Arthur
Nestroviski
Especial para a Folha
Há pouco mais de dez anos, em uma de suas aulas no Collège
de France, o compositor Pierre Boulez ainda se referia às
"habilidades superficiais" e à "verdadeira
inaptidão" de Stravinski para retrabalhar o vocabulário
musical do passado. Mais recentemente, em 1988, o mesmo Boulez,
no mesmo Collège, já reservava boa dose de tempo
para estudar a "linguagem forte e coerente" das melhores
obras de Stravinski. A mudança de atitude é característica
de um movimento mais amplo, não apenas na musicologia e
na análise musical, mas também na estética,
na teoria literária, nos estudos do cinema e quase todas
as áreas de investigação da arte. O que está
em jogo é nada mais, nada menos que a definição
do modernismo. O que está em jogo, portando, é a
nossa arte, já que o pós-modernismo, o nosso moderno,
só se define redefinindo o modernismo anterior.
"Modernismo" e uma palavra recente, mas "moderno"
não é, tem pelo menos 1.400 anos de idade. "Moderno"
vem do latim "modus", medida. Em seu sentido original,
significa "ainda há pouco", e se emprega em contrastes
com ""hodiernus", "atual, de agora, de hoje".
É curioso que até etimologicamente o moderno, como
o que é "novo", mas também "medido",
aponte de uma só vez em duas direções, para
o passado e para o presente, ou o presente como futuro. Essa ambivalência
já serve, por si só, como uma pequena alegoria da
tensão que existe sempre em qualquer noção
de moderno, uma tensão que pelo menos desde a "Crítica
do Juízo" de Kant vem preocupando todos os modernistas,
incluindo Stravinski e Boulez.
Modernismo é uma noção temporal, mas o que
quer o moderno é precisamente negar o tempo, e inventar
um presente contínuo. Como diz Stravinski: "A música
é o único reino onde o homem pode construir o presente".
O impulso fundamental de todo modernismo é apagar a distância
que existe entre o criador e sua obra. O modernismo, seja em Rilke
ou Rimbaud, Varèse ou Picasso, é uma arte da verdade,
de uma verdade mais verdadeira que a verdade do passado, tudo
o que se cria tem de cair, portanto, na necessidade paradoxal
de se negar a cada novo passo.
O modernismo "clássico" foi definido na obra
do crítico inglês do século passado, Matthew
Arnold. Para Arnold, a poesia deve se propor a si mesma como "criação",
como a invenção de todas as coisas, Adão
no nascer da manhã. O poeta moderno é aquele que
nomeia as coisas, finalmente, pelo que são e o modernismo
é, acima de tudo, a afirmação de uma verdade
literal, desfazendo as figuras e os artifícios que a precederam.
Esse desejo de pureza é retrabalhado em vários graus
de ironia pelos poetas modernistas, mas na tradição
crítica vai se transformar numa resistência ao Romantismo,
como arte passada, ou caduca.
O modernismo de Arnold não é o único, mas
seus descendentes estão espalhados por toda a história
da arte e da crítica moderna. A despeito da força
alternativa de uma tradição alemã (calcada
na primeira geração do Romantismo), ou da percepção
aguda das ambivalências em Baudelaire ou Stendhal e Berlioz,
ou mesmo de um outro modernismo inglês - o de Walter Pater
e seus seguidores (Wilde, Yeats, Joyce) - as idéias de
Arnold, adaptadas a novos interesses e transmitidas, então,
pelo poeta Eliot, permanecem vigorosas até hoje. Transposto
para a música e reduzido a um esquema grosseiro, mas usual,
é assim que se concede o modernismo do primeiro Stravinski,
o herói pagão da nova música. Ao contrário
de Schoenberg, que jamais nega seu débito com a tradição,
Stravinski surge no cenário de início do século
supostamente como o profeta da amnésia, o queimador de
bibliotecas, um Debussy sem esteticismo, verdadeiro fenômeno
natural.
Esse primeiro modernismo tem ainda uma aura de simplicidade como
um retorno o sem culpa a um estágio anterior e quase primal
da consciência. "A Sagração da Primavera"
dramatiza melhor que qualquer outra obra esse impulso "natural"
e moderno da arte européia. Ingênuo como pode soar
este juízo agora, para se referir a uma música tão
auto-consciente e sofisticada, o fato é que a "Sagração"
vem servindo, há oitenta anos, como um emblema sonoro do
primitivismo moderno, alternativamente aplaudido ou vaiado na
medida do conservadorismo de cada um. E a "Sagração"
é empregada ainda como evidência suprema nas acusações
de perversidade dirigidas à maior parte do resto da obra
do próprio compositor, seja ela "neo-clássica"
ou serial.
A imagem de Stravinski como o "restaurador" no caminho
do "progressista" Schoenberg está igualmente
vinculada a essa visão historicista. (Vê-se aqui
como as discussões sobre o modernismo terminam sempre por
repetir as questões do modernismo) mesmo um intérprete
equilibrado, como Frederick Karl, insiste na oposição
entre o primeiro Stravinski e o estilista neo-clássico,
embora reconheça que a qualidade de estilização
lembra Eliot e Pound em suas negociações com o passado.
