Miguel
de Almeida
Talvez
a figura mais popular do Nordeste brasileiro seja o
cantador, o violeiro. Por muitos anos, o repente serviu
como o único meio de comunicação em terras áridas e
inóspitas. Fazia as vezes de rádio, de tevê, de revistas.
E não era só isso: as notícias vinham em forma de versos,
rimados, ritmados, poéticos. Ivanildo Vilanova é hoje,
reconhecidamente, o maior repentista brasileiro. O mais
respeitado de todos. Mora em Campina Grande, Paraíba,
capital dos repentistas, dos cantadores, a três horas
de João Pessoal. Lá se reúnem alguns dos maiores violeiros
brasileiros. Eles se espalham por todo o Nordeste, de
ônibus, de carro, a cavalo - sempre para uma cantoria
num centro comercial ou numa distante fazenda. Ivanildo,
e todos os outros violeiros, recebem cartas-convites,
telefones, telegramas, todos convocando, ou propondo,
alguma noitada de cantoria. Quem envia são os chamados
"apologistas", espécie de animadores e entusiastas da
poesia popular. O trabalho de Ivanildo Vilanova se destaca
entre as centenas de violeiros pela sutileza de seus
versos, pela síntese de seus improvisos e pela variedade
temática. Pertence ao grupo de cantadores que são capazes
de improvisar, com conhecimento de causa, sobre qualquer
tema, da História Universal à Química, da política às
artes plásticas - uma raridade, de fato. Todas as tardes,
os violeiros se reúnem no Drink's Bar, boteco localizado
em frente à Rádio Borborema, em Campina Grande. No bar,
recebem telefonemas, recados, são convidados para cantorias,
trocam impressões sobre os melhores pontos, formam duplas
para uma viagem repentina, e no final da tarde participam
do programa diário na Rádio Borborema. É um quadro ouvido
em toda a região: comunica as cantorias do dia, os locais,
as duplas, informa os violeiros que estão com a agenda
livre e, de quebra, coloca ao vivo alguns repentes.
No dia em que conversei com Ivanildo, não houve o programa.
O único violão havia desaparecido da rádio...
"Cantoria
não dá nada, nem voto"
Folha
- Por que Campina Grande é hoje a capital dos repentistas?
Ivanildo
- Porque em 1974 nós fizemos um congresso de violeiros,
reunindo os melhores repentistas do Nordeste. Até então,
os congressos que aconteciam não chegavam a chamar a
atenção. Conseguimos então mostrar ao público inclusive
cantadores ótimos, e totalmente desconhecidos. Nos anos
seguintes, o congresso passou não só a revelar novos
talentos, como a mostrar a criação de novos gêneros:
como o Brasil Caboclo, por exemplo.
Folha
- Mas o congresso ainda não foi deturpado?
Ivanildo
- Mais ou menos. Mas eu já não participo da organização,
sou apenas um cantador que se apresenta na competição.
Acontece que se faz política em cima da cultura. Todos
encampam: núcleo de pesquisas, não-sei-o-quê linguístico,
vira negócio, dá empregos para universitários, estágios
- e cantoria não dá nada, nem voto. Então não há interesse
em manter o congresso. Os violeiros, assim, também não
atendem à poesia oficial, nem ao lado eleitoreiro. Há
o lado comercial, ainda. Centenas de pessoas, hoje,
fazem congressos de violeiros pelo Nordeste. Só para
ganharem dinheiro. Eu mesmo me neguei a aceitar o patrocínio
oferecido pela Souza Cruz. Queriam que se chamasse Congresso
Arizona de Violeiros.
Folha
- Como você reage quando chamam o repente de anacrônico?
Ivanildo
- Não admito, apenas. As pessoas estão mal acostumadas.
Querem ver um artista com 400 quilos de equipamento,
com aquela parafernália. Quando vêem um sujeito que
só canta com a viola, que não tem voz privilegiada,
pobre em melodia, estranham. Não percebem que a força
do cantador é a palavra. As pessoas preferem o barulho.
Existe um preconceito em relação ao cantador. Tem muita
gente fazendo menos e que anda indo até para academia,
se imortalizando... Se o cantador utilizasse outro tipo
de expressão, como o soneto, Ave Maria, seria um sucesso.
Folha
- Qual é a importância do violeiro no Nordeste?
Ivanildo
- Ele é o principal veículo, a principal manifestação
de folclore, como querem dizer... O repente tem tudo:
boa poesia, ritmo, rima, bom humor, romantismo, tudo.
Folha
- No Sul, teimam em mostrar o repente como desafio.
Ivanildo
- Isso é engraçado. Desafio é logo o primeiro verso
dum violeiro para o outro, quando o convoca para a cantoria.
Mas desafio é somente um dos muitos gêneros do repente.
