros
combates da preservação. E o olhar seco do velho indio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via, pela primeira
vez, que a mandioca batida pelas secas mãos de almas sem
esperança jamais seria a farinha da nutrição
da gente seca de sua outrora tribo. O seco olhar do velho indio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via que jamais,
jamais, jamais o trabalho feito pelas mãos secas de almas
sem esperança seria o nobre trabalho que dignifica o homem.
Que o arco, a fecha, o tacape, o cocar de penas multicoloridas,
o barro, a farinha jamais seriam distendidos, moldados, consumidos
pela liberdade, pela honra, pelo auto-respeito da tribo, gente seca,
de mão secas de almas sem esperança.
O arco, a flecha, o tacape, o cocar de penas multicoloridas, o barro,
a farinha, feitos pela geração enferma da outrora
gloriosa tribo seriam levados pelos tristes índios sem cor,
sem brilho, sem canto, com passos trôpegos, ao posto comercial
dos brancos cidadãos contribuintes e seriam trocados pela
branca aguardente dos brancos cidadãos contribuintes. E a
branca aguardente dos brancos cidadãos contribuintes envenenaria
o sangue, a energia, o trabalho, a fé, a esperança
do índio. Envenenaria o índio, e o arco do índio,
e a flecha do índio, e o cocar de penas multicoloridas, e
o barro do índio, e a farinha do índio, e a cor, e
o brilho, e o canto do índio, e a honra, e a liberdade, e
o respeito do índio por si mesmo, e todos os fundamentos
da tribo do índio, e o ventre apodrecido das mulheres da
tribo, que geraria cada vez mais a mais miserável das descendências
do índio.
E o arco, a flecha, o tacape, e o cocar de penas multicoloridas,
e a cuia iriam enfeitar as brancas paredes das brancas moradas dos
brancos cidadãos contribuintes. E o olhar seco do velho índio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via, pela primeira
vez, que esse comércio já há tanto tempo praticado
por sua gente, por ele mesmo e por seus antepassados, com os brancos
cidadãos contribuintes, lhes envenenava o sangue, os fundamentos
recebidos por herança, os gritos de guerra de toda uma raça,
o sonho, a energia, o trabalho, a ânsia de liberdade, sobretudo
a ânsia de liberdade. E o seco olhar do velho índio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via que era o
tempo dos tempos de sua raça. Via, via, via, o olhar seco
do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, que
era a grande hora de dor da sua tribo. E sentia que era chegado
o seu momento-limite de cacique, o momento de tomar a decisão
mais corajosa de todos os tempos da tribo. Era o momento doloroso
da escolha.
Era a hora do crepúsculo. Era a hora do crepúsculo
da tribo e também era crepúsculo de mais um dia de
triste trabalho da outrora gloriosa tribo. O Sol se punha por trás
das montanhas e a primeira estrela brilhava no infinito. E o seco
olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma,
se fixou nessa estrela. E seu pensamento se elevou até os
grandes espíritos e se fez a magia. E o velho índio,
com a visão imemorial, viu com coragem todos os tempos da
sua tribo. Correu pelas matas com a alma virgem dos bravos índios
que plantaram os fundamentos da tribo, quando as matas eram virgens
das patas dos brancos cidadãos contribuintes. E depois viu
chegarem as brancas caravelas, de brancas velas, com a tripulação
branca de cidadãos contribuintes, que tinham brancas armas
que matavam à distância. E o velho índio viu
e reviu que seus antepassados se deslumbravam diante da branca feitiçaria
dos brancos cidadãos contribuintes, mas não se deixavam
subjugar. E os brancos cidadãos contribuintes em vão
tentaram subjugar os bravos índios, com suas brancas armas.
Não se subjuga um bravo.
Nem o ferro, nem o fogo, nem a chibata subjuga um bravo que sonha
o sonho mais lúcido do espírito, que é a liberdade.
