STRAVINSKI OUVE O ROUXINOL

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 5 de julho de 1992

Arthur Nestroviski
Especial para a Folha

Há pouco mais de dez anos, em uma de suas aulas no Collège de France, o compositor Pierre Boulez ainda se referia às "habilidades superficiais" e à "verdadeira inaptidão" de Stravinski para retrabalhar o vocabulário musical do passado. Mais recentemente, em 1988, o mesmo Boulez, no mesmo Collège, já reservava boa dose de tempo para estudar a "linguagem forte e coerente" das melhores obras de Stravinski. A mudança de atitude é característica de um movimento mais amplo, não apenas na musicologia e na análise musical, mas também na estética, na teoria literária, nos estudos do cinema e quase todas as áreas de investigação da arte. O que está em jogo é nada mais, nada menos que a definição do modernismo. O que está em jogo, portando, é a nossa arte, já que o pós-modernismo, o nosso moderno, só se define redefinindo o modernismo anterior.
"Modernismo" e uma palavra recente, mas "moderno" não é, tem pelo menos 1.400 anos de idade. "Moderno" vem do latim "modus", medida. Em seu sentido original, significa "ainda há pouco", e se emprega em contrastes com ""hodiernus", "atual, de agora, de hoje". É curioso que até etimologicamente o moderno, como o que é "novo", mas também "medido", aponte de uma só vez em duas direções, para o passado e para o presente, ou o presente como futuro. Essa ambivalência já serve, por si só, como uma pequena alegoria da tensão que existe sempre em qualquer noção de moderno, uma tensão que pelo menos desde a "Crítica do Juízo" de Kant vem preocupando todos os modernistas, incluindo Stravinski e Boulez.
Modernismo é uma noção temporal, mas o que quer o moderno é precisamente negar o tempo, e inventar um presente contínuo. Como diz Stravinski: "A música é o único reino onde o homem pode construir o presente". O impulso fundamental de todo modernismo é apagar a distância que existe entre o criador e sua obra. O modernismo, seja em Rilke ou Rimbaud, Varèse ou Picasso, é uma arte da verdade, de uma verdade mais verdadeira que a verdade do passado, tudo o que se cria tem de cair, portanto, na necessidade paradoxal de se negar a cada novo passo.
O modernismo "clássico" foi definido na obra do crítico inglês do século passado, Matthew Arnold. Para Arnold, a poesia deve se propor a si mesma como "criação", como a invenção de todas as coisas, Adão no nascer da manhã. O poeta moderno é aquele que nomeia as coisas, finalmente, pelo que são e o modernismo é, acima de tudo, a afirmação de uma verdade literal, desfazendo as figuras e os artifícios que a precederam. Esse desejo de pureza é retrabalhado em vários graus de ironia pelos poetas modernistas, mas na tradição crítica vai se transformar numa resistência ao Romantismo, como arte passada, ou caduca.
O modernismo de Arnold não é o único, mas seus descendentes estão espalhados por toda a história da arte e da crítica moderna. A despeito da força alternativa de uma tradição alemã (calcada na primeira geração do Romantismo), ou da percepção aguda das ambivalências em Baudelaire ou Stendhal e Berlioz, ou mesmo de um outro modernismo inglês - o de Walter Pater e seus seguidores (Wilde, Yeats, Joyce) - as idéias de Arnold, adaptadas a novos interesses e transmitidas, então, pelo poeta Eliot, permanecem vigorosas até hoje. Transposto para a música e reduzido a um esquema grosseiro, mas usual, é assim que se concede o modernismo do primeiro Stravinski, o herói pagão da nova música. Ao contrário de Schoenberg, que jamais nega seu débito com a tradição, Stravinski surge no cenário de início do século supostamente como o profeta da amnésia, o queimador de bibliotecas, um Debussy sem esteticismo, verdadeiro fenômeno natural.
Esse primeiro modernismo tem ainda uma aura de simplicidade como um retorno o sem culpa a um estágio anterior e quase primal da consciência. "A Sagração da Primavera" dramatiza melhor que qualquer outra obra esse impulso "natural" e moderno da arte européia. Ingênuo como pode soar este juízo agora, para se referir a uma música tão auto-consciente e sofisticada, o fato é que a "Sagração" vem servindo, há oitenta anos, como um emblema sonoro do primitivismo moderno, alternativamente aplaudido ou vaiado na medida do conservadorismo de cada um. E a "Sagração" é empregada ainda como evidência suprema nas acusações de perversidade dirigidas à maior parte do resto da obra do próprio compositor, seja ela "neo-clássica" ou serial.
