Plínio Marcos
A
tradição canavalesca de São Paulo era o cordão.
Havia algumas escolas de samba, porém (e sempre tem um porém),
os bambas, a pesada eram os cordões. Camisa Verde e Branco
(branço mesmo), Vai-Vai, Paulistano da Glória, Campos
Elíseos, Som de Cristal eram todos famosos cordões.
E o cordão paulista tinha batida diferente das escolas de
samba, tinha outras figuras e outras mumunhas. Eu disse "tinha".
Porque, que eu saiba, não existe mais nenhum cordão
em São Paulo. Os que não acabaram de vez se transformaram
em escolas de samba. Como é o caso do Vai-Vai e do Camisa
Verde e Branco, que foram os que mais resistiram, antes de se transformarem
em escolas de samba. E o fim dos cordões, sem dúvida
nenhuma, se deve ao elitismo, ao paternismo das autoridades que,
quando resolvem incrementar algumas manifestações
espontaneas do povo, mesmo quando estão bem intencionadas,
só atrapalham. Isso porque as autoridades, sempre tão
distantes das bases, tomam suas medidas dentro dos gabinetes, escutando
acessores que geralmente se preocupam com o brilhareco que resulte
em algum lucro e nunca nos interesses da coletividade.
No caso do samba de São Paulo, não deu outra coisa.
O Prefeito Faria Lima resolveu, com a melhor das intenções,
oficializar o Carnaval de São Paulo. Mas deve ter consultado
gente que sempre achou que nesta cidade não havia samba,
nem sambistas. E essa gente, sem vacilar, desconhecendo totalmente
o que é Carnaval, desconhecendo que carnaval não se
resume apenas em desfiles, nem em escolas de samba, que desfile
e escolas de samba são um aspecto do carnaval, que existem
vários outros aspéctos que também devem ser
considerados, essa gente estava interessada na cascata que podia
fazer em torno da oficialização do Carnaval e não
na preservação dos costumes carnavalescos do povo
desta cidade. E então, sem nenhuma cerimônia, fizeram
a presepada: oficializaram o Carnaval. Mas, na lei, ficou claro
que o único evento carnavalesco que a Prefeitura se via obrigada
a realizar era o desfile das escolas de samba. Resultado, todo incentivo
da Prefeitura para as escolas de samba e nenhum para os cordões
que, diante da indiferença das autoridades, foram se extinguindo
ou virando escolas de samba, puxadas aos defeitos das escolas do
Rio de Janeiro (é mais fácil copiar defeito que virtude)
e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São
Paulo.
O samba paulista é diferente do samba baiano que se instalou
no Rio de Janeiro a partir da casa das "tias". O samba
paulista é mais puxado ao batuque, ao samba de trabalho.
Do toco, durão. O samba paulista vem das fazendas de café.
O crioulo vindo do interior ia se instalando perto dos locais de
trabalho: Jardim da Luz, Barra Funda, Largo da Banana, Praça
Marechal, Alameda Glete, Bexiga, Rua Direita, Praça da Sé.
E aqui, como no Rio de Janeiro, a polícia perseguia o samba
e os sambistas. No Rio de Janeiro, os pagodeiros subiam o morro
e a polícia se acanhava, e aí, não havia remandiola.
O samba era solto, batido na mão, espalhado pelo terreiro.
Aqui, o sambista se recolhia nos porões e lá puxava
o samba, mas, naturalmente, não era a mesma coisa. Um samba
espalhado debaixo de um céu cheio de estrelas e de luar e
um samba espremido em porões, nos quais crioulo de mais de
um metro e setenta tinha que mostrar o que sabia todo dobrado, pra
não bater com a testa nas vigas. E quando o pagode esquentava,
era tanta poeira que subia, que só era possível saber
que estava havendo samba pelo ronco da cuíca e pelo gemido
do cavaquinho, porque ver, não se via ninguém.
São muitos os grandes sambistas de São Paulo: Vassourinha
(Olha aí, carnavalescos de escolas de samba, que andam com
mania de enredo com vida de artista: esse foi gente grande e de
muita embaixada no rádio), Dionísio Camisa Verde,
Marmelada, Jamburá, Feijó, Pato Nágua, Sinval,
Inocêncio Mulata, Carlão do Peruche, Nenê da
Vila Matilde, Pé Rachado, Zézinho do Morro da Casa
Verde, Geraldão da Barra Funda, Chiclete, Zeca da Casa Verde,
Toniquinho, Nego Braço, Zoinho, Dona Eunice, Sinhá,
Donata, Tudo gente que mantinha o samba na rua na época em
que a polícia acabava samba na base do chanfralho. Tudo gente
de valor provado no meio das batalhas. Tudo gente que saía
nos cordões pelo prazer de sair, por gostar de samba, por
querer sambar. No centro da cidade, muitas vezes, um cordão
que ía encontrava um cordão que vinha. Então,
era coisa pra valente. Ninguém recuava. Os cordões
se cruzavam. Tinha um ritual todo cheio de parangolé. O baliza
de pau de um cordão protegia a porta-estandarte do outro
cordão. Os estandartes (ou bandeiras) eram trocados com muita
gentileza e muito respeito. Depois de um tempo, se destrocavam os
estandartes (ou bandeiras) e aí o pau comia. Navalha, tamanco,
porrete entravam na fita pra bagunçar o pagode.
