O CAÇADOR DE DIAMANTES


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 28 de janeiro de 1934

Neste texto foi mantida a grafia original

1656. Fervia em São Paulo a agitação das bandeiras. Chegavam à villa quieta mensageiros esbaforidos e exhaustos, vindo de muito longe, contando historias maravilhosas de thesouros enormes encontrados à flor da terra, onde o ouro brilhava, fulgurando ao alcance da mão. E mais uma grande bandeiras se preparava a de D. Luiz, moço fidalgo, para varar o sertão immenso, rumo de Cuyabá.
Naquela manhã, no largo da Mariz Velha, um moço. D. Fernando, movido pela compaixão, intervem em favor de um pobre escravo índio, Imbu, pertencente a D. Antonio de Barros, a quem um capataz sem alma maltrata cruelmente. D. Fernando manejava a espada com pericia, e já em varios recontros mostrara a firmeza do golpe, pondo ao chão os valentões que à noite alvoroçavam a villa, batendo descaradamente às rotulas fechadas. D. Fernando mostrava mais uma vez a sua desenvoltura, combatendo contra tres adversarios, e a sua espada, volteando ligeira, despedia golpes tremendos. Em meio à refrega, quando D. Fernando esperava contar à noite, na taverna do Gallo mais uma façanha, apparece D. Luiz. Vinha elle acompanhando a gentil D. Maria, paulista linda por quem perdiam a cabeça todos os rapazes da villa. E vendo D. Fernando, e a bravura com que se sustentava, convida-o a juntar-se a elle na expedição que partia em tres dias. Sob o estimulo do lindo olhar de D. Maria, que o fitava interrogadamente. D. Fernando acceita alegre o convite, alma em festa, certo de que esse era o desejo da moça.
E foi contente que entrou na officina do velho armeiro Mestre Garro, seu pae adoptivo, para communicar-lhe que partiria. Mestre Garro acabava justamente de dar a ultima tempera a um fina espada, que rivalizaria com as melhores de Toledo, e a offerece, satisfeito do seu trabalho, ao moço. D. Fernando completava naquelle dia seu vigesimo anniversario, e ao vel-o sahir Garro, num suspiro, encaminha-se para a velha arca, repousada a um canto da forja, e examina um roteiro que o pae de D. Fernando deixara em suas mãos para ser entregue ao herdeiro do seu nome quando completamente vinte e um annos. Mais um anno, e estaria cumprido a missão e a promessa...
Por volta de meio-dia chegava à sua casa D. Maria, acompanhada de D. Luiz. Os paes de ambos, sentados na varanda larga e ensombrada, jogavam uma partida de xadrez. E, em meio da partida, olhando o jovem par que chegava, combinam entre si o proximo casamento de D. Luiz com D. Maria.
À tardinha, tem D. Maria um encontro com D. Fernando. Ha longo tempo que entretêm esses encontros furtivos, ha longo tempo que apaixonadas juras de amor escapam dos labios dos jovens amorosos. D. Fernando, inundado de felicidade, mostra á moça a espada nova que lhe déra Mestre Garro. Tem esperança de, com ella, conquistar gloria e fortuna, no sertão verde que se estendia, silencioso, à volta delles. Tem certeza de que a fortuna lhe sorrirá, e que um dia os seus sonhos de amor se converterão em realidade. Pede-lhe o moço que, no dia seguinte, na cerimonia da bençam das espadas, ella seja a sua madrinha gentil. Ella sorri, orgulhosa, e um longo beijo sella o seu compromisso.
A taverna do Gallo reunia à noite, à luz fraca dos candieiros fumarentos, desordeiros e fidalgos. E grande ia a animação naquella noite, onde o vinho escorria dos piches bojudos, e se discutia a proxima partida de mais uma bandeira. Era grande a algazarra, quando surge uma rusga: D. Ruy, aventureiro canalha, se desavem com o seu parceiro no jogo de dados. Com tanto desaso se houve, que, pretendendo insultar o parceiro, arremessando-lhe os dados ao rosto, vão esses ferir o rosto de D. Luiz. Volta-se este para D. Ruy, furioso, e por certo teria sido o moço attingido pelo certeiro punhal do aventureiro se não fora a rapida e opportuna intervenção de D. Fernando. D. Ruy, que tambem partia com a bandeira, dominado e abatido, se retira da taverna, jurando vingança. D. Luiz tinha adquirido ali, á luz frouxa e confusa da sala sordida, um inimigo rancoroso e implacavel.
