FIM DE FESTA

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 27 de fevereiro de 1977

Neste texto foi mantida a grafia original

Plínio Marcos

Entre as cinquenta e duas escolas de samba e mais os blocos de São Paulo devem ter desfilado uns dez mil sambistas. E nos quatro dias de Carnaval um milhão de pessoas deve ter assistido a esse desfile. É muito pouca gente desfilando e muita gente espiando, contida por cordões de isolamento, cercas e polícia, sem poder participar. Isso não é lazer. Assistir a um espetáculo mal acomodado, sem ter direito a entrar no espetáculo não é lazer. Mas, isso é o que vem sendo feito em nosso País. Acabam com os campos de futebol de várzea e se constroem estádios. Acabam com as peladas e se reduzem todos os peladeiros a meros assistentes nos grandes estádios. Não dão espaço pra quadras de samba e põem o povo pra assistir ao desfile. Os bailinhos, os timecos de esquina, as festinhas das comunidades dos bairros estão desaparecendo. E o homem nas grandes cidades vai ficando cada vez mais tenso.


Diziam nas rodas de samba que a Barroca Zona Sul tinha feito um despacho de duas mil galinhas, que a Vai-Vai defumou o bairro inteiro do Bexiga, que a diretoria do Camisa Verde e Branco da Barra Funda fez um forte trabalho na cachoeira, que o charuto do Juarez da Cruz da Mocidade Alegre estava cruzado com cinza de cemitério, que o Paulistano da Glória fez muito padê e que teve escola que até deu um boi em pé na macumba. Se é verdade, não sei. Mas, todas essas escolas desfilaram muito bem. O Carnaval só não foi um sucessão por causa da desorganização da Secretaria de Turismo. Mas, essa deu crepe. O Caboclo Jaraguá, que pegou seu serviço, não funcionou.


A Escola de Samba Paulistano da Glória trouxe a sua bateria tocando jongo-macumba, que é a batida conhecida por caxambu. Ver uma coisa dessas em escola de samba hoje em dia é raro. Muito raro mesmo. Será que a comissão julgadora consegue ver isso? Será que a comissão julgadora percebe a importância que tem pra cultura popular brasileira uma escola de samba como o Paulistano da Glória?

Agora, aqui em São Paulo é moda a escola homenagear um artista, fazendo da vida dele seu enredo. Só que a vida desses artistas cantados pelas escolas de samba dá a impressão de que nem foram vividas. Lamentável a homenagem da Escola de Samba Morro da Casa Verde a Cacilda Becker. Outra coisa que é moda é o artista homenageado com enredo vir de carro-alegórico. Joel de Almeida, homenageado pela E. S. Meninos Lá de Casa, e Procópio Ferreira, homenageado pela Mocidade Alegre do Bairro do Limão, foram alegorias dessas escolas. Sobre isso, Procópio Ferreira me disse:
- A escola estava bonita. Mas só tinha dois mil componentes. Não dava nem pra formar a ala das minhas ex-mulheres.

