EXTRAVAGANCIAS DA NOVA RUSSIA
Curiosa reportagem de um jornalista Hespanhol que se casou
na Russia e que se divorciou vinte e cinco minutos depois
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Publicado
na Folha da manhã, Domingo, 29 de Julho de 1934
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Neste texto foi mantida a grafia original
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O trem deu um solavanco brusco e minha cabeça foi bater contra
um dos ganchos de ferro da redezinha do alto. Despertei.
- Leningrad? perguntei , esfregando a cabeça.
- "Niet", respondeu o camarada Jungmeister.
O camarada Jungmeister occupava o leito fronteiro, desde Minsk onde
o obrigaram a accommodar-se ali trazendo-o de não sei que outro
vagão, os demais companheiros de viagem compadecidos pelo facto
de eu estar ali sozinho. Trouxeram-me, pois, o camarada Jungmeister,
affirmando-me que elle falava "franchuski". Mas o francez
desse bom rapaz reduzia-se a umas sete ou oito palavras, cuja busca
nos escaminhos da memoria fazia-se suar desesperadamente.
Durante duas horas lutamos heroicamente com essas sete palavras.
Através dellas, porém, pude averiguar o seguinte:
Primeiro: que o trem estava com seis horas de atrazo, devido à
neve que o bloqueára em plena steppe.
E segundo: que não havia vagão restaurante.
Par mim, esta ultima informação era verdadeiramente
catastrophica porque eu não comia desde o dia anterior.
Resolvi dormir.
Quando despertei, o camarada Jungmeister estava na mesma attitude.
Derreado no leito, não sei se elle dorme ou pensa... Através
da vidraça, diviso uma estação ampla, quasi deserta
sob a neve. Onde estamos? Luto entre a curiosidade e o medo de empenhar-me
noutra batalha com as sete palavras francezas do homenzinho.
Mas pergunto:
- Gare?... Gare?... esperando que elle me diga o nome da estação.
E é nesse momento que surge o inesperado: por sobre minha cabeça
apparece, pendendo do leito superior, uma bella perna de mulher, finamente
calçada. Surge, a seguir, a outra perna. Depois, um rosto bonito,
com uma linda boca que sorri e que exclama, em francez:
- Estamos em Orscha.
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Observações
sobre o amor |
Fico satisfeitissimo de descobrir, no meu proprio vagão, uma
russa que sabe falar francez.
Katia L. Logriniskaj, estudante de engenharia e interprete das grandes
fabricas de aluminio - foi dessa fórma que ella me fez a sua
propria apresentação - fala o francez correctamente.
Quando, por acaso - o que é raro - lhe falta uma palavra, ella
recorre ao allemão. Entendemo-nos maravilhosamente.
Como a nossa palestra escorregue para o amor, Katia pede-me que me
diga o que penso do amor na Russia, uma vez que já me encontro
nesta terra há dois mezes. Digo-lhe algumas phrases, um pouco
parecidas com maximas. Esta, por exemplo:
Os pares de namorados que vi na Russia, não têm o aspecto
atormentado e angustioso dos da Hespanha.
E esta:
Os cinemas, na Russia, vivem cheios de noivos. Mas - coisa sensacional
- todos elles vão ao cinema para assistir a exhibição
dos filmes.
E accrescento:
- Creio que os dois paizes onde o jogo amoroso - se quizer, pode suppôr
o "amor physico" - é mais ingrato, esses dois paízes
são a Hespanha e a Russia.
- Porque?
- Na Hespanha, porque a mulher lhe dá uma importancia excessiva;
e na Russia, porque não lhe dá importancia nenhuma,
o que é muito peor.
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Como
é um casamento na Russia Soviética |
- Katia, como é um casamento na Russia de hoje?
- Hoje, na Russia, não ha casamentos.
- Hein?!
- Não ha casamentos no sentido de festa e ceremonial que se
costuma dar a essa palavra. Nesse ponto, passamos da maxima ostentação
à maxima simplicidade.
- Não se convidam nem mesmo os amigos mais intimos?
- Não. A união, nesse caso, é um acto intimo
do qual não temos que dar satisfação a ninguem.
- Então, os noivos se casam às escondidas e partem às
occultas para a viagem de nupcias?
Katia ri às gargalhadas:
- Mas não ha viagem de nupcias ... Nem lua de mel...
Katia continua rindo, diante de minha cara assombrada.
- Naturalmente você pensa que um casamento assim é uma
coisa aborrecida. Mas pense nisto; nós não temos lua
de mel, mas annos de mel.
- Como?
- Como?! Isso é difficil de explicar, principalmente a você
que vive em outro clima moral.
- E o noivado?
- Mas não ha noivado.
- Bem! Explique-me de uma vez como é esse casamento!
- É simples. Aqui, tudo isso é simples. Um homem e uma
mulher conhecem-se, e... unem-se. Não precisam esperar nada.
Nem a mulher espera a licença dos paes, porque os paes não
têm nenhum direito sobre as filhas - nem o homem precisa tratar
de melhorar as suas condições financeiras, porque a
mulher trabalha para sustentar-se. Unem-se. E é tudo.
