No
dia 17 de fevereiro de 1973, Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha,
sofreu um segundo enfarte em plena igreja de Nossa Senhora da
Paz, em Ipanema, para onde fora a fim de assistir ao batizado
do filho de um amigo. Morreu naquele mesmo dia, coberto de glórias,
considerado patrimônio maior da música popular brasileira.
Homenagens, no entanto, não bastam. De pouco adianta festejá-lo
se sua obra, passada uma década de sua morte, ainda não
foi objeto de um estudo sério sequer.
Evidentemente, os anedotários se multiplicam e as lendas
aumentam em número a cada ano que passa. Um conhecimento
mais profundo de sua fartíssima produção,
a análise detida e minuciosa das características
de sua música instrumental, a revolução que
operou no choro, a inserção de sua música
no processo social e político do Brasil entre 1920 e 1940
- nada disso ainda foi feito. Muito menos suas gravações
possuem hoje a chance mínima de circular. O último
LP reunindo 14 de seus temas mais engenhosos é de 1979,
da Som Livre, com seleção de Sérgio Cabral,
e naturalmente, já está fora de catálogo.
Mas, como de nada valem lamentos desse tipo, passemos a alguns
comentários sobre este excepcional músico, que dividiu
seu extraordinário talento primeiro na flauta (até
1940) e em seguida no saxofone tenor - tecendo maravilhosos improvisos.
Em primeiro lugar, desfaçamos um equívoco: normalmente
pensa-se que Pixinguinha incorporou o saxofone aos Oito Batutas
somente depois da excursão que fizeram a Paris em 1921-1922,
financiados pelo milionário Arnaldo Guinle. Donga, um dos
integrantes do conjunto, esclarece, em depoimento ao MIS, que
desde o começo do século o chamado "terno"
do choro era composto por saxofone, pistão e bombardino,
e depois por pistão, trombone e bombardino. Portanto, os
chorões já conheciam de sobra o saxofone, inventado
na segunda metade do século passado. Pixinguinha é
que só o experimentou lá em Paris, e achou que era
fácil tocá-lo, já que era instrumento semelhante
à flauta, que dominava como ninguém.
Pixinguinha, por sua vez, no depoimento de 1966 dado ao MIS do
Rio de Janeiro, faz uma série de confusões. Chega,
entre outras coisas, a afirmar que assistiu Louis Armstrong e
seu conjunto no Folies Bergères, em Paris (e isso não
é verdade, pois Armstrong só foi a Paris vários
anos mais tarde). Nesse sentido, é mais confiável
o depoimento de Donga, que conta que os americanos começaram,
naquela época, a encher Paris com conjuntos de jazz que
faziam shows beneficientes para os mutilados da Primeira Guerra
Mundial. "A gente também fazia música comercial",
diz ele a certa altura, e isso quer dizer gêneros como o
charleston, o shimmy, o ragtime e até o blues. Tudo isso
significa que muito provavelmente o jazz que Pixinguinha e seus
companheiros Batutas conheceram em Paris era constituído
de formas ainda primitivas de música negra norte-americana.
Em todo caso, não se pode dizer que tenha havido influência
direta de formas jazzísticas sobre Pixinguinha. Pelo contrário,
suas músicas de antes de 1918 podem tranquilamente ser
classificadas como muito mais avançada, em termos de improvisação
mais solta. João Luiz Ferrete, pesquisador da música
popular brasileira, acredita que Pixinguinha era um "jazzista
quadrado", no sentido de que o que conhecia de jazz eram
no máximo "as bandinhas estilo New Orleans, com cornetas
etc." "Ele era basicamente um intuitivo, que tinha um
talento extraordinário para a orquestração
e um poder de assimilação e aglutinação
realmente fantásticos. Mas acabou sendo alijado no posto
de arranjador da RCA Victor por Radamés Gnattali, músico
que já veio do Sul com boas noções técnicas
de música".
Ferrete - que participou da obra coletiva "Discografia Brasileira
em 78 rpm", editada pela Funarte, e escreverá três
capítulos de outra obra coletiva a ser publicada este ano
pela Funarte sobre a "História do Disco no Brasil"
- fez uma descoberta interessantíssima há apenas
uma semana: "Estava o Pedro Caetano em minha casa papeando,
quando veio à baila a história de "Carinhoso",
cuja música foi composta em 1917. Foi quando ele me contou
um episódio inédito sobre a gravação
da música em 1937, por Orlando Silva. O cantor, que não
gostara da letra de João de Barro, o Braguinha, confidenciou
ao seu irmão Edmundo Silva o fato. Este pediu a Pedro Caetano
que fizesse outra letra. Orlando chegou a decorar a letra alternativa,
mas Braguinha, que era muito esperto, já assinara o contrato
para a gravação de sua letra com a RCA Victor. Orlando,
que foi ao estúdio disposto a gravar a letra de Pedro Caetano,
viu-se forçado, a contragosto, a cantar a letra de Braguinha,
esta que todos conhecemos hoje."
Caetano, na época grande amigo de Edmundo Silva e autor
de várias músicas gravadas por Orlando Silva (como
"Caprichos do Destino", "Não Creio na Ventura"
e "Felicidade Errou Seu Endereço"), agora septuagenário,
confessa que "hoje não assinaria uma letra com linguagem
tão cafona como esta. Mas o estilo das letras da época
era este", justifica. Não se negou, porém,
a gravá-la em fita na casa de Ferrete. É desta fita
que a letra (ver quadro acima) foi tirada. O mínimo que
se pode dizer é que Braguinha, além de esperto,
era muitíssimo melhor letrista.
J.M.C.
Uma letra inédita de "Carinhoso"
O
poema original de João de Barro
Meu
coração, não sei porquê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim,
Foges de mim
Ah,
se tu soubesses
Como eu sou tão carinhoso
E o muito e muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias
Mais de mim
Vem,
vem, vem
Vem, vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz, bem feliz.
A
"substituta" de Pedro Caetano
Na
mansidão do teu olhar
Meu coração viu passear
Uma feliz e meiga bonança
Quis abraçar, sentiu esperança
Mas eu fugi
Sem lhe sorrir
Preso
à sensação
Daquele quadro que a ilusão
Descortinou tão docemente
Parte cegamente a suspirar
Por uma luz que mal surgiu
Viu se apagar
Vem,
vem, vem, vem
Traz ao fosco brilhar
Dos olhos meus
A caricia dos seus
Vem sentir o quanto é bom
E carinhoso, vem afogar
Este coração
Que a solidão quer matar