Clóvis Rossi,
De Buenos Aires
O presidente
da Argentina, general Leopoldo Fortunato Galtieri, ameaçou
ontem chamar, se for necessário, "forças armadas
de outras latitudes do mundo" para lutar ao lado da Argentina,
numa evidente referência velada à União Soviética.
A ameaça está contida no discurso do presidente alusivo
ao Dia do Exército, que se comemorou ontem pela manhã.
Trata-se, também, da mais sólida evidência de
que, ante a iminência de uma derrota militar, a Argentina
tende a se transformar em um animal ferido, capaz de estender para
além do término da guerra das Malvinas a confusão
internacional por ela gerada.
O discurso de Galtieri é, ele próprio, repleto de
contradições, na medida em que aponta, com clareza,
"a prepotência, aberta ou disfarçada, de quem
exerce pressões políticas, militares, econômicas
e financeiras e mentiram e mentem a respeito da manutenção
de princípios que nunca respeitaram", o que é
uma sábia definição das grandes potências.
Mas, ao mesmo tempo, o presidente coloca a Argentina como "a
tocha acesa para iluminar o despertar de nossa América e
o dos povos privados de sua liberdade", esquecendo-se de que
seu próprio povo vive há sete anos e meio sob estado
de sítio e foi vítima de uma repressão sem
precedentes nos anais já conturbados de "nossa América".
Essa confusão de conceitos exige que se preste o máximo
de atenção ao que vai acontecer daqui para a frente
nesta área do mundo, à medida que o quadro militar
vai indicando, com crescente clareza, o avanço britânico.
Até o momento em que envio este material para a Folha, o
Estado-Maior Conjunto argentino ainda não admitira oficialmente
a perda dos Portos Darwin e Goose Green para os comandos ingleses,
mas, nas entrelinhas dos comunicados oficiais e das informações
de fontes militares, ficava evidente que isso já acontecera.
O boletim 105 do Estado-Maior, divulgado pela manhã, dizia,
por exemplo, que "tendo as forças inglesas completado
a consolidação da cabeça-de-praia em Porto
San Carlos, continuaram efetuando desembarques de pessoal e material,
ao máximo de suas disponibilidades na área".
O comunicado calcula que, agora, os efetivos britânicos desembarcados
já são de 4 mil a 4.500 homens. No comunicado 106,
o Estado-Maior Conjunto disse que a Força Aérea argentina
atacou a região de Goose Green, "em apoio às
forças terrestres que continuam combatendo na área".
Paralelamente, fontes militares citadas pela rádio Rivadávia
admitiam que, na área de Darwin/Goose Green, a superioridade
britânica, tanto em homens como em equipamento, "é
de três por um". A recuperação desses pontos-chaves
da Ilha Soledad abre para os britânicos a perspectiva de iniciar,
em seguida, a ofensiva final sobre Porto Argentino, a capital das
ilhas, guarnecida por sete mil homens do Exército argentino.
O que já ocorreu nos combates até aqui travados e
a possibilidade de que os ingleses continuem desembarcando soldados,
até empatar, em número, com os efetivos da Argentina
indicam que a batalha final deverá também favorecer
a força colonialista, colocando a Argentina ante a iminência
de uma humilhação.
Por isso, é importante começar a pensar no que pode
acontecer nas próximas horas. Em primeiro lugar é
preciso deixar claro que a ameaça de Galtieri, em seu discurso
de ontem, dificilmente será levada às últimas
consequências. Ocidentalista por formação e
absoluta convicção, o presidente dificilmente poderá
romper com seu bloqueio ideológico ao comunismo ao ponto
de recorrer ao auxílio soviético. Mais: este tem um
preço, em matéria de política interna, que
o atual governo não parece preparado para pagar. Ou seja,
à soberania territorial, seria preciso que o governo somasse
a soberania popular para que os soviéticos se dispusessem
a mexer-se - assim mesmo, em termos que muito dificilmente iriam
além de auxílio material que não envolvesse
equipamento militar. A divisão do mundo em esferas de influência
ainda é uma realidade inegável que nem a confusão
generalizada pós-Malvinas desfez.
Cuba sim poderia acorrer a um eventual pedido argentino de auxílio
e pode ser, de fato, o país que está na cabeça
dos militares argentinos. Tanto assim que anteontem, finalmente,
a Chancelaria decidiu que será o próprio Nicanor Costa
Mendez quem chefiará a delegação argentina
para a reunião dos não-alinhados, que, na sua fase
realmente importante, se inicia quarta-feira, na Capital cubana.
O problema é saber se haverá tempo para que um possível
auxílio externo contenha a ofensiva britânica sobre
Porto Argentino. Fontes diplomáticas - argentinas e não-argentinas
- entendem que não. Mas isso não impede que os argentinos
procurem apoiar-se em outros países da área e "de
outras latitudes", para o pós-Malvinas. Afinal, uma
eventual vitória britânica não elimina o problema.
O que fará a Inglaterra com as ilhas recuperadas? Manterá
ali um exército colonial, a apenas 60 km de uma nação
ferida, humilhada e desejosa de vingança? Ou tratará
de dar à ilha um caráter multinacional, na forma de
uma base militar que substitua, em certa medida, o Pacto do Atlântico
Sul, inviabilizado pela invencível resistência brasileira
a dele participar?
É essa última hipótese que levantou ontem o
matutino "Clarin", com base em informações
de seu enviado especial a Nova York. Diz o jornal que o plano britânico
para as Malvinas inclui a constituição de uma base
multinacional, com a participação dos Estados Unidos
e três ou quatro países latino-americanos não
especificados. Um deles, embora possa parecer inacreditável,
poderia ser a própria Argentina, chamada assim a integrar-se
a esse Ocidente que o presidente Galtieri fustigou tão energicamente
em seu discurso de ontem.
É impossível prever, por enquanto, se os argentinos
estariam dispostos a aceitar essa proposta. As raízes ideológicas
do regime tendem a dizer que sim, pois elas continuam considerando
o comunismo como o inimigo principal. Inglaterra e Estados Unidos
apenas tomaram um caminho equivocado, traindo os princípios
ocidentais de que a Argentina agora se considera defensora isolada
e incompreendida. Mas a realidade do sangue derramado pode ser mais
forte e empurrar os próprios militares para uma redefinição
interna. Afinal, são raros os argentinos que apostam na permanência
de Galtieri e da atual cúpula governante, na hipótese
de que se concretize a derrota ante a Grã-Bretanha que se
desenha claramente no horizonte.
Definitivamente, a vitória inglesa, mesmo que se concretize
rapidamente (o que não é tão tranquilo assim),
não põe fim à guerra das Malvinas e as consequências
que dela derivam para toda a ordem regional e internacional. Ao
contrário: essa eventual vitória pode ser apenas o
início de uma confusão ainda mais completa.
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