O DESTINO CONTRADICTORIO DOS DICTADORES


De que modo, expulso da Italia como elemento perigoso à ordem publica e expulso da Suissa, onde era um simples empregado de salchicharia, Mussolini conseguiu, poucos annos depois, ser o chefe do governo italiano

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 27 de março de 1938

Neste texto foi mantida a grafia original

Nada mais incerto nem mais fugaz que o prestigio politico. Por isso mesmo, nenhum encargo é mais perigoso que o da policia politica. Quantas vezes o preso de hoje vem a ser o chefe do governo de amanhã?
O quadro contemporaneo dos chefes de Estado dá-nos bem uma idéa dessa instabilidade. Hitler, por exemplo, ha cerca de quinze annos era estrangeiro na Allemanha, preso como agitador, perseguido, espesinhado, e hoje é a vontade unica do Reich. Nem mesmo é mais estrangeiro, porque, num lance de audacia, conseguiu incorporar à Allemanha o territorio da Austria, sua terra natal.
O caso de Mussolini é ainda mais interessante. A sua tempera de lutador forjou-se justamente nas fileiras contra as quaes elle, mais tarde, organizou o exercito dos camisas negras. Expulso da Italia como elemento perigoso à ordem publica, asylou-se na Suissa, onde soffreu miseria. Enquanto estudava na Universidade, trabalhava ali numa salchicharia. Até que um dia tambem a Suissa o expulsou do seu territorio, como vadio. Poucos annos depois, comtudo, Mussolini regressava à Suissa, já chefe do governo italiano, para participar, em Genebra, dos trabalhos da Sociedade das Nações. Foi preciso então que o governo suisso, em dezembro de 1922, fizesse votar às pressas um decreto, revogando o mandado de expulsão de Benito Mussolini.

As difficuldades das autoridades suissas

Numa interessante conferencia feita na Universidade des Annales, o escriptor Marcel Boulanger refere as difficuldades em que se encontraram nessa occasião, em face do dictador da Italia, as autoridades suissas. Mussolini chegara a Lausanne, em 1922, para conferenciar com Lord Curzon e Poincaré.
A principal autoridade local foi procural-o no hotel para lhe apresentar as suas homenagens e saber se s. exa. desejava alguma coisa e se não tinha observações a fazer quanto ao serviço de segurança.
Era - escreve o sr. Marcel Boulanger - uma visita official de grande polidez que o prefeito da cidade fazia a um chefe de governo.
- Muito bem sr. presidente - disse a autoridade suissa, cerimoniosamente, na sua mais elegante casaca de cerimonia. - V. exa. está satisfeito com a policia suissa?
- Certamente, sr.prefeito - respondeu o sr. Mussolini. - E eu lhe agradeço vivamente o seu zelo.
Depois, accrescentou, sorrindo:
- Aliás, a policia suissa sempre foi perfeita em relação a mim... Venha, venha commigo ver uma coisa à janella...
E batendo-lhe amigavelmente no hombro:
- Olhe lá em baixo, sr. prefeito. Foi lá, naquelle ponto, precisamente, que a policia suissa me prendeu, por vagabundagem, ha uns vinte e cinco annos, numa noite em que eu dormia à porta daquella casa porque não tinha onde dormir e não tinha um "sou" no bolso...

Mussolini exilado na Suissa

Ha aspectos deliciosos, como esse, na vida anecdotica do sr. Mussolini, durante o periodo de miseria e de perseguição. Talvez venha precisamente desse contacto angustioso com a vida, na escalada brutal do nada para o poder, a maior força do sr. Mussolini.
- Meus antepassados - orgulha-se elle de proclamar - eram camponezes que trabalhavam a terra, e meu pae um pobre ferreiro.
A vida do dictador italiano foi realmente cheia de espinhos. Era um menino de genio impulsivo, que vivia a brigar com os companheiros no collegio de Forni. Já mocinho, foi nomeado professor, ganhando cincoenta e seis liras por mez. Socialista, como seu pae, certa vez, revoltado com a fraude verificada nas eleições, roubou as urnas para impedir a victoria dos clericaes. Valeu-lhe isso a sua expulsão da Italia. Foi para a Suissa, onde o esperavam tempos ainda mais tristes, de miseria e de fome. Depois de exercer uma porção de funcções modestas, na luta pelo pão de cada dia, conseguiu um emprego melhor no balcão de uma salchicharia.
O illustre politico francez, sr. Paul Reynaud, refere, a esse proposito, a attitude de espanto que tiveram Lord Curzon e Poincaré por occasião da entrevista com Mussolini em 1922. Achavam-se os tres chefes de Estado - o da Inglaterra, o da França e o da Italia - quando bruscamente este ultimo deixou os seus companheiros para ir apertar as mãos ao salchicheiro, seu ex-patrão.