Pato Nágua foi levar uma cabrochinha lá pras bandas
de Suzano. Amanheceu boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala.
Dizem que foi a primeira vítima do Esquadrão da Morte.
Ninguém sabe direito. Defunto não fala. O que se sabe
é que a notícia chegou no Bexiga à tardinha,
na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos, escamosos e
esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as
quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo
e as pragas botam os ovos, o povão chorou a morte do sambista
Pato Nágua. E o Geraldão da Barra Funda, legítimo
poeta do povo, chorou por todos num bonito samba chamado Silêncio
no Bexiga.
O Largo da Banana era o lugar onde os caminhões que vinham
do interior encostavam pra descarregar. Ali se juntava a curriola.
Enquanto não vinha caminhão se armava o samba duro.
Se jogava a tiririca:
É tumba, moleque, é tumba
é tumba pra derrubar
tiririca, faca de ponta
capoeira vai te pegar
Dona Rita do Tabuleiro
quem derrubou meu companheiro
Abre a roda, minha gente
que comigo é diferente
E só parava na roda quem se garantia. E o Inocêncio
Mulata (hoje presidente do Camisa Verde e Branco da Barra Funda)
sabia tudo. Tudo e mais alguma coisa. E no Carnaval, puxava no surdão
um famoso trio de couro. Ele no surdão, o Feijó na
caixa de guerra e o Zoinha no tamborim. Paravam num boteco qualquer
e começavam a zoar. Ia juntando gente, juntando gente e aí
o rio saía pela Barra Funda, com uns duzentos sambando atrás.
Na Praça Marechal, já eram dois mil, na Glete, cinco
mil. Aí, era zorra, zorra total, até a polícia
chegar. Foi nesse trio de couro que o Inocêncio ganhou o apelido
de Mulata. Logo ele, que não é de fazer careta pra
cego, resolveu aprontar pro Feijó, que não podia ver
rabo de saia. O Inocêncio pegou um vestido da Dona Sinhá,
meteu um turbante, se embonecou e ficou na moita. O Feijó
e o Zoinha, que estavam no boteco esperando o companheiro de trio,
foram tomando todas. Quando já estavam bem bebuns, e achando
que o Inocêncio não viria mais, ele se apresentou vestido
de mulher. Fez sucesso pro Feijó, que achou aquilo uma tremenda
mulata e foi logo pagando cerveja. Mais encantado ainda ficou o
Feijó quando aquela mulata pegou no surdo e mandou ver. O
trio saiu. O Feijó todo preocupado com a mulata e alimentando
ela com cerveja até a Glete. Aí, o Feijó resolveu
partir com tudo. Se entortou. O Inocêncio tirou o turbante
e se apresentou. O patuá do Feijó entortou. Mas o
Inocêncio ganhou pra sempre o apelido de Mulata.
Mas a guerra se avacalhou. Não existe mais trio de couro,
nem bloco de sujo, nem vai-quem-quer. Essas manifestações
espontâneas do povo, que sempre a polícia tentou acabar
sem conseguir, acabaram graças às promoções
carnavalescas da Prefeitura. No lugar dessas coisas todas, a Prefeitura
meteu o Trio Elétrico. A própria poluição
sonora, que com guitarras elétricas e grandes aparelhos de
som, esmagam, apagam qualquer instrumento de couro batido por um
sambista. Alguns músicos defendem essa jeringonça
como mercado de trabalho, mas esquecem que um toca-fitas e uma Kombi
fazem o mesmo efeito que esse trio elétrico. E esquecem que
falta mercado de trabalho porque muitos bailes de Carnaval em São
Paulo são animados por toca-fitas e que a própria
Prefeitura promove um bailão pra quarenta mil pessoas, com
toca-fitas.
São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está
tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes.
E isso tudo é muito triste. Porque o Carnaval sempre serviu
pras manifestações espontâneas do povo. E tudo
agora vai se resumindo num espetáculo pra atrair turista.
Feito no gosto dos turistas e avaliado pelos padrões culturais
das elites. E isso dói. Porque um povo que não ama
e não preserva suas formas de expressão mais autênticas
jamais será um povo livre.
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