HÁ DEZ ANOS A MPB PERDIA SEU MESTRE


Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1983


No dia 17 de fevereiro de 1973, Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha, sofreu um segundo enfarte em plena igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para onde fora a fim de assistir ao batizado do filho de um amigo. Morreu naquele mesmo dia, coberto de glórias, considerado patrimônio maior da música popular brasileira. Homenagens, no entanto, não bastam. De pouco adianta festejá-lo se sua obra, passada uma década de sua morte, ainda não foi objeto de um estudo sério sequer.
Evidentemente, os anedotários se multiplicam e as lendas aumentam em número a cada ano que passa. Um conhecimento mais profundo de sua fartíssima produção, a análise detida e minuciosa das características de sua música instrumental, a revolução que operou no choro, a inserção de sua música no processo social e político do Brasil entre 1920 e 1940 - nada disso ainda foi feito. Muito menos suas gravações possuem hoje a chance mínima de circular. O último LP reunindo 14 de seus temas mais engenhosos é de 1979, da Som Livre, com seleção de Sérgio Cabral, e naturalmente, já está fora de catálogo.
Mas, como de nada valem lamentos desse tipo, passemos a alguns comentários sobre este excepcional músico, que dividiu seu extraordinário talento primeiro na flauta (até 1940) e em seguida no saxofone tenor - tecendo maravilhosos improvisos. Em primeiro lugar, desfaçamos um equívoco: normalmente pensa-se que Pixinguinha incorporou o saxofone aos Oito Batutas somente depois da excursão que fizeram a Paris em 1921-1922, financiados pelo milionário Arnaldo Guinle. Donga, um dos integrantes do conjunto, esclarece, em depoimento ao MIS, que desde o começo do século o chamado "terno" do choro era composto por saxofone, pistão e bombardino, e depois por pistão, trombone e bombardino. Portanto, os chorões já conheciam de sobra o saxofone, inventado na segunda metade do século passado. Pixinguinha é que só o experimentou lá em Paris, e achou que era fácil tocá-lo, já que era instrumento semelhante à flauta, que dominava como ninguém.
Pixinguinha, por sua vez, no depoimento de 1966 dado ao MIS do Rio de Janeiro, faz uma série de confusões. Chega, entre outras coisas, a afirmar que assistiu Louis Armstrong e seu conjunto no Folies Bergères, em Paris (e isso não é verdade, pois Armstrong só foi a Paris vários anos mais tarde). Nesse sentido, é mais confiável o depoimento de Donga, que conta que os americanos começaram, naquela época, a encher Paris com conjuntos de jazz que faziam shows beneficientes para os mutilados da Primeira Guerra Mundial. "A gente também fazia música comercial", diz ele a certa altura, e isso quer dizer gêneros como o charleston, o shimmy, o ragtime e até o blues. Tudo isso significa que muito provavelmente o jazz que Pixinguinha e seus companheiros Batutas conheceram em Paris era constituído de formas ainda primitivas de música negra norte-americana.
Em todo caso, não se pode dizer que tenha havido influência direta de formas jazzísticas sobre Pixinguinha. Pelo contrário, suas músicas de antes de 1918 podem tranquilamente ser classificadas como muito mais avançada, em termos de improvisação mais solta. João Luiz Ferrete, pesquisador da música popular brasileira, acredita que Pixinguinha era um "jazzista quadrado", no sentido de que o que conhecia de jazz eram no máximo "as bandinhas estilo New Orleans, com cornetas etc." "Ele era basicamente um intuitivo, que tinha um talento extraordinário para a orquestração e um poder de assimilação e aglutinação realmente fantásticos. Mas acabou sendo alijado no posto de arranjador da RCA Victor por Radamés Gnattali, músico que já veio do Sul com boas noções técnicas de música".
Ferrete - que participou da obra coletiva "Discografia Brasileira em 78 rpm", editada pela Funarte, e escreverá três capítulos de outra obra coletiva a ser publicada este ano pela Funarte sobre a "História do Disco no Brasil" - fez uma descoberta interessantíssima há apenas uma semana: "Estava o Pedro Caetano em minha casa papeando, quando veio à baila a história de "Carinhoso", cuja música foi composta em 1917. Foi quando ele me contou um episódio inédito sobre a gravação da música em 1937, por Orlando Silva. O cantor, que não gostara da letra de João de Barro, o Braguinha, confidenciou ao seu irmão Edmundo Silva o fato. Este pediu a Pedro Caetano que fizesse outra letra. Orlando chegou a decorar a letra alternativa, mas Braguinha, que era muito esperto, já assinara o contrato para a gravação de sua letra com a RCA Victor. Orlando, que foi ao estúdio disposto a gravar a letra de Pedro Caetano, viu-se forçado, a contragosto, a cantar a letra de Braguinha, esta que todos conhecemos hoje."
Caetano, na época grande amigo de Edmundo Silva e autor de várias músicas gravadas por Orlando Silva (como "Caprichos do Destino", "Não Creio na Ventura" e "Felicidade Errou Seu Endereço"), agora septuagenário, confessa que "hoje não assinaria uma letra com linguagem tão cafona como esta. Mas o estilo das letras da época era este", justifica. Não se negou, porém, a gravá-la em fita na casa de Ferrete. É desta fita que a letra (ver quadro acima) foi tirada. O mínimo que se pode dizer é que Braguinha, além de esperto, era muitíssimo melhor letrista.

J.M.C.


Uma letra inédita de "Carinhoso"

O poema original de João de Barro

Meu coração, não sei porquê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim,
Foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como eu sou tão carinhoso
E o muito e muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias
Mais de mim

Vem, vem, vem
Vem, vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz, bem feliz.

A "substituta" de Pedro Caetano

Na mansidão do teu olhar
Meu coração viu passear
Uma feliz e meiga bonança
Quis abraçar, sentiu esperança
Mas eu fugi
Sem lhe sorrir

Preso à sensação
Daquele quadro que a ilusão
Descortinou tão docemente
Parte cegamente a suspirar
Por uma luz que mal surgiu
Viu se apagar

Vem, vem, vem, vem
Traz ao fosco brilhar
Dos olhos meus
A caricia dos seus
Vem sentir o quanto é bom
E carinhoso, vem afogar
Este coração
Que a solidão quer matar


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