UM POETA QUE LUTA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de março de
1977
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Neste
texto foi mantida a grafia original
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Plínio Marcos
Hermínio Belo de Carvalho esteve em São Paulo
nessa semana. Veio tratar de importantes negócios para o
samba. Porém (e sempre tem um porém), à noite
ele, pra descansar, foi escutar o samba da paulicéia, chegou
mais nas quebradas do mundaréu, bem ali onde o vento encosta
o lixo e as pragas botam os ovos. Sentou-se no meio da patota, bebeu
o que tinha que beber e escutou com lágrimas nos olhos o
Geraldão da Barra Funda, Zeca da Casa Verde, Talismã
e Toniquinho Batuqueiro. Hermínio Belo de Carvalho, parceiro
de Pixinguinha, de Paulinho da Viola, Maurício Tapajós,
Sueli Costa, Elton Medeiros, Eduardo Godinho, Cartola, Carlos Cachaça,
Vital Lima, Eduardo Marques e tantos bambas; Hermínio Belo
de Carvalho, interpretado por Dalva de Oliveira, Eliseth Cardoso,
Elza Soares, Maria Bethania, MPB4, Ciro Monteiro, Mariza Gata Mansa,
Isaurinha Garcia, Marlene, Simone e tantos e tantos outros tão
grandes cantores, escutou com os olhos cheios de lágrimas
o samba paulistano, um samba que não tem vez, samba que,
dizem as más línguas, quando sai à rua em cordão
vira cordão de isolamento e, se sai em bloco, vira bloco
de concreto. Samba que a Secretaria de Turismo e Fomentos tenta
inutilmente transformar em objeto de consumo, na vã esperança
de encher hoteleco. Mas é esse samba que faz um poeta sensível,
um compositor inspiradíssimo como Hermínio Belo e
Carvalho se comover até às lágrimas.
Mas, o Hermínio Belo de Carvalho não é homem
de contemplação. Ele é um homem sensível
que se machuca muito de ver tão grandes poetas, como Zeca
da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro, Geraldão Filme, Talismã,
impedidos pela máquina de serem amados pelo povo. Porém,
faz dessa sua mágoa energia pra lutar para a conquista de
espaço no Brasil para o compositor brasileiro. Esse moço
poeta é assim. Ele escutou quatro ou cinco horas de samba
de artistas marginalizadas, marginalizados como ele próprio,
e escutou sem dar palpite, humildemente se recusou a dizer seus
sambas, alguns verdadeiras obras-primas. Queria ouvir, segundo ele,
pra aprender com a poesia que o Zeca da Casa Verde, Talismã,
Toniquinho Batuqueiro, Geraldão Filme sangravam com delicadeza
nos melodiosos sambas. E depois, depois de tudo, na madrugada cinzenta
do Bexiga, pedia uma fita com todas as músicas, pra levar
generosamente pra sua mamãe Clementina de Jesus escutar.
Sei não se o poeta Hermínio vai ter sua fita. É
tudo tão difícil pros compositores marginalizados,
até arrumar um K7 e gravar seus sambas. Mas, tenho certeza
que ele virá loguinho a São Paulo pra rever esses
sambistas e escutar outros que está curioso pra conhecer,
gente da pesada, como Odair Fala-Macio, Jangada, Sílvio Modesto,
Clarim, Jordão, Edeval, e percorrer as rodas de samba e sentir
tudo de perto.
Hermínio
é isso
Hermínio
Belo de Carvalho, mulato de olhos verdes, neto de uma negra escrava
e de um criolo violeiro repentista, poeta maior que não
regateia em fazer enormes sacrifícios pra preservar a fisionomia
do povo brasileiro, como lhe ensinou a magnífica Eneida,
Eneida dos Pierrôs, os marginalizados do amor e tantos marginalizados
e impossibilitados de se manifestarem livremente. E pra fazer
o que tão bela mestra lhe ensinou, Hermínio se embebeu
nas lágrimas de Dalva de Oliveira, se embarafusou nas rendas
da sua mamãe Clementina, foi parceiro de Pixinguinha de
copo, de longos papos de poesia e música, viajou nos sonhos
lúcidos de Fernando Pessoa, de Carlos Drummond de Andrade,
de Maiacovisqui, de Bandeira, amou demais e o desamor desaguou
em poetas como Jorge Farages (Deus da Minha Rua), Tem os olhos
onde a Lua/Costuma se embriagar/, Catulo da Paixão Cearense
(não há, ó gente, ó não luar
como esse do sertão) e Orestes Barbosa (Naquele bairro
afastado/Onde em criança eu vivia/a remoer melodias/ de
uma ternura sem par/ passava todas as tardes/ um realejo tristonho/
passava como num sonho/ um realejo a tocar). E que aprendeu também
com os anúncios da Rádio Nacional, e nunca, mas
nunca mesmo, com os poetas concretistas.
Hermínio Belo de Carvalho é o bonde de Santa Teresa,
os trilhos desse bonde correm por sua alma e o levam sempre diretamente
ao Buraco Quente da Mangueira e ele sempre fica compadecido pelo
sujeito ríspido que não sabe dar um abraço
nos amigos e ao chegar em casa é mais triste porque não
soube abraçar os amigos. Hermínio Belo de Carvalho
é tudo isso e sobretudo um inconformado por ver tantos
artistas brasileiros com seus espaços ocupados pelo produto
vindo de fora, produto empacotado de maneira bonita, mas vazio,
e que só serve pra descaracterizar o homem comum da terra
que ele tanto ama.