Liberdade pra ser caminheiro em busca de luz, da síntese
do amor e do tempo. E, esgotados os recursos das armas, os brancos
cidadãos contribuintes vieram com os brancos truques da branca
tecnocracia. E o velho índio, com sua visão imemorial,
viu chegarem no meio de sua gente os falsos filhos dos deuses, os
falsos homens do fogo, os falsos filhos do trovão, reles
lacaios brancos dos brancos cidadãos contribuintes que assombraram
os índios com seus brancos truques tecnocratas. Assombravam
os índios os brancos truques da branca tecnocracia dos brancos
cidadãos contribuintes, mas não os subjugavam. Os
bravos índios, assim como todos os bravos, com todo o vigor
das almas puras, ingênuos no fervor de suas crenças,
podem ser acabados pelo furor das armas, podem ser enganados, mas
não se subjugam suas almas livres, nem com o ferro, nem com
o fogo, nem com a chibata. Não se prende o espírito,
nem o espírito se apaga, quando ele retém, mesmo que
inconsciente, a chama geradora da virilidade. E os ingênuos,
no fervor de suas crenças, sempre retêm a sagrada chama.
E o índio não podia ser escravo pelo peso das armas,
ele que já era escravo dos fundamentos da sua tribo, por
querência, por respeito a si mesmo, por honra, pelo desejo
lúcito do espírito de ser livre. Não se escraviza
quem se escravizou espontaneamente no fervor de uma fé. E
o índio de alma pura não se submeteu nem ao ferro,
nem ao fogo, nem à chibata, nem aos assombrosos truques tecnocratas
dos brancos cidadãos contribuintes escravocratas, mesquinhos
escravos da própria ganância. E a visão imemorial
do velho viu, viu, viu bem o peito de seus bravos antepassados serem
rasgados pelo fogo e pelo trovão dos brancos cidadãos
contribuinte. Viu, viu, viu, com a visão imemorial, o sangue
generoso dos seus bravos antepassados regar o solo de terra firme,
consagrada por toda uma raça que se nutria de honra e se
multiplicava em bravos. E o velho índio viu, viu, viu, com
a visão imemorial, que não se ganha nas armas a alma
de um bravo, ingênuo no fervor de sua crença. Mas,
o velho índio, pálido de espanto, viu, viu, viu que
um bravo, mesmo ingênuo no fervor de sua crença, mesmo
forte no fervor de sua crença, pode ser seduzido com a hipócrita
palavra, com o hipócrita paternalismo, com hipócritas
presentes. Com a lábia.
O velho índio, com sua visão imemorial, viu, viu,
viu pálido de espanto, descerem das brancas caravelas dos
brancos cidadãos contribuintes brancos sacerdotes que, viajando
sem bandeira, em nome do grande Deus branco dos brancos cidadãos
contribuintes, foram pacientemente, com agrados, ensinado a língua
estrangeira, os costumes estrangeiros, a religião estrangeira,
a cultura estrangeira ao índio. E foram desarmando o índio
dos seus fundamentos, dos fundamentos da sua tribo, foram descaracterizando
o índio e entregando o índio, desarmado dos seus fundamentos
e de suas crenças, aos brancos cidadãos contribuintes.
O homem sem os seus fundamentos de origem se corrompe, se vicia.
E os brancos sacerdotes dos brancos cidadãos contribuintes,
com a pose de pais magnânimos, corromperam o espírito
do índio nos seus fundamentos. E os brancos cidadãos
contribuintes viciaram a carne do índio, geração
após geração. E foi fácil para os brancos
cidadãos contribuintes, com suas brancas armas tecnocratas,
matarem os poucos índios que não se degeneraram, que
não se desvincularam dos fundamentos da tribo, que não
se descaracterizaram. E aí chamaram os índios desarmados
dos seus fundamentos, adoecidos de corpo e alma, para o comércio.
Comércio feito sempre na língua branca dos brancos
cidadãos contribuintes, com pesos e medidas dos brancos cidadãos
contribuintes, peritos em trocar suas quinquilharias supérfluas
pelos gêneros vitais dos índios. E os brancos cidadãos
contribuintes chamaram o índio, desarmado dos seus fundamentos,
desarmado do fervor de sua crença, doente de corpo e alma,
empobrecido por um comércio sórdido, para fazer acordos
territoriais. E os acordos foram feitos na branca língua
dos brancos cidadãos contribuintes, com os pesos e as medidas
dos brancos cidadãos contribuintes. E foram limitados os
espaço do índio, e foram limitados os sonhos do índio,
e foram apagados os fundamentos da tribo do índio. E o índio,
ao ser desligado dos seus fundamentos, como qualquer povo que se
desliga do seus fundamentos, perdeu o fervor ingênuo em sua
crença, se tornou enfermo de corpo e alma, adquiriu os brancos
vícios dos brancos cidadãos contribuintes, ficou desfibrado,
indolente, sem coragem pra se rebelar. E o velho índio viu,
com a visão imemorial anos e anos a fio, sua tribo, sua raça
inteira se degenerar no contato social, religioso, cultural, comercial
com os brancos cidadãos contribuintes. E viu o velho índio,
viu, viu, viu quantas vezes quis ou teve coragem. Viu tudo com visão
imemorial. E entendeu o velho índio que a sua outrora gloriosa
tribo começou a morrer quando aprendeu a fala branca dos
brancos cidadãos contribuintes. Que começou a morrer
quando aceitou o grande Deus branco do branco cidadão contribuinte.
