MARCELO
RUBENS PAIVA
especial para Folha
Dois dos maiores representantes do samba partideiro e
de raiz, Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho, ídolos da
malandragem e narradores da irreverência, negam os estereótipos
construídos pela própria fama, em encontro promovido pela
Folha. Bezerra, 26 discos, o mais roqueiro dos sambistas,
já gravou com RPM, Virgulóides, O Rappa, Marcelo D2, e
seu último lançamento foi "Malandro É Malandro, Mané É
Mané". Pagodinho, que em 89 lançou o disco "Boêmio Feliz"
e foi sempre identificado como membro do "partido meio
alto", canta agora "eu deixei de ser pé-de-cana, eu deixei
de ser vagabundo, aumentei minha fé em Cristo, sou benquisto
por todo mundo". Nenhum dos dois é mané, mas o encontro
não começou tranquilamente, e fui eu quem quase o arruinou.
Por que, malandragem? Porque comecei com a pergunta errada:
"A cocaína estragou o samba do morro?" Tudo errado...
Ao fazer a pergunta, Pagodinho se levantou contrariado,
deu as costas e depois saiu. Voltou, mas não parou quieto.
Fui salvo por Bezerra, que percebeu o clima pesado e,
paternalmente, "não deixou o samba morrer".
Folha
- A cocaína, o pó...
Zeca
Pagodinho - Ah, espera lá! (Pagodinho se levanta da
mesa.)
Folha
- ... estragou o samba do morro?
Pagodinho
- Tá, tá... (Pausa)
Bezerra
- O que eu tenho a dizer é o seguinte. Nunca vi ninguém
dar dois em nada...
Pagodinho
- Eu ia falar isso.
Folha
- Vocês gostam do novo pagode?
Bezerra
- Eu...
Pagodinho
- Tem um tempo que nós nos vimos no aeroporto.
Bezerra
- É... Um tempão, já.
Pagodinho
- Uns quatro anos. (Pagodinho sai da sala)
Bezerra
- Não existe esse papo.
Folha
- Que papo?
Bezerra
- Que fulano é ruim, é bom...
Folha
- Quem disse isso?
Bezerra
- O sol nasceu pra todos, todos os colegas são bons. Cada
um tratando de si. Eu acredito que o meio está pra todo
mundo. Graças a Deus, muitos colegas estão fazendo sucesso.
Um sambista carrega a bandeira do samba. (Pagodinho volta.)
Pagodinho
- É isso aí. Acho que nem vou precisar falar nada, não.
Bezerra
- Comigo e com o Zeca não vai ter esse papo, ninguém ataca
ninguém.
Folha
- O repertório de vocês é mais satírico, ligado ao cotidiano
da malandragem. Diferente desse pagode novo, que fala
de amor?
Pagodinho
- Segmento, cara. É música também. Eu gosto, meus filhos
gostam, compro pra eles.
Folha
- Não estou querendo que falem mal, estou tentando entender
as diferenças...
Bezerra
- O sucesso depende muito de cada um, cada um tem
seu gênero. Se o samba está bem, de um modo geral, está
todo mundo bem, compadre.
Pagodinho
- E isso passa, daqui a pouco vem outro.
Bezerra
- O negócio é a gente fazer aquilo que pode, acreditar.
O sambista leva uma vida difícil.
Pagodinho
- Mas tá melhorando. Apesar de ter muita gente de fora.
Bezerra
- O mundo do samba tem muita gente.
Pagodinho
- E boa. Se deixarem, a gente toma conta...
Bezerra
- Todo mundo aqui é guerreiro.
Pagodinho
- Já cantei passando fome. Mas cantei com alegria.
Bezerra
- Sambista e crioulo jogam sempre atrás do gol. O samba
não dá muitas oportunidades.
Pagodinho
- A vantagem é que quem gosta do samba não desiste. Não
quer saber se vai fazer sucesso ou não, vai fazendo mesmo...
Bezerra
- Sou considerado cantor de bandido. Isso não me atinge,
tenho consciência do que faço.
Folha
- Mas você provoca...
Bezerra
- Não. Sou realista.
Folha
- Com frases de duplo sentido.
Bezerra
- Não sou autor. Tenho uma equipe.
Pagodinho
- É um porta-voz.
Bezerra
- Gravo a realidade brasileira do povo faminto e marginalizado.
Cada um entende de um jeito. O importante é vender. Artista
bom é aquele que vende, segundo o mercado. Veja a frase
"tem coca aí na geladeira", frase que todo mundo diz,
mas como é o Bezerra que canta, então sujou.
Folha
- O Bezerra veio, aos 15 anos, clandestino em um navio
de Recife. E você, Zeca, teve uma vida difícil na infância?
Pagodinho
- A vida de todo mundo é difícil, quanto mais aqui.
Bezerra
- Nos anos 70, a gente ia cantar de graça nos presídios,
em Ilha Grande, para ajudar o cidadão a ser reintegrado
na sociedade. Aí dizem besteira, que eu fiz música pro
Escadinha.
Pagodinho
- Tem bicheiro que me pede uma foto. Eu não vou negar.
Aí pegam o cara e acham que eu tô envolvido. Autógrafo
também dou pra todo mundo.
Bezerra
- Fazer show em presídio é bom. É só falar: "Quem não
gostou pode ir embora". Os caras não podem sair (risos).
Pagodinho
- Conhecemos gente de tudo quanto é tipo.
Bezerra
- Não fumo, não bebo, não faço nada. Mas já teve até federal
que me perguntou se eu tinha coisa pra vender.
Pagodinho
- De qualquer maneira, nego fala....
Bezerra
- Já me perguntaram num programa se eu estava chapado.
Isso não me atinge.
Folha
- Na verdade, então, você não é o que falam de você, doidão?
Bezerra
- Sim...
Pagodinho
- Todo mundo é doidão. Você é doidão. Eu já estou doidão
com essa água. (Sai.)
Bezerra
- O ser humano é uma coisa complicada. Ninguém gosta de
ver o outro bem. Já morei sete anos na rua. Sabe que ninguém
falava comigo, me entrevistava. Alguns jornalistas, agora,
me fazem perguntas cretinas. E eu respondo cretinamente.
(Pagodinho volta com um cachorro.)
Folha
- Por que, Zeca, você está compondo menos?
Pagodinho
- Viagem pra lá e pra cá, obra, funcionário, entrevista.
Vai atender o telefone, quando volta, já perdeu o raciocínio.