Uma
luta antiga
Por
volta de 1964, o poeta Hermínio Belo de Carvalho começa
a ver que ele só podia mesmo ser um marginal. E consciente
disso, começa a se misturar com geniais artistas, que a
máquina rejeita. Vai aglutinando em torno de si o que chamam
de subproduto, gente da música erudita e da música
popular, e todos juntos fazem uma séria de concertos. Turíbio
Santos (violão clássico), Clementina de Jesus, Elton
Medeiros, Paulinho da Viola, Benedito César (pai do Paulinho).
A coisa começa a crescer e vão chegando Araci de
Almeida, Araci Cortes, Jacó do Bandolim, Paulo Tapajós,
Oscar Caceres. O Kleber Santos, então diretor do Teatro
Jovem do Rio de Janeiro, que ficava no Mourisco, em Botafogo,
deu muita força, abriu espaço, incentivou o empreendimento
do poeta Hermínio. Surge então uma Feira da Música
Popular. E pra assistirem a Carlos, Nelson Cavaquinho, Carlos
Cachaça, Nelson Sargento, Nescarzinho, Zé Cruz,
Zé Keti, Geraldo Babão, enormes platéias.
E na platéia, desconhecidos jovens como Gil, Torquato Neto,
Capinã, Ceatano Veloso. Aí, não tinha mais
jeito mesmo pro poeta. Ele optou de vez pela marginalidade. Na
máquina, ele só não se envolvia. Entrava
como ponta de lança, como porta-bandeira, na frente, levando
os trancos e abrindo portas pra gente como Cartola, Nelson Cavaquinho,
como a Clementina, essa maravilhosa Clementina de Jesus, que era
tudo o que os donos do brinquedo não queriam. Tanto não
queriam, que ela, com seu enorme talento, só apareceu aos
64 anos de idade. E ele ía dentro da máquina, mas
ía só até certo ponto, quando a máquina
queria sujá-lo já não podia, Hermínio
já estava muito afinado com sua filosofia e se garantia.
Saia fora depressa. Montava shows marginais e foi assim que nasceu
Rosa de Ouro, um marco na música brasileira. E pro Hermínio,
estava selado seu destino: ele é um predestinado a abrir
espaços, mostrar pessoas, mostrar artistas que todos parecem
se recusar a ver. E é feliz com essa sina, que eu desconfio
que foi traçada por ele mesmo.
Sombras
Hermínio
Belo de Carvalho, muitas vezes desempregado, muitas vezes parado
pela máquina, não desanima nunca. Ele é um
convicto de que a união faz a força e, se a união
é bem feita, pode dar muitos frutos. Como é o caso
da Sombrás, que é a união de compositores
de várias tendências, João Bosco, Aldir Blanc,
Sueli Costa, Gutemberg Guanabira, gente que ousou pedir prestação
de contas às sociedades arrecadadoras às quais pertenciam
e que só por isso foram expulsos dessas sociedades. Aí,
essa gente sentiu toda a própria insegurança. Só
tinham mesmo direito ao vômito, mas o vômito não
lhes era dado exibir. Se uniram e formaram a Sombrás. O
presidente é o Tom Jobim, Hermínio é o vice-presidente
e são diretores Macalé, Aldir Blanc, Gonzaguinha,
Victor Martins, Guanabira, e conselheiros Chico Buarque, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Marlene.
Quem
luta sempre tem planos
Hermínio
Belo de Carvalho, poeta enorme, compositor parceiro de Pixinguinha
e tantos outros, interpretado pela divina Eliseth, por Dalva,
Isaurinha e muito mais gente bonita, Hermínio Belo de Carvalho,
desempregado por escolha aos quarenta anos de idade, não
se cansa, não se acomoda, não deita e rola na sua
glória toda. Ele está querendo (e quando ele quer,
ele acaba conseguindo) implantar em todo o Brasil uma experiência
que no Rio de Janeiro foi realizada no Teatro João Caetano,
às seis e meia da tarde. Consistia em apresentar um show
de música brasileira, com artistas que não tem vaga
na televisão, mas que podem ajudar a retratar a fisionomia
do brasileiro, tão descaracterizada pela importação
de cultura de consumo, gente que pode abrasileirar o brasileiro.
Essa experiência no Rio de Janeiro foi um sucesso retumbante.
Foram dezessete shows, cada um cinco dias em cartaz, num teatro
de mil, trezentos e setenta lugares, com a média de mil
e oitenta pessoas por sessão. E era de arrepiar: camadas
silenciosas escutando Alaíde Costa e Turíbio Santos,
ou a Orquestra Tabajara com Jamelão cantando Lupiscínio
Rodrigues, pra tudo explodir num delírio de aplaudos, vivas
e pedidos de bis. E o povão de marmita ou com livros na
mão tomando conhecimento pela primeira vez de Marluci Miranda,
Vital Lima, Osvaldo Montenegro, Mongol. Foi tudo tão lindo,
que não pode ficar limitado apenas ao Rio de Janeiro. É
preciso se espalhar pelo Brasil. E é isso que o poeta deseja.
Ele o pessoal da Sombrás chamam esse sonho de Projeto Pixinguinha
e propuseram à FUNARTE a realização. E aí
é que empacou. Empacou e no entanto precisa de tão
pouco pra ser realizado. Em São Paulo, por exemplo, o poeta
precisaria só de um teatro de mais de mil lugares. E seria
nesse teatro que se misturariam os grandes nomes da música
popular brasileira com os grandes sambistas desconhecidos de São
Paulo, como Zeca da Casa Verde, Geraldão Filme, Toniquinho,
Talismã, Sílvio Modesto, Odair Fala-Macio, Jangada,
Clarim e muitos outros que por falta de espaço pra se manifestarem
espontaneamente ainda não são nem conhecidos nas
quebradas. Precisam do Hermínio Belo de Carvalho, um valente
abridor de espaço para os artistas brasileiros no Brasil.
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