APÓS ONZE ANOS, URUGUAIOS ELEGEM O PRESIDENTE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 25 de novembro de 1984
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CLÓVIS ROSSI
Enviado Especial a Montevidéu
Sete
partidos, com dez candidatos, disputam as eleições
presidenciais hoje no Uruguai, que marcam a volta do país
à democracia após onze anos de regime militar. Mas
só dois candidatos têm chances de vitória: Julio
Maria Sanguinetti, do Partido Colorado, e Alberto Zumarán,
do Partido Blanco. A coligação de esquerda Frente
Ampla, que concorre à presidência com Juan José
Crottogini, deverá ficar em terceiro lugar, com boas possibilidades
de eleger o prefeito de Montevidéu.
A campanha terminou em clima de festa, mas uma preocupação
acompanha os dois milhões de uruguaios que vão às
urnas: a incerteza quanto ao futuro econômico do país.
O governo democrático herdará a pesada carga de 30%
de desemprego (sem contar os 300 mil emigrados) e uma dívida
externa de 4,6 bilhões de dólares.
Nenhum dos partidos com chances de ganhar (Blanco e Colorado) apresenta
propostas concretas para enfrentar a crise. Isso porque as duas
agremiações - assim como a Frente Ampla - são
conglomerados das mais distintas posições ideológicas.
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Uruguaios
votam em festa, mas o futuro é incerto |
CLÓVIS ROSSI