Conversando com o ex-patrão de Mussolini

O jornalista Geo London, numa reportagem para "Le Journal", narrou, ha alguns annos, o seu encontro com o ex-patrão de Mussolini. O seu nome é Carlo De Paulis, e o seu estabelecimento é uma mercearia, em que se vendem massas alimenticias, confeccionadas pelos proprietarios, salchichas, mortadellas e frutas. Está estabelecido em Lausanne ha mais de trinta annos. Geo London assim expõe a sua entrevista com De Paulis:
Tendo exposto à senhora De Paulis, que me recebeu com um sorriso puramente commercial, o desejo de conversar com seu marido, surgiu este dos fundos da loja. Era um homem enorme, que se mostrava pouco disposto a perder tempo. Disse-me rudemente:
- Estou fazendo um serviço que não posso interromper. Se me quer falar, venha commigo.
Então, pela primeira e talvez pela unica vez de minha vida, entrevistei um homem occupado na confecção de raviolis: raviolis tão cuidadosamente feitos, tão appetitosos, que os comeria sem hesitar.
Enrolando a massa, cortando-a, com a carretilha, artisticamente, o sr. De Paulis evocou o tempo em que era patrão do actual chefe do governo da Italia:
- Foi em 1905 - disse elle - e eu estava estabelecido na rua de la Mercerie. Mussolini acabava de ser expulso do cantão de Genebra, depois de haver percorrido varios cantões, e chegava a Lausanne sem dinheiro algum. Eu acompanhava, nessa época, com assiduidade, as reuniões do partido socialista. Um camarada recommendou-me o jovem Bento e, como eu tivesse necessidade de um moço para o balcão, tomei-o a meu serviço. Pagava-lhe trinta francos por mez, com casa, comida e roupa lavada. Era tudo o que desejava Mussolini, cujo pão estava assegurado dessa forma para poder continuar os seus estudos na Universidade. Elle tinha então vinte e dois annos, e era muito forte, os olhos vivos, que davam medo a minha mulher.
- Não me deixe sozinha com elle - dizia-me ella.
- Na realidade, Mussolini era um moço muito calmo e tranquillo. Eu sabia, evidentemente, que tinha idéas politicas mais avançadas que as minhas e, embora tivessemos liberdade um em relação ao outro, não conversavamos sobre politica.
- Era um empregado modelo? - perguntou o jornalista.
- Era muito amavel, mas não extremamente trabalhador - respondeu o sr. De Paulis. - Via-se que apenas os seus estudos lhe interessavam. Quando eu o mandava à casa de um freguez, para levar encommendas, elle punha o embrulho ao hombro e levava um livro nas mãos. Já então, alguns professores da Universidade, notadamente o sr. Milhaud, haviam observado o seu talento. E Mussolini escrevia tambem artigos violentos num jornal italiano publicado na Suissa. Como, porém, os negocios, nessa época, não fossem os melhores, tive de privar-me dos seus serviços menos de um anno depois. Mussolini passou então a trabalhar com outro commerciante italiano, chamado Tedeschi. E foi quando uma ordem de expulsão, extensiva a todo o territorio do paiz, o obrigou a deixar a Suissa.
E, depois de conversar mais um pouco com o jornalista francez, o ex-patrão de Mussolini assim concluiu:
- Eu não sou fascista, nem anti-fascista. Mussolini fez muitas coisas que eu admiro e outras que não posso perdoar. Mas que quer? Apesar de tudo isso, é um homem que deixará o seu nome na Historia.
Tendo assim philosophado - termina Geo London - o sr. De Paulis, num rythmo perfeito, continuou a confecção dos seus raviolis. É um sabio!

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