Eu, particularmente, o detesto. Acho uma besteira, porque
é muito pobre. A não ser quando é o inverso, um desafio
pra falar bem do sujeito. No repente, o violeiro tem
de pegar a deixa do outro, se preocupar com a rima,
a métrica, o bom português. Aí ele irrita os outros.
O repente não confunde "tu" com vós". Ele não assassina
a língua. Pelo pouco que faça já é muito.
Folha
- Como você se tornou repentista?
Ivanildo
- Bem, ninguém vira repentista. É coisa herdada.
Meu pai era repentista, isso é coisa que acontece em
99 por cento dos casos. Não se aprende, é coisa de hereditariedade,
herança. Caso contrário, todos os outros irmãos também
aprenderiam - o que não acontece.
Folha
- E o outro um por cento, como aparece?
Ivanildo
- Eles surgem em lugares onde a verve do povo é
muito acentuada, onde as pessoas gostam em excesso do
repente. Que acaba sendo coisa de toda a comunidade.
Folha
- O mesmo acontece com os apologistas?
Ivanildo
- Exato. Os apologistas, que são pessoas que nos
levam de um canto a outro, passam essa função de pai
pra filho. Hoje eu canto para gente que é filho dum
antigo apologista, para o qual o meu pai cantou, anos
atrás. Também é herança, algo herdado.
Folha
- Vocês, violeiros, vivem tendo problemas com apropriações
indébitas, não?
Ivanildo
- Apropriação indébita? Ora, isso eu chamo de roubo.
E não é só pessoal da MPB de elite, mas todos, até do
bolerão: o Reginaldo Rossi copiou um mourão todinho
e não deu crédito. O Fagner pegou a letra duma canção
de fogo e nada disse. Os versos: "Eu sou igual ao deserto/aonde
ninguém quer viver/mais triste do que eu/ninguém quer
ser." Estes versos estão na página 33 duma canção de
fogo. Ele, o Fagner, roubou tanto o Patativa do Assaré,
que teve de aproveitar o homem. Pegou aqueles versos
- "eu venho desde menino/desde muito pequenininho/cumprindo
belo destino/eu nasci pra ser vaqueiro - que são do
Patativa. Gilberto Gil, idem. Pegou os versos de Domingos
da Fonseca - "Falar de nobreza e cor/é um grande orgulho
seu/morra eu e morra o pobre/se enterra o rico e eu/que
depois ninguém descobre/o pó do rico do meu." Isso é
de Domingos da Fonseca. E aconteceu agora com Zé Ramalho.
Essa música que a Amelinha canta - "Mulher nova e carinhosa..."
- é de Otacílio Batista. Não, de Otacílio e Zé Ramalho.
Zé fez apenas o arranjo, não a melodia. A música já
existia - eu mesmo já a gravei duas vezes. Não acho
que Otacílio devesse dar a parceria. Ora, quer gravar,
grave. Isso me deixa revoltado. E muito.
Folha
- E o interesse acadêmico que a cultura nordestina vem
despertando?
Ivanildo
- Esse interesse só atrapalhou. Para os folhetistas,
que eles preferem chamar de cordelista, foi péssimo.
Depois que as universidades se interessaram por eles
não surgiu nenhum grande talento. Antes eles editavam
suas obras. Depois, com esse interesse, começaram a
ser editados pela Prefeitura, por fundações. E terminaram
se acomodando.
Folha
- E com o repente?
Ivanildo
- O repentista é mais resistente. Mas eles vivem
tentando. Pegam uma dupla e levam para a escola, pedem
que cantem, só pra estudar. Não chegam a nenhuma conclusão.
Acontece que o repente é muito complexo, o que não é
o caso dos folhetistas. Essa coisa acadêmica não foi
bom, não. Houve um negócio aí, não sei direito o que
foi, mas que acabou, acabou.
Folha
- E essa visão que mostra o violeiro na feira?
Ivanildo
- Isso é folclórico. Não existe. Eu, com 25 anos
de carreira, jamais cantei na feira. Feira sempre foi
ponto de encontro. Nem me recordo de ter assistido a
meu pai na feira. Acontecia, sim, dos violeiros ficarem
pelos salões, nas barbearias, aproveitando o movimento
da feira. Mas cantar lá no meio, como mostram por aí,
isso eu não conheço, não...
Folha
- A sua geração - você, Moacir Laurentino, Denisio Venturini,
Sebastião Dias, Feitosa, mais outros - parece que faz
questão de mostrar a geração anterior - Otacílio, Lourival
Batista e outros - como meio ultrapassada. Por quê?
Ivanildo
- Eles são cantadores em final de carreira. Não
acrescentarão mais nada do que acrescentaram. Isso também
irá acontecer comigo, com os da minha geração. Mas essa
geração do Otacílio Batista, por quem tenho o maior
respeito, não irá deixar contribuição alguma. Eles trataram
apenas de se promover. Nós, não. Deixaremos mais de
duas centenas de novos gêneros, novas melodias para
as sextilhas, inovações e criações.