KOELLRREUTER PREVÊ MÚSICA COMO UMA FORMA DE ESPORTE

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 1993

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Maestro ouve criação da 'nova imagem do mundo'


Da Reportagem Local

O professor e compositor Hans-Joachim Koellreutter é responsável pela introdução no Brasil da prática da composição de vanguarda no fim dos anos 40. Trouxe da Alemanha a técnica dodecafônica -sistema de doze semitons criado pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg nos anos 20. Nos anos 50, defrontou-se com o colega Camargo Guarnieri (1908-1993) na polêmica sobre o nacionalismo. Guarnieri atacou Koellreutter porque achava que este afastava os compositores das raízes nacionais. Koellreutter defendia-se, afirmando que o dodecafonismo era uma saída para a crise de invenção. Venceu Koellreutter. Nos anos 60 e 70, o professor entrou em contato com a música indiana e ampliou sua leitura da música. Passou a ensinar que os parâmetros ocidentais eram limitados e o compositor devia dar conta de outros fatores que os tradicionais (duração, altura, intensidade e timbre): improvisação, tempo psicológico e ritmo. Aos 78 anos, Koellreutter continua a compor e dar aulas. É uma das raras personalidades de formação universal na música do ocidente. Em entrevista à Folha, ele prevê para o século 21 a construção de um novo modelo de mundo.

 

Folha - Que perspectivas o sr. aponta para a música neste final de milênio?

Hans-Joachim Koellreutter - Aponto dois aspectos. O primeiro, a predominância e o desenvolvimento cada vez maior da música popular e da música funcional, ou seja, música a serviço de áreas extramusicais, como trilhas para teatro e filme, jingle para indústria e comércio, musicoterapia para a medicina. A música terá um papel semelhante ao do esporte e fará parte da formação da personalidade do jovem. O segundo aspecto diz respeito à música chamada clássica. Ela vai contribuir à conscientização do novo paradigma, da nova imagem do mundo. Assim, ajudará na superação dos aspectos racionalistas da música ocidental, como a melodia acompanhada e a música estruturalista. A improvisação terá importância cada vez maior. Os dualismos já começam a ser vencidos: consonância e dissonância, melodia e harmonia, belo e feio.

 

Folha - Algum aspecto será valorizado?

Koellreutter - O timbre terá importância crescente. O colorido sonoro deverá predominar sobre as formas. A música vai se tornar multidimensional pela superação da causalidade no sentido tradicional da causa e efeito.

 

Folha - Como fica a música popular no novo modelo?

Koellreutter - Vai ser mantida a interdependência do popular e do clássico, como aliás tem ocorrido na música do século 20. A superação dos dualismos também é um desafio no rock. Eu mesmo já fiz música funcional, para filme. Acho que a música popular tem uma função terapêutica.

 

Folha - O que o sr. está compondo?

Koellreutter - Acabo de estrear no Rio uma composição intitulada "Dharma", para gaita de boca eletrificada com acompanhamento de orquestra de câmara. Tem três movimentos em que o timbre tem importância maior. É parcialmente dodecafônica e parcialmente improvisada.

 

Folha - De que forma a música pode conscientizar?

Koellreutter - O fim do século está sendo marcado pela superação do aspecto racionalista da cultura ocidental. A música tem a contribuir em todas as áreas, da ciência à sociologia. O tempo deixa de existir como fator de ordem físico para virar um fato de percepção. O paradigma ocidental está mudando radicalmente.

 

Folha - Como se dá a mudança?

Koellreutter - A sociedade deixou no século 20 de ser de elite para se converter em uma sociedade de massa. E a massa prefere a música popular. Elite, não. As obras da música clássica contemporânea podem ser comparadas a livros de um nível mais especulativo no sentido filosófico e estético. Dirige-se a um grupo social específico. O novo paradigma precisa contemplar a sociedade de massas. Será preciso chegar a um modo de convivência menos racionalista entre os seres humanos.

 

Folha - A que o sr. atribui a separação entre música contemporânea e público?

Koellreutter - A dois fatores. Primeiro, à explosão demográfica. Nunca foi tão grande a quantidade de homens sobre a terra. A massa quer divertimento porque ela trabalha e precisa de lazer. O segundo fator é a aceleração científica. As novidades nesse campo acontecem em velocidade cada vez maior. Com isso, os intelectuais se afastam cada vez mais da massa. Surge a famosa defasagem entre produção e consumo. Mas que ninguém se engane: isso vai acontecer cada vez mais. É preciso deixar um espaço para a criação de ponta.

 


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