Entre sorrisos e galas, inicia-se na manhã seguinte a imponente cerimonia da bençam das espadas. Alinhados em um lado, após a missa, homens rudes e barbudos, de mistura com rapazes imberbes e sorridentes, desembainham a espada. E avançando lentamente, foram collocar-se em frente de suas madrinhas. D. Fernando e D. Luiz viram, surpresos e admirados, que ambos se tinham ajoelhado diante de D. Maria, ambos tinham escolhido, para madrinha, a paulista gentil que alvoraçada o coração de toda a gente! Iam já os moços, num assombro irreflectido e irresistivel cruzar as espadas para a decisão da duvida, quando o pae de D. Maria, severo e carrancudo, lhe communica que ella estava promettida a D. Luiz. Que, por isso, devia abençoar a sua espada. D. Fernando, desesperado, remoendo o seu odio, retira-se, enquanto, silenciosamente, com imponencia, a cerimonia continua e os sinos da Velha Matriz bimbalham alegremente.
Na forja de Mestre Garro, D. Fernando dá vasão ao seu desespero. Mestre Garro, condoido do moço, resolve quebrar a sua promessa. Vae até a arca bolorenta, retira de lá o roteiro, e o entrega ao moço. É o caminho que conduz à Ilha dos Diamantes, famoso lugar desejado por tantas bandeiras que se perderam, em lugares longinquos; de tantas bandeiras que voltaram destroçadas e febris, sem nunca a terem encontrado! O roteiro famoso estava ali annos, naquella velha arca, guardado pelas mãos zelosas do velho armeiro! A fortuna e o amor deparam-se assim inesperadamente a D. Fernando que, por conselho de Mestre Garro, renuncia a partir com D. Luiz, agora seu rival e inimigo. E o armeiro traça o plano que elle deverá seguir: buscará esconderijo na encruzilhada do rio contra a gente de D. Antonio. Ao amanhecer, João e Pedro, antigos amigos do moço, como elles dados à aventura, se juntarão a elle e a Imbú, o escravo que fôra acoitado no Largo da Matriz, e que não mais se separara do moço. D. Fernando e seus companheiros, sertanistas experimentados, buscariam então no recondito das selvas aggressivas e brutas, os indicios marcados no roteiro.
Na manhã seguinte inspiradas pelo amor e pelo desejo de gloria e fortuna, partiram de São Paulo duas "bandeiras". Uma, meio milhar de homens, entre fidalgos, soldados, indios, mamelucos e escravos, capitaneados por D. Luiz, deixava a filla entre acclamações festivas e bimbalhar de sinos. Outra, pequena, modesta, audaciosa, a de D. Fernando, quatro homens apenas que, numa canoa ligeira, subiam o rio, silencioso, ao ruido compassado dos remos beijando a agua calma e serena. Que destino as aguardava, no meio das brenhas asperas?
Passam monotonos e arrastados, longos mezes de privações e trabalhos inauditos. Movia-se, devagar, a pequena bandeira de D. Fernando. Descançavam, uma tarde, numa clareira cheia de frescor e sombra, quando o encontro de uma india, Potojú, indica claramente a Imbú que não fica longe a zona habitada pelos homens de sua tribu. D. Fernando interroga-a. Ella adianta que, no momento de ser encontrada, voltava para a sua taba, tendo perdido de vista seus irmãos que partiam para a guerra, na direcção do poente, onde um grupo de brancos, invasores ousados, estacionava. Surpreendeu-se o moço. Brancos por ali? Sim, eram paulistas, como elle, paulistas prestes a ser atacados por um grupo de homens bronzeados, sedentos de sangue! Paulistas prestes a ser tocaiados, no escuro sombrio da floresta! E resolve partir, a toda pressa. Quem sabe não chegaria tarde? Quem sabe encontraria apenas um acampamento dizimado, onde gemiam os feridos, e os cadaveres amontoados attestariam a sinistra passagem dos guerreiros indios! E a pequena caravana partiu, seguindo na floresta o sulco limínoso que o sol fazia no céo, quando descambava.