- Mas... uma vez alcançado esse objectivo, de uma fórma
tão simples, o interesse de um por outro desapparece, naturalmente.
- Já vê que é difficil vocês compreenderem
essas coisas.
- Mas não é isso mesmo?
- Não é. E justamente porque não ha nenhuma outra
razão para essa união, a não ser o amor. Nós
aqui, quando nos unimos, fazemol-o pura e simplesmente por amor. E
porque sabemos que o menor deslise da nossa vida conjugal póde
fazer-nos perder o objecto amado para sempre, amamo-nos verdadeiramente.
Dahi os "annos de mel", de que lhe falei ha pouco.
- E quando resolveu casar-se?
- Apenas duas firmas num livro de registro. Mas, isso é apenas
uma formalidade dispensavel. O que nos interessa é a união
em si, e não o seu registro.
- Ora essa! Mas então não existe casamento!
- Existe. Mas nós o consideramos como uma reminiscencia burgueza.
Os deveres de um conjuge para com o outro são os mesmos, estejam
ou não registrados.
- E como se faz essa inscripção?
- Em poucos minutos. Escreve-se o nome, o endereço, a profissão
e o salario de cada um dos nubentes. Paga-se alguns "rublos",
recebe-se o certificado e... prompto. O divorcio, por sua vez, reveste-se
da mesma simplicidade. A lei exige que não se façam
divorcios antes de tres mezes de casados. Mas isso também é
uma formalidade...
- Então, alguem póde casar-se hoje e divorciar-se amanhã?
- Pode.
- E... divorciar-se logo depois do casamento?
- Sim, póde. Mas, quem iria fazer isso? Só por brincadeira.
E ninguem iria brincar assim...
- De certo...
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Mas... |
De repente, exclamo:
- Katia! Você quer casar-se commigo?
Ella ergue, bruscamente, a cabeça:
- Hein?! Que foi que você disse?!
- Ainda que seja por cinco minutos.
Katia olha-me fixamente, como se estivesse diante de um louco.
Ponho-me a rir.
- Casamento sério, Katia. Não se assuste. Renuncio,
desde já, a todos os direitos. Um casamento apenas no papel.
Casar-nos-emos num bairro e iremos nos divorciar em outro. Em quinze
minutos tudo estará terminado.
- Mas, para que?
- Seria uma reportagem interessante para minha terra. Aqui, não
seria nada. Mas lá, onde o casamento é uma coisa muito
séria, em que os noivos têm que esperar mezes e mezes,
em que se mobilizam todos os membros da familia, e se obriga o pobre
noivo a realizar actos de heroismo para melhorar sua situação
financeira... seria um sucesso. A pedra angular da nossa sociedade,
Katia!
E exclamo: - Aceita?
Katia responde, terminantemente:
- Não!
- Mas por que?
- Porque não é serio...
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A
minha noiva |
Mas que mania dessa gente levar tudo a serio!
Todavia, eu preciso de uma noiva. Leningrado está cheia de
moças bonitas; mas se as detenho na rua, para perguntar-lhes
se querem casar-se commigo, responderão logo que não!
ainda se fosse a serio...
Imagino se eu fizesse a mesma coisa na Hespanha... É claro
que, se eu detivesse uma mulher na rua e lhe perguntasse se queria
acompanhar-me à minha casa, ella fulminar-me-ia com apostrophes
terriveis. Mas, desde que eu pronunciasse a palavra "casamento",
o caso mudaria de figura. Tudo é diferente, quando se trata
de casamento.
Pois, meus senhores, na Russia é o contrario! Ali, é
natural que nos respondam affirmativamente a uma offerta passageira
de amor. Isso não tem importancia. Mas, casar! Isso é
que é mais difficil.
Andei por Leningrado, durante dois dias, à procura de uma moça
que quizesse casar-se commigo. Fiz essa proposta a uma "taquimeca"
da M.O.R.P., a uma empregada do "Astoria", a uma bailarina
do Theatro Alexandre, a varias operarias de uma fabrica... Nada!
Uma dellas me disse:
- Prefiro ir ao cinema com você.
Vejam que abominação, que desprezo pela instituição
da Familia!
Mas, à tarde, Katia me disse:
- Consultei meu companheiro.
- E então?
- Eu me caso com você.
- Ora, viva!
Satisfeitissimo, estive quasi a beijal-a, sem me lembrar que tudo
que era apenas uma reportagem.
- Amanhã, então?
- Amanhã.
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O
meu casamento |
O dia do meu casorio amanheceu com o mesmo tempo enfarruscado dos
dias anteriores: neve, e uma temperatura de onze graus abaixo de zero.
A primavera russa! Apenas a primavera!
Katia foi buscar-me no hotel.
- Mas, que é isso? Nem siquer pôz um vestido novo para
casar-se?
- Então você pretende que chamemos a attenção
de toda a gente?
- Ora essa! Mas ninguem se casa com roupa nova?
- Claro que não.
Tomamos um bonde par ir ao Cartorio do bairro de Volodoski. Através
os vidros nublados, vêm-se as brigadas do Soviet local removendo
a neve das ruas. São brigadas do Soviet local removendo a neve
das ruas. São brigadas mistas. Os homens partem o gelo com
ferros ponteagudos e as mulheres o removem com pás, rapidamente.
O bonde vae abarrotado. Atrás de mim, um magnifico typo mongol,
porco como elle só, enfia suas barbaças piolhentas pelo
meu pescoço. A cesta da camarada do lado quasi me esmigalha
os rins. Katia vae deante de mim, espremida, embora eu faça
esforços sobre-humanos para afastar-me della. Minha bocca está
a altura do seu ouvido.
- Katia, deyo dizer lá que a amo muito?
- Não diga bobagens... responde-me ella, rindo.
Ao descer do bonde, lembro-me de uma coisa:
- Katia! E as testemunhas?
- Que testemunhas?
- Lá, elles não exigem...?
- Não exigem nada.
Chegamos. Subimos uma escadaria desconjuntada. Empurramos uma porta
muito suja e entramos na sala de espera.
- Quanta gente! exclama Katia, contrariada.
Ha, com effeito, muita gente. Mas observo que ha mais homens do que
mulheres.
- Como é isso? pergunto à minha "noiva".
- É porque, para divorciar-se, não é preciso
que venham os dois, basta um. E além, disso, o Cartorio não
existe apenas para casar e divorciar. Ha muitos que vêm para
registrar mudança de residencia e mudança de nome.
- De nome?
- Sim. Na Russia qualquer pessoa póde trocar de nome quando
quizer. Basta apenas registal-o.
A sala é ampla e mal cuidada.
As paredes estão foradas de cartazes de propaganda. Um grande
retrato de Lenin - Linhin, dizem elles. Grandes photographias mostrando
as phases embryonarias de uma criança normal e, ao lado, os
resultados tragicos das doenças venereas e do alcoolismo.
Depois de alguns momentos, entramos na sala principal. É um
compartimento pequeno, com uma mesa de pinho, na qual um moça
morena escreve num livro com essa tinta tão commum na Russia.
Pelas paredes, mais cartazes de propaganda. Outra moça nos
offerece cadeiras. A primeira nos pergunta:
- Matrimonio ou divorcio?
- Matrimonio! Responde Katia.
Pede os documentos. Meu passaporte deixa-a intrigada, pois ella não
consegue decifral-o. E inquire:
- "Fraanchuski"?
- "Spanski".
Pede-me que o traduza e vae escrevendo o meu nome, profissão
nacionalidade. Faz uma pergunta a Katia e esta me diz, após:
- Perguntou-me se eu me satisfazia com a sua declaração
de que não sofre de nenhuma molestia suspeita, ou se eu exigia
um certificado.
A escrivã apresenta-me o livro:
- Assine aqui.
Assignei quatro vezes. Katia , apenas duas. Pago tres rubles de despesa
e dez "copecks".
Dão-me a certidão, apertam-nos a mão, desejando-nos
felicidade e nós sahimos.
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Depressa! |
Tomamos um taxi e corremos par outro cartorio, afim de nos divorciarmos.
Mas, occorre-me uma idéa:
- Katia. Você não acha que devemos commemorar o casamento
indo tomar um taça de chá e comer alguns pasteis?
- Não. Commemoraremos o divorcio.
- Ingrata!
Ponho-me a procurar, na imaginação algumas phrases adequadas
ao lance: "Enfim, sós!" Ou esta curta, mas romantica:
"Qual foi o dote que teus paes te déram?" Mas nenhuma
dellas serve. E exclamo:
- Mas deviamos, ao menos arranjar um motivo para o divorcio. Uma briguinha...
- Allegarei que você me insulta em hespanhol e que eu, não
compreendo, não posso responder.
- E isso basta?
- Isso ou nada. Não é preciso haver "motivo"...
*
No
segundo cartorio ha menos gente. Entramos logo, de caras regularmente
funebres.
- Casamento ou divorcio? pergunta-me a escrevente, que é
loura como um trigal.
- Divorcio.
de novo, os documento. Ella fala com Katia. Quero saber o quê.
- Ella diz que devemos refletir mais um pouco. Poderiamos voltar
daqui a tres ou quatro mezes...
- Hein! Diga-lhe que o meu trem para Moscou sáe amanhã
às sete e vinte.
A lourinha torna a escrever. E volta a interrogar minha "esposa".
- Que é?
- Ella quer saber se temos filhos...
- Mas se não houve tempo, Katia...
Assigno no livro. Katia tambem. Mais tres "rublos" e dez
"copeeks". Entregam-nos outra certidão. Sahimos,
solteiros outra vez.
*
Na rua, olho o relogio. Estivera casado durante vinte e cinco minutos.
E tudo isso me custaria seis rublos e vinte "copecks",
isto é attendendo à approximada capacidade aequisitiva
do "rublo" na Russia - onze mil réis, mais ou menos...
Mas o final dessa aventura eu não posso contar aqui.
LUIZ SIRVAL
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