A imagem de Stravinski como o "restaurador" no caminho do "progressista" Schoenberg está igualmente vinculada a essa visão historicista. (Vê-se aqui como as discussões sobre o modernismo terminam sempre por repetir as questões do modernismo) mesmo um intérprete equilibrado, como Frederick Karl, insiste na oposição entre o primeiro Stravinski e o estilista neo-clássico, embora reconheça que a qualidade de estilização lembra Eliot e Pound em suas negociações com o passado.
Os argumentos de Theodor Adorno, na "Filosofia da Nova Música", são bem mais trabalhados e difíceis de sumariar, mas isto não altera em muito a situação, uma vez que a leitura de seus escritos tem sido presa do mesmo olhar arnoldiano. Nos últimos tempos, contudo, e em grande parte valendo-se de paralelos na teoria literária, os musicólogos (Van den Toorn, Dahlhaus, o próprio Adorno da "Teoria Estética") vêm alterando a visão de Stravinski como o índio apache da composição. Um comentário como o de Boulez já não surpreende e o que se percebe, agora, na música toda de Stravinski, é a grande variedade de soluções para uma contingência que se repete desde Rousseau ou Beethoven, que é a dificuldade e a necessidade de se definir um modernismo.
Não foi pensando nos musicólogos e pensadores da cultura que a Sony Music resolveu relançar, em CDs, a celebrada "Edição Stravinski" de 1982, mas a seleção não podia vir mais a calhar. Uma coletânea deste porte - 22 CDs, com obras da juventude à velhice - praticamente força o ouvinte a refletir sobre o que tem nas mãos. Há muito de fetiche no projeto, a começar pela reunião quase exclusiva de gravações realizadas pelo próprio compositor: como se ele fosse, por definição, o melhor intérprete de sua própria música, o que não é verdade. Mas só poder escutar esse grande número de obras uma após a outra, e dispor, de fato, de registros únicos para muitas delas já recomenda a coletânea, especialmente neste momento de reinterpretação de sua obra. A gravação da pequena ópera em um ato, "Solovei" ("O Rouxinol"), composta entre 1908 e 1914, no mesmo período dos três grandes balés ("O Pássaro de Fogo", "Petruchka" e a "Sagração") é uma das tantas preciosidades da coleção e serve como via de acesso para se repensar a figura de Stravinski.
A história de "O Rouxinol" é bem conhecida. No conto de Andersen, o imperador da China troca o rouxinol, que com suas canções o curara da melancolia, por um pássaro mecânico, uma engenhosa caixinha de música. Mas o autômato canta sempre igual e com o passar do tempo o imperador vai definhando, cada vez mais próximo da morte. O rouxinol, que figura para a floresta, reaparece no último instante e reanima o imperador, que jura, então, jamais abandoná-lo.
Há várias versões dessa história, incluindo uma na "Crítica do Juízo", onde em vez de caixinha de música é um jovem cantor que imita o pássaro. Todas elas servem, um tanto mecanicamente, de emblema para os desafios e impasses da modernidade. À Luz do que foi discutido acima, o conto de Andersen mais parece uma das anedotas de Kleist, ou uma parábola de Kafka, com seu pequeno drama de autômatos e vida natural. Pois o erro do pássaro mecânico é justamente que ele parece natural. O que o imperador não suporta, o que nenhum artista suporta é o reconhecimento aberto da ilusão: não a ilusão da arte, mas a de uma voz natural. O rouxinol não é literal; o autômato, sim. Ele é uma mentira de verdade, o que é insustentável num universo plenamente irônico e moderno. Uma vez dentro dela, ninguém abandona a ironia. O modernista persegue a imediatez porque quer cancelar as ironias, mas depende delas para dramatizar sua falência - e é sempre uma falência.
Considerações gerais como essas ganham corpo e volume ao se escutar as paródias musicais de Stravinski, que vão desde o neoclassicismo de "Pulcinella" até as paródias de si mesmo, ou da tradição russa, ou da música popular. A "Sagração" não é um começo para Stravinski, ou pelo menos não no sentido convencional. Stravinski já tinha voz própria em 1913, e a "Sagração" só é uma origem como uma espécie de paródia particular. A "Sagração" quer se fazer presente a cada compasso, mas cada compasso é um compasso de espera, pelo presente que já foi, ou que não vai chegar.
Stravinski é um mestre do passado, no sentido literal. Para um período tão tardio - tão moderno - quanto o nosso, em que a consciência dos precursores é quase paralisadora, a lição de Stravinski é, de uma só vez, um consolo e um peso, como é sempre o caso com a obra dos ancestrais. O que se escuta em sua música, com maior ou menor sucesso, não é tanto o caleidoscópio de estilos, todos tratados lucidamente como objetos da composição, quanto a pergunta perene de todo poeta modernista: "Chegou a aurora, mas onde está o rouxinol?" - e o seu apelo, artificioso e quase natural: "Vem, pura voz, e preenche a noite com tua doce canção!".


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