Graves acontecimentos tambem se iam desenrolando na bandeira de D. Luiz. Diziamada, diminuida, ceifada por doenças crueis, não desanimavam os seus homens na luta contra a natureza selvagem que os rodeava. D. Ruy, comtudo, não desistira ainda dos seus propositos sinistros, e desesperava-se da demora de sua vingança, quando os batedores da bandeira aprisionam dois indios, em cujos collares brilham ouro e pedras preciosas. Mas os indios, encerrados num obstinado silencio, se negam a dizer onde faziam todas aquellas riquezas. D. Luiz vale-se então de um estratagema para fazer acreditar que é o rei do Fogo, prompto a destuir-lhe as aldeias se não o favorecerem com as indicações que precisa. Apavoram-se os indios, cahindo de bruços ao sólo. D. Luiz reenvia-os para as suas tabas, certo de que logo voltariam para leval-o ao lugar onde encontraria ouro e riquezas.
D. Ruy vê a situação e resolve aproveitar-se della para a sua desforra. Obtida por um cumplice uma pepita, elle convence D. Luiz da proximidade do ouro. E logo é despachada uma expedição, guiada pelo aventureiro, para o lugar onde D. Ruy dizia existir tanto ouro que daria para encher todas as casas da villa de S. Paulo.
Mas o plano tinha sido préviamente combinado com os velhos chefes da tribu. Os seus guerreiros, emboscados na matta, aguardavam silenciosos a chegada dos homens que D. Ruy, sorrindo mysteriosamente, levava para a morte e a destruição.
Foi com emocionada alegria que D. Fernando, seguindo a direcção do sol no occaso, divisou ao longe as sentinellas do acompamento de D. Luiz passeando pausadamente. Mais um pouco de marcha, e eil-os que chegam ao acampamento. E quando D. Fernando e D. Luiz se encontram, no centro da clareira, tão grande foi a sua surpresa, que se a não póde descrever. Dominados pelo odio antigo, pucham as espadas, e as laminas fendem o ar, pela posse de D. Maria.
Ia o combate em meio, quando, esvaindo-se em sangue, exhausto, agonizante, os interrompe o capitão da bandeira. Conta elle, com a voz entrecortada, a trahição de D. Ruy, que custa a vida de todos os homens que o acompanharam. E aconselha-os a acautelarem-se, porque os indios não tardariam em levar a effeito um ataque contra o acampamento.
Nobre como sempre, D. Fernando resolve offerecer a D. Luiz o seu auxilio e o de sua gente, na defesa commum. E, instantes depois, uma forte barricada se levante, no meio da clareira.
O ataque dos indios foi rapido, cruel, violento. Mas diante da resistencia desesperada, adiam o ataque para quando a noite estendesse sobre tudo as suas trévas impenetraveis. Então, numa sortida inesperada, tomam a barricada, e D. Luiz e D. Fernando, presos, são conduzidos à grande taba do conselho.
Foi ainda mais rapido e summario o julgamento dos chefes brancos. Os indios os condemnavam a ser, no alvorecer, precipitados do alto do Cume Sagrado.
E quando a manhã raiou, depois das cerimonias sagradas, dois corpos martyrisados eram arremessados do alto do escarpado cume da grande montanha que os indios veneravam.
Mas ainda não era o fim. A mão generosa de Imbú interviéra. E graças a um engenhoso ardil, consegue subtrahir os dois fidalgos à sorte que os espera, muito embora para isso tivesse consentido no sacrificio de D. Ruy, assim justamente castigado de sua trahição.
Livres, graças ao escravo Imbú, que ainda dá ao seu protector a fortuna desejada, os dois jovens terão agora que decidir por si proprios o seu destino. D. Luiz, bandeirante de rija tempera, resolve, emborasozinho, continuar pelo sertão afóra, para ou conquistar a gloria desejada, ou ali encontrar a morte como seus bravos companheiros. D. Fernando volta, com Imbú, mãos cheias de diamantes, ao encontro do amor e da felicidade. Mas D. Luiz, em cuja alma não esfriara o desejo de aventura, seguirá avante, sempre avante, cumprindo a sua obra gigantesca de civilização e conquista...

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