INGLESES AVANÇAM E GALTIERI AMEAÇA APELAR À URSS

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 30 de maio de 1982

Enquanto os britânicos anunciavam oficiosamente que suas tropas, marchando pelo Norte em direção a Porto Argentino (ex-Stanley), haviam capturado mais duas localidades - Douglas Station e Teal Inlet -, o presidente argentino, Leopoldo Galtieri, ameaçou chamar, se necessário, "forças armadas de outras latitudes do mundo", numa referência à União Soviética, que aparentemente não deseja se envolver no conflito. Em Washington, a reunião do Tiar terminou ontem de madrugada com uma resolução exortando os países latino-americanos a fornecerem, à Argentina, "o apoio que cada qual julgar adequado".
O ministro Bernardo Pericás, porta-voz do Itamarati, esclareceu ontem, a respeito da resolução aprovada pelo Tiar, que a preocupação brasileira na reunião de Washington foi preservar a solidariedade latino-americana e a atitude do Brasil permanecerá inalterada - "continuar seus esforços para uma solução pacífica". Acrescentou o ministro que, no momento, o governo brasileiro não tem em vista nenhum outro tipo de ajuda, nem mesmo no campo militar, ao governo argentino.
Os argentinos reconheceram ontem, implicitamente, que os ingleses se apoderaram na sexta-feira de Goose Green, cujas imediações Buenos Aires diz agora bombardear com sua aviação.