Os argumentos de Theodor Adorno, na "Filosofia da Nova Música",
são bem mais trabalhados e difíceis de sumariar,
mas isto não altera em muito a situação,
uma vez que a leitura de seus escritos tem sido presa do mesmo
olhar arnoldiano. Nos últimos tempos, contudo, e em grande
parte valendo-se de paralelos na teoria literária, os musicólogos
(Van den Toorn, Dahlhaus, o próprio Adorno da "Teoria
Estética") vêm alterando a visão de Stravinski
como o índio apache da composição. Um comentário
como o de Boulez já não surpreende e o que se percebe,
agora, na música toda de Stravinski, é a grande
variedade de soluções para uma contingência
que se repete desde Rousseau ou Beethoven, que é a dificuldade
e a necessidade de se definir um modernismo.
Não foi pensando nos musicólogos e pensadores da
cultura que a Sony Music resolveu relançar, em CDs, a celebrada
"Edição Stravinski" de 1982, mas a seleção
não podia vir mais a calhar. Uma coletânea deste
porte - 22 CDs, com obras da juventude à velhice - praticamente
força o ouvinte a refletir sobre o que tem nas mãos.
Há muito de fetiche no projeto, a começar pela reunião
quase exclusiva de gravações realizadas pelo próprio
compositor: como se ele fosse, por definição, o
melhor intérprete de sua própria música,
o que não é verdade. Mas só poder escutar
esse grande número de obras uma após a outra, e
dispor, de fato, de registros únicos para muitas delas
já recomenda a coletânea, especialmente neste momento
de reinterpretação de sua obra. A gravação
da pequena ópera em um ato, "Solovei" ("O
Rouxinol"), composta entre 1908 e 1914, no mesmo período
dos três grandes balés ("O Pássaro de
Fogo", "Petruchka" e a "Sagração")
é uma das tantas preciosidades da coleção
e serve como via de acesso para se repensar a figura de Stravinski.
A história de "O Rouxinol" é bem conhecida.
No conto de Andersen, o imperador da China troca o rouxinol, que
com suas canções o curara da melancolia, por um
pássaro mecânico, uma engenhosa caixinha de música.
Mas o autômato canta sempre igual e com o passar do tempo
o imperador vai definhando, cada vez mais próximo da morte.
O rouxinol, que figura para a floresta, reaparece no último
instante e reanima o imperador, que jura, então, jamais
abandoná-lo.
Há várias versões dessa história,
incluindo uma na "Crítica do Juízo", onde
em vez de caixinha de música é um jovem cantor que
imita o pássaro. Todas elas servem, um tanto mecanicamente,
de emblema para os desafios e impasses da modernidade. À
Luz do que foi discutido acima, o conto de Andersen mais parece
uma das anedotas de Kleist, ou uma parábola de Kafka, com
seu pequeno drama de autômatos e vida natural. Pois o erro
do pássaro mecânico é justamente que ele parece
natural. O que o imperador não suporta, o que nenhum artista
suporta é o reconhecimento aberto da ilusão: não
a ilusão da arte, mas a de uma voz natural. O rouxinol
não é literal; o autômato, sim. Ele é
uma mentira de verdade, o que é insustentável num
universo plenamente irônico e moderno. Uma vez dentro dela,
ninguém abandona a ironia. O modernista persegue a imediatez
porque quer cancelar as ironias, mas depende delas para dramatizar
sua falência - e é sempre uma falência.
Considerações gerais como essas ganham corpo e volume
ao se escutar as paródias musicais de Stravinski, que vão
desde o neoclassicismo de "Pulcinella" até as
paródias de si mesmo, ou da tradição russa,
ou da música popular. A "Sagração"
não é um começo para Stravinski, ou pelo
menos não no sentido convencional. Stravinski já
tinha voz própria em 1913, e a "Sagração"
só é uma origem como uma espécie de paródia
particular. A "Sagração" quer se fazer
presente a cada compasso, mas cada compasso é um compasso
de espera, pelo presente que já foi, ou que não
vai chegar.
Stravinski é um mestre do passado, no sentido literal.
Para um período tão tardio - tão moderno
- quanto o nosso, em que a consciência dos precursores é
quase paralisadora, a lição de Stravinski é,
de uma só vez, um consolo e um peso, como é sempre
o caso com a obra dos ancestrais. O que se escuta em sua música,
com maior ou menor sucesso, não é tanto o caleidoscópio
de estilos, todos tratados lucidamente como objetos da composição,
quanto a pergunta perene de todo poeta modernista: "Chegou
a aurora, mas onde está o rouxinol?" - e o seu apelo,
artificioso e quase natural: "Vem, pura voz, e preenche a
noite com tua doce canção!".