Que os brancos cidadãos contribuintes, em nome da religião,
da filosofia, da cultura, da tecnocracia, mataram a religião,
a filosofia, a cultura e todos os fundamentos da tribo e da raça.
E o velho índio voltou para si mesmo. Era a hora grande,
hora de todos os espíritos, de uma noite de Lua cheia. A
aldeia estava em silêncio, os índios dormiam o sono
sem repouso das almas secas de sonho. Era a hora grande, hora de
todos os espíritos, de uma noite de Lua cheia, mas era também
a grande hora de uma tribo inteira. E o seco olhar do velho índio,
seco como o olhar de um corpo sem alma, correu pelo seco chão
da triste aldeia dos lamentáveis índios sem cor, sem
brilho, sem canto e encontrou o sagrado tambor de guerra, há
muito tempo mudo por não poder ser tocado por mãos
secas de alma sem esperança. E o velho índio de seco
olhar, como é seco o olhar de um corpo sem alma, tocou o
tambor, tocou o tambor, tocou o tambor. Tocou o toque guerreiro
de toda a sua tribo, tocou o toque dos fundamentos de toda sua raça,
tocou o toque de honra, o toque do auto-respeito, o toque sublime
dos sublimes anseios de liberdade de um povo. Dentro da noite soou
forte o toque de guerra da tribo do velho índio, o toque
dos fundamentos da tribo do velho índio, o toque dos anseios
de liberdade de toda a raça do velho índio. Mas, os
lamentáveis índios, sem cor, sem brilho, sem canto,
estavam arreados pela indolência num sono sem repouso das
almas secas de sonho. Nenhum respondeu aos apelos do toque do tambor
guerreiro batido pelo velho índio. Nenhum escutou o toque
dos fundamentos da tribo e da raça, batidos no tambor guerreiro
pelo velho índio.
E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo
sem alma, se encheu de lágrimas. Ele via, via, via tudo com
clareza. Mas era tarde. Ele não tinha mais a cor, o brilho,
o canto para convocar pra labuta da vida uma gente que se amesquinhou
no aviltante trabalho de mãos secas de almas sem esperança.
Já não tinha, o velho índio, a cor, o brilho,
o canto. A sua pele encardida, o seu sangue apodrecido, seu espírito
vacilante já não tinham a cor, o brilho, o canto para
convocar sua gente de pele encardida, de sangue apodrecido, de espírito
vacilante, para a labuta da vida que dignifica a existência.
E já não tinha a cor, o brilho, o canto para convocar
sua gente sem cor, sem brilho, sem canto para a morte honrosa que
dignifica a existência. E o velho índio compreendeu
que toda a sua raça estava surda aos próprios fundamentos
da raça. E compreendeu que, quando um povo já não
pode ser convocado para a labuta da vida, que é o que dignifica
a existência, quando um povo já não pode ser
convocado para a morte honrosa, que é o que dignifica a existência,
é o tempo final desse povo, é o tempo dos tempos desse
povo. E, compreendendo tudo isso, o velho índio chamou a
sua tribo para o centro da triste aldeia. E vieram todos, sonados,
arrastando seus corpos cansados de almas sem esperança, e
pararam diante do velho índio.
O velho índio de olhar seco, como seco é o olhar de
um corpo sem alma, olhou os lamentáveis índios sem
cor, sem brilho, sem canto, de uma tribo em degeneração
total e, com a voz firme, ordenou serenamente que se matassem todas
as mulheres da tribo nascidas daquela lua em diante. Ordenou serenamente,
com a voz firme de um grande cacique, ordenou com ternura, ordenou
certo de ser obedecido, e se afastou. Foi sentar-se num tronco seco
de uma outrora frondosa árvore e, com os olhos secos, como
são secos os olhos de um corpo sem alma, ficou espiando o
nada, o vazio, esperando o fim de toda sua raça.
|