Galtieri ameaça pedir ajuda a soviéticos

Clóvis Rossi,
De Buenos Aires

O presidente da Argentina, general Leopoldo Fortunato Galtieri, ameaçou ontem chamar, se for necessário, "forças armadas de outras latitudes do mundo" para lutar ao lado da Argentina, numa evidente referência velada à União Soviética. A ameaça está contida no discurso do presidente alusivo ao Dia do Exército, que se comemorou ontem pela manhã. Trata-se, também, da mais sólida evidência de que, ante a iminência de uma derrota militar, a Argentina tende a se transformar em um animal ferido, capaz de estender para além do término da guerra das Malvinas a confusão internacional por ela gerada.
O discurso de Galtieri é, ele próprio, repleto de contradições, na medida em que aponta, com clareza, "a prepotência, aberta ou disfarçada, de quem exerce pressões políticas, militares, econômicas e financeiras e mentiram e mentem a respeito da manutenção de princípios que nunca respeitaram", o que é uma sábia definição das grandes potências. Mas, ao mesmo tempo, o presidente coloca a Argentina como "a tocha acesa para iluminar o despertar de nossa América e o dos povos privados de sua liberdade", esquecendo-se de que seu próprio povo vive há sete anos e meio sob estado de sítio e foi vítima de uma repressão sem precedentes nos anais já conturbados de "nossa América".
Essa confusão de conceitos exige que se preste o máximo de atenção ao que vai acontecer daqui para a frente nesta área do mundo, à medida que o quadro militar vai indicando, com crescente clareza, o avanço britânico. Até o momento em que envio este material para a Folha, o Estado-Maior Conjunto argentino ainda não admitira oficialmente a perda dos Portos Darwin e Goose Green para os comandos ingleses, mas, nas entrelinhas dos comunicados oficiais e das informações de fontes militares, ficava evidente que isso já acontecera. O boletim 105 do Estado-Maior, divulgado pela manhã, dizia, por exemplo, que "tendo as forças inglesas completado a consolidação da cabeça-de-praia em Porto San Carlos, continuaram efetuando desembarques de pessoal e material, ao máximo de suas disponibilidades na área". O comunicado calcula que, agora, os efetivos britânicos desembarcados já são de 4 mil a 4.500 homens. No comunicado 106, o Estado-Maior Conjunto disse que a Força Aérea argentina atacou a região de Goose Green, "em apoio às forças terrestres que continuam combatendo na área".
Paralelamente, fontes militares citadas pela rádio Rivadávia admitiam que, na área de Darwin/Goose Green, a superioridade britânica, tanto em homens como em equipamento, "é de três por um". A recuperação desses pontos-chaves da Ilha Soledad abre para os britânicos a perspectiva de iniciar, em seguida, a ofensiva final sobre Porto Argentino, a capital das ilhas, guarnecida por sete mil homens do Exército argentino.
O que já ocorreu nos combates até aqui travados e a possibilidade de que os ingleses continuem desembarcando soldados, até empatar, em número, com os efetivos da Argentina indicam que a batalha final deverá também favorecer a força colonialista, colocando a Argentina ante a iminência de uma humilhação.
Por isso, é importante começar a pensar no que pode acontecer nas próximas horas. Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a ameaça de Galtieri, em seu discurso de ontem, dificilmente será levada às últimas consequências. Ocidentalista por formação e absoluta convicção, o presidente dificilmente poderá romper com seu bloqueio ideológico ao comunismo ao ponto de recorrer ao auxílio soviético. Mais: este tem um preço, em matéria de política interna, que o atual governo não parece preparado para pagar. Ou seja, à soberania territorial, seria preciso que o governo somasse a soberania popular para que os soviéticos se dispusessem a mexer-se - assim mesmo, em termos que muito dificilmente iriam além de auxílio material que não envolvesse equipamento militar. A divisão do mundo em esferas de influência ainda é uma realidade inegável que nem a confusão generalizada pós-Malvinas desfez.
Cuba sim poderia acorrer a um eventual pedido argentino de auxílio e pode ser, de fato, o país que está na cabeça dos militares argentinos. Tanto assim que anteontem, finalmente, a Chancelaria decidiu que será o próprio Nicanor Costa Mendez quem chefiará a delegação argentina para a reunião dos não-alinhados, que, na sua fase realmente importante, se inicia quarta-feira, na Capital cubana.
O problema é saber se haverá tempo para que um possível auxílio externo contenha a ofensiva britânica sobre Porto Argentino. Fontes diplomáticas - argentinas e não-argentinas - entendem que não. Mas isso não impede que os argentinos procurem apoiar-se em outros países da área e "de outras latitudes", para o pós-Malvinas. Afinal, uma eventual vitória britânica não elimina o problema. O que fará a Inglaterra com as ilhas recuperadas? Manterá ali um exército colonial, a apenas 60 km de uma nação ferida, humilhada e desejosa de vingança? Ou tratará de dar à ilha um caráter multinacional, na forma de uma base militar que substitua, em certa medida, o Pacto do Atlântico Sul, inviabilizado pela invencível resistência brasileira a dele participar?
É essa última hipótese que levantou ontem o matutino "Clarin", com base em informações de seu enviado especial a Nova York. Diz o jornal que o plano britânico para as Malvinas inclui a constituição de uma base multinacional, com a participação dos Estados Unidos e três ou quatro países latino-americanos não especificados. Um deles, embora possa parecer inacreditável, poderia ser a própria Argentina, chamada assim a integrar-se a esse Ocidente que o presidente Galtieri fustigou tão energicamente em seu discurso de ontem.
É impossível prever, por enquanto, se os argentinos estariam dispostos a aceitar essa proposta. As raízes ideológicas do regime tendem a dizer que sim, pois elas continuam considerando o comunismo como o inimigo principal. Inglaterra e Estados Unidos apenas tomaram um caminho equivocado, traindo os princípios ocidentais de que a Argentina agora se considera defensora isolada e incompreendida. Mas a realidade do sangue derramado pode ser mais forte e empurrar os próprios militares para uma redefinição interna. Afinal, são raros os argentinos que apostam na permanência de Galtieri e da atual cúpula governante, na hipótese de que se concretize a derrota ante a Grã-Bretanha que se desenha claramente no horizonte.
Definitivamente, a vitória inglesa, mesmo que se concretize rapidamente (o que não é tão tranquilo assim), não põe fim à guerra das Malvinas e as consequências que dela derivam para toda a ordem regional e internacional. Ao contrário: essa eventual vitória pode ser apenas o início de uma confusão ainda mais completa.


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