NO PAIZ ONDE OS DEUSES MORRERAM

Publicado na Folha da manhã, domingo, 29 de abril de 1934

Neste texto foi mantida a grafia original

Ha cem annos, a Grecia era uma região de miseria. Ali viviam, mesquinhamente, os restos dos que se consideravam representantes do nome grego. Vegetavam, indifferentes ou opprimidos, enquanto uns raros sonhadores, ansiavam pela reconstituição da nacionalidade hellenica. Era fóra da Grecia - mais de que lá mesmo - que a Grecia existia. Quem a viu então, descreve-a como se fôra uma successão de aldeias sujas e pobres, por entre ruinas e tradições gloriosas. Hoje é uma nação moderna e vigorosa: como se fez, e como se faz esta ligação entre a Grecia de hontem e a de hoje?
A Grecia actual não é mais - todos o sabem - a Grecia de Chateaubriand, nem a de Edmundo About. De 1830 para cá, ella evoluiu e progrediu muito, e muito rapidamente. De um pequeno povoado, que era, ha setenta e oito annos. Athenas, subiu até a categoria de capital européa. Por toda parte, a segurança é perfeita e absoluta; os bandidos e salteadores, como Hadji Staoros, desappareceram sem deixar posteridade. Os principaes centros, os mais interessantes campos de excavações e de pesquisas paleontologicas, estão ligados a Athenas por estradas de ferro ou excellentes estradas de rodagem.
Partindo da capital ou de Patras, alcança-se rapidamente Olympo, Coryntho, Mycenas, Argos, Nauplia, Treplitaz, Kalamata... Na Grecia continental, Thebas, Cheronéa, Linadia, Chalkis, são servidas por estradas de ferro. A Thessalia está igualmente cortada de trilhos de ferro. De Kolli vem uma linha para Lorissa e outra para Kalabaka, onde se visita o famoso convento dos Meteóros.
Entre o porto do Pireu e Delphos, o serviço é feito por excelentes navios de cabotagem. Corfu está justamente no caminho dos paquetes que, de Brindisi ou de Veneza se dirigem a Patras. É um tanto mais difficil e longa a excursão completa pelas ilhas do Archipelago. No entanto, se o turista não quer ir até as Cyclades, se não faz questão de passar por Delos, póde, pelo menos, sem maior incommodo, chegar até Salamina, Paros, Egina e o seu famoso templo da deusa Aphéa.
As viagens pelo interior do paiz são, às vezes, penosas. Ha ruinas celebres, sitios maravilhosos que só são accessiveis por estradas e caminhos trabalhosos e estranhos.
A magnifica travessia das gargantas do Taygeto, a subida ao monte Kotylion - em cujo vértice se ostenta, glorioso, o templo a Apollo medico, obra do genial Ictinos - são verdadeiras provas de resistencia e coragem para o cavalleiro e mesmo para o pedestre.
Trata-se, porém, de excepções; e são caminhos que, em todo caso, se fazem sem maiores perigos, devido á força e pericia dos muares que por ali se alugam.
Na maior parte dos casos, viaja-se por estradas excellentes. A Grecia é um dos raros paizes da Europa onde se póde, neste seculo de automovel e frenesi, viajar numa marcha repousada, e vagabundear, flanar com delicia. Acelera-se a marcha a vontade... ou ao capricho do "agoyiate". A viagem se desenrola harmoniosamente, sem presas importunas nem tyrannicas; ha caminhos onde, durante horas e horas, não se encontra uma alma.
Muitas vezes basta sahir de uma cidade, transpôr a velha porta dos muros, para mergulhar na solidão completa, seja planicie ou montanha. Certos ermos têm o aspecto e o perfume das nossas terras virgens; e a illusão seria completa, se numa volta de caminho não surgisse bruscamente um templo pagão, em ruinas, um forte medieval, uma capella dependurada no flanco de um penedo.
Os que realmente amam a belleza, e sentem arrepios ao pensar nas éras grandiosas - da arte e da philosophia grega, ainda pódem visitar a Grecia. O turismo, ainda não se desenvolveu, nem enfeiou a terra classica da belleza. O pitoresco ainda existe em toda a sua pureza.
Só as cidades se transformaram, o que é um bem para os que, amando as glorias e bellezas antigas, não dispensam o conforto moderno. Nos principaes centros, a mesa e os alojamentos dos hoteis são supportaveis. Patras. Nauplia, Delphos, Olympo, possuem mesmo bons hoteis. Nas aldeias e valles longinquos, o notavel do povoado encarrega-se de alojar os visitantes. Os mosteiros, encarapitados nos cimos abruptos sabem tambem acolher os viajantes: os "caloyers" de Megaspileon, ou dos Meteóros são hospedeiros cortezes e desinteressados. Mais profundamente na montanha, tem-se a hospitalidade dos pastores, que conservam os costumes e a simplicidade antigos. Sacrificam em honra do viajante o tradicional cordeiro, que é assado no espeto, e, à noite, depois de um festim de tom homerico, assentados em torno de um grande fogo flammejante, entoam canções, alternando as pastoraes e melodias populares com os cantos klephtos.