Mais uma vez fica provado que a intelectualidade brasileira só não é júri de programa de Silvio Santos e Chacrinha porque esses não conhecem os intelectuais e não os convidam. Mas, no Carnaval, quando os intelectuais são convocados pra julgar escola de samba, vão correndo e vão por um cachê tão mixo, que seria recusado por Zé Fernandes, Wilza Carla, Elke Maravilha, Pedro de Lara e por qualquer outro julgador profissional.
Uma comissão julgadora naturalmente julga o que vê pelos seus padrões culturais. A intelectualidade de um país subdesenvolvido como o Brasil recebe formação importada, do jardim da infância até a faculdade, e acaba sendo completamente ignorante em relação à cultura popular. Aí, se colocada na posição de julgar a arte popular, comete verdadeiros crimes. E quando esse julgamento então vêm acompanhando de prêmios pros considerados melhores e castigo para os que são considerados piores, o crime contra as manifestações espontâneas são muito mais horripilantes, porque o povo que sempre foi condicionado pelos colonialistas a achar que é inculto, se acanha diante dos elitistas, sente vergonha da própria arte e tenta imitar a cultura de consumo importada, na vã esperança de agradar seus censores intelectuais. É isso o que vem acontecendo com nossas escolas de samba. Anos a fio, julgados por intelectuais elitistas, os sambistas viam, pálidos de espanto, seus valores mais autênticos serem menosprezados nas notas dadas pelos júris. Aí, os sambistas, balançados nas suas raízes culturais, nas suas crenças, começaram a duvidar das suas mais autênticas formas de expressão. Sendo dia e noite engravidados pelos olhos e ouvidos pela cultura de consumo que ocupa nossos veículos de comunicação, os sambistas e os artistas do povo se confundiram totalmente e foram procurar socorro em intelectuais e na periferia da intelectualidade encontraram gente querendo aparecer mais do que carro-alegórico. Resultado: hoje o que menos interessa na escola de samba é samba. Fantasia com paetês, vidrilho, lantejoula e missangas, alegorias com cascata e crocodilo contam mais do que samba-enredo e que samba no pé. E com essas e outras, o sambista vai afastando das escolas. Os compositores de samba-enredo das escolas vão sendo marginalizados e em seus lugares vão aparecendo os catitus, que já desgraçaram a marchinha de carnaval e que agora vão fazendo o mesmo com o samba-enredo. Esses catitus, mancomunados com os agentes das gravadoras (quase todas multinacionais) e disc-jóqueis corruptos, fazem uma máfia que determina o que o povo deve cantar ou não. E o Estado, o Governo, que devia ser o primeiro a zelar pela cultura do povo, ajuda a esmagar as manifestações espontâneas, censurando o que é autêntico, o que representa a realidade, e incentivando com subvenções tudo aquilo que agrada turista, intelectuais paternalistas e que naturalmente não incomoda socialmente.
Nada pode ser mais absurdo do que um bailão pra sessenta mil pessoas. Nada pode ser mais absurdo do que sessenta mil pessoas dançando ao som de um toca-fitas. Nem os maiores artistas de vanguarda, nem os maiores mestres da ficção poderiam imaginar um negócio tão absurdo como um bailão onde sessenta mil pessoas dançam ao som de um toca-fitas. Só mesmo a Prefeitura de São Paulo é que podia ter essa idéia anã de fazer um bailão gigante. Ali, no meio do baile, as pessoas se tornam tensas em grau extremo, ficam terrivelmente agressivas, querem entrar nesse baile armadas, vão certas de que terão que se defender, vão certas de que terão que agredir. A Prefeitura de São Paulo, em vez de bolar um carnaval pra descontrair o povo gasta uma tremenda fortuna pra abilolar esse povo de uma vez.


Fora esse bailão pra sessenta mil pessoas, no Anhembi, fora o desfile de escolas de samba na Avenida Tiradentes e em alguns poucos bairros, a Prefeitura não fez mais nada. Mesmo pra fazer só essas coisas, a Prefeitura gastou uma fortuna. E mesmo gastando uma fortuna pra fazer essas poucas coisas, a Prefeitura se sentiu obrigada a contratar uma firma particular, a Jaraguá, pra organizar o Carnaval. Diante disso tudo, a gente pergunta: pra que servem os milhares e milhares de funcionários públicos da Prefeitura de São Paulo? Pra que servem os funcionários da Secretaria de Turismo e Fomentos do Município, à qual o Carnaval está afeto? Será que eles só servem pra contratar a Companhia Jaraguá pra fazer a coisa pra eles?


O simpático Cláudio Lembo, presidente da Arena, disse no microfone de uma emissora que realmente algumas críticas ao Carnaval de São Paulo procediam, mas que ele achava que todos deveriam colaborar enviando sugestões ao prefeito. Juro por Deus que eu pensava que o Senhor Prefeito lia jornal, porque a imprensa não faz outra coisa a não ser dar sugestões pra um carnaval melhor. Mas, mesmo nosso prefeito não perdendo tempo lendo jornais, eu gostaria de informar que uma firma comprou e pagou pareceres do Rossini Tavares de Lima, do Zé Ramos Tinhorão, do Walter Silva (Picapau), do Caetano Zama, do Derli, presidente da UESP, sobre o carnaval dessa cidade, e os vendeu posteriormente para a Prefeitura. E segundo me consta, esses pareceres foram todos enfurnados. Ninguém ali recomendou bailão com toca-fitas pra sessenta.
 

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