1.
Até meados da década de 50, a teoria musical era uma
disciplina de fundo de corredor, empoeirado, sem pressa,
sem charme e sem sal. Hoje, no Brasil como em todo lugar,
não há estudante de música que não se veja obrigado
a vencer um extenso currículo de teoria e análise musical,
seja a nível de graduação, de pós-graduação, ou de aperfeiçoamento.
Os departamentos de teoria tornaram-se o verdadeiro
centro de gravidade das escolas de música, atraindo
e regulando o movimento de outros corpos.
2.
A palavra teoria vem do grego "theórein", que significa
observar, assistir, ou especular. A teoria musical,
contudo, tem-se mostrado mesquinha na prática da especulação
(do latim "speculum"), do diálogo frente ao espelho.
É certo que a teoria musical contemporânea preocupa-se
mais consigo mesma do que com a música propriamente
dita. Mas o pecado maior dos analistas e teóricos da
música não parece ser a vaidade, e sim a arrogância.
O fogo que escreve textos de harmonia e análise serial
não é o fogo frio de Narciso; é a vontade de verdade,
de potência que mata o mundo e fixa o tempo em nome
da ordem e da lei.
3.
A teoria é ou deveria ser a construção autoconsciente
da identidade de uma cultura. O fator fundamental aqui
é a construção daquilo de que se está falando. A teoria
musical pressupõe a presença prévia do objeto de que
fala. Mas é precisamente a teoria que cria o objeto
como é. O objeto - a "música" de que falam os analistas
- é a base do trabalho analítico. Mas não existe análise
independente de conceitos, o que equivale a dizer que
a verdadeira base do trabalho analítico são os conceitos
teóricos que instituem campo, prática e fantasias de
análise. O que é preciso estudar, hoje, são as condições
históricas que permitiam a aparição de tais conceitos
e de uma tal teoria.
4.
Pelo menos desde a Grécia antiga, a teoria musical tem
sempre optado por um de dois modelos: o modelo empírico
de Aristóxenos ou o modelo natural de Pitágoras. Segundo
Aristóxenos, a função do analista é observar a música
do ponto de vista de quem ouve. Já para Pitágoras o
objetivo do analista é descobrir as leis "naturais"
da música independentes de uma experiência auditiva.
Aristóxenos afirma: "é assim que as coisas são". Pitágoras
postula a identidade entre formas musicais e as formas
do cosmos, justificadas pela razão matemática. Nem um
nem outro aceita a história como agente poético. Um
e outro aborda a palavra como um meio neutro, transparente,
simples. Com maior ou menor autoconfiança, as correntes
teóricas de hoje mantém aceso o diálogo com esses dois
espectros ancestrais.
5.
O ideal da teoria musical contemporânea é a construção
de um sistema universal que possibilite o entendimento
do particular. O ideal da análise moderna é revelar
a coerência interna de cada obra em questão. Explícita
ou tacitamente a teoria prevê o ponto de partida para
a análise. Por outro lado, é a análise de obras isoladas
que consagra autenticidade à teoria. Teoria e análise
respondem de forma distinta à autoridade da estética,
verdadeira responsável pela seleção das obras dignas
de estudo e comentário. A teoria pretende explicar (empírica
ou naturalmente) os fundamentos últimos do valor. A
análise de sua parte, ignora o gosto - a história -
e transforma a obra musical numa gramática muda, numa
estrutura de papel.
6.
Assim como não existe discurso neutro, também não existe
neutralidade na audição. Onde há um ouvinte, há teoria.
O que o teórico da música procura pelo menos numa primeira
instância, é substituir os preconceitos da cultura por
uma nova cultura de conceitos. A análise é uma forma
específica de comentário que devolve a teoria às obras
musicais. A análise deveria ser uma atividade crítica,
semelhante neste sentido à tradução literária ou ao
ensaio. Aquela análise que não questiona, mas se contenta
com a descrição de uma obra, não é, na verdade, análise:
é mera tautologia.
7.
O esforço de objetividade que caracteriza a teoria musical
contemporânea encontra expressão moral no regime de
austeridade do analista. Nenhum prazer, nenhuma emoção
no claustro da academia. Confiante no projeto de uma
linguagem pura, o analista constrói o mito de uma ciência
da música. Mas assim como a linguagem da ciência descreve
um mundo que é o fruto de seu próprio interesse, histórico
e particular, também a teoria da música define o objeto,
a ficção de seu desejo. A fantasia do olhar objetivo
é acreditar na realidade de sua própria projeção.
8.
Como tantos outros territórios acadêmicos, a teoria
musical está dividida, hoje, pela divergência entre
suas muitas províncias. Como nenhum outro caracteriza-se
por uma impermeabilidade uniforme aos efeitos da maioria
das mais expressivas correntes do pensamento contemporâneo.
Alienado das proezas de destruição e reconstrução que
agitam toda terra a seu redor e incapaz de questionar
as premissas básicas de seu projeto, o analista da música
castiga a dúvida com o bastão da autoridade. A pobreza
do método é tida por ele como deficiência do objeto.
9.
No Brasil, a teoria da música é espetacular num sentido
específico: reflete o brilho de teorias distantes. A
teoria brasileira já foi caduca, hoje é fosca. Nem teoria
brasileira da música nem teoria da música brasileira,
a teoria que se professa nas escolas é contraditória
a cada estágio de sua mimese: fundada na palavra e sem
palavras serventes do ouvido e surda, vivendo no espelho
e incapaz de refletir-se a si mesma.
10.
Uma nova teoria da música deve responder a pelo menos
três desafios: compreender as descontinuidades de um
sistema teórico, compreender a teoria enquanto escrita
e compreender os atributos sociais e políticos do discurso.
Até agora uma tal teoria ainda não apareceu. Mas já
começa a dar sinais de vida, ruído de outras mensagens,
leve luz na constelação da página, murmúrio nos subterrâneos
da academia.