A Grecia dos pastores e dos marinheiros merece bem ser conhecida. Ali o mar e a montanha preservam o que ha de melhor contra o que ha de peor na "civilização"; é nos anfractos das serras, e nos recantos das costas que se refugiou a vida propriamente nacional. Por toda parte, as portas aberta, mal têm esse perfume de antiguidade; por toda parte acolhem o visitante chamando-o de irmão - "adelphé". Tão interessantes são esses costumes, que um editor de Genova organizou, ultimamente, com o auxilio de um grande artista - Brissonas - um album das bellezas naturaes e ruinas da Grecia, album que se vende pela bella somma de 400 mil réis. É um livro para amadores e para archeologos.
Ainda pouco frequentada (até ha dois annos, quando a visitei pela ultima vez), a Hellada conta um pequeno numero de admiradores: uma élite de homens de letras, artistas e archeologos. É cousa curiosa: se ella tem os seus historiadores e poetas, não tem pintores, quasi, pelo menos, entre os grandes nomes do Occidente europeu. À excepção de René Ménard, não ha um só paizagista moderno que tenha procurado inspirações na Grecia. É que as côres vivas e puras dali, os panoramas luminosos produzem paizagens onde ha muito desenho e poucas nuanças, o que é justamente o contrario das paizagens do Oeste europeu - de contornos indecisos, nuanças imperceptiveis e ricas. Mas, nesta simplicidade de linhas e riqueza de luz, está realmente o grande encanto daquella natureza. É uma plastica de relevos nitidos e firmes. Naquelle ambiente puro, como sob este nosso céo, os contornos se destacam francamente, e a abundancia e pureza da luz dão a cada objecto o seu valor exacto. "Que milagres não fez a luz da Grecia! Exclama Mauricio Barrés. Ella transforma numa belleza grandiosa, a simples columna de poeira, levantada pelo vento..." Penetrando por todos os esconsos meandros, ella tinge de gloria até a bruma das encostas e a sombra dos bosques.
Durante o dia, envolve os cimos de vapores opalinos; pelas quédas das montanhas e pelo fundo dos valles, exaltam as côres e as formas, destacando as terras, prateando as aguas e dourando as hastes.
Ao cahir do sol, as grandes alturas se revestem de incandescencias fulvas de nacar, e toda a natureza é purpura, ouro e rubim, sob uma chuva de amethistas e hyacinthos.
Ha luares na Attica que só se comparam com os do sertão do Norte do Brasil. São claros como um dia azul. E quando a lua derrama os seus mysterios fantasticos pelas fraldas das collinas e sobre a profundeza das florestas, o panorama é de uma belleza sobrenatural.
Na Grecia, cada região, cada cantão, tem a sua estructura propria, a sua physionomia especial. Mas o conjunto é um todo perfeito, organizado, que se caracteriza pela fluidez do ar, e a transparencia do ambiente, que é como crystal impalpavel.
A natureza, na Grecia, é regionalista como o povo. Do alto do Ithomo, o messenio contempla a sua planicie, fechada numa moldura de montanhas, e tem a visão nitida, completa, da sua terra e do seu valor; do alto do Mistra, o paritatas, pôde, de um só golpe de vista, abraçar todo o valle do Eurotas; da fortaleza de Argos, o argeu domina toda a Argolida. E é assim por toda parte, e por toda parte a natureza tem o seu aspecto proprio. A nobreza das linhas, a harmonia do conjunto, impõe-se; mas as riquezas dos detalhes e ornamentos não são menos impressionantes. A Attica elegante e majestosa, desenvolve com simplicidade a nudez das suas montanhas, e o manto cinzento dos seus oliveiraes - tem a nobreza do Parthenon e a graça do Evechlhion; Delphos, selvagem e tenebrosa, cheia de mysterios e terrores religiosos, no meio de penedos gigantescos e de grotas profundas, é realmente um quadro digno da divindade que interpretava os designios divinos. Olympo e todo o valle do Alpheu - oasis de verdura, sorridente e gracioso, é a moldura natural do recanto sagrado do Altis, donde emanavam a alegria e a eurythmia da existencia. A Arcadia, a Beocia, a Thessalia, cada uma das outras regiões têm igualmente o seu typo proprio.
Por vezes, num mesmo recanto, parece que se compraz a natureza em fundir os elementos mais disparatados: em Sparta, o contraste é violento, produzindo um sublime accôrdo, entre a molleza voluptuosa do valle e a aspera magnificencia do Taygeto, com os seus vastos contrafortes e as formidaveis escarpas e cimos nevados, como esculpidos pelos raios. Essa mesma sumptuosa variedade se encontra nas costas, onde o mar, recortando as mais caprichosas curvas, desenha profusamente bahias, golfos, enseadas, cabos e peninsulas...
Das ilhas, uma -Hydra e Spetzae - aridas e nuas, queimadas pelo sol; Eubea - de bellezas alpestres; Thyra - vulcanica, de visões dantescas; Corfu - luxuriante e virente; Naxos, a rainha das Cyclades - a boiar serenamente nas aguas, como a flôr que se abre em pleno céo.
Foi incontestavelmente a natureza quem levou ao celebre grego esta concepção de arte toda plastica e harmonica, porque, ali, até as montanhas têm linha e são maravilhas de esculptura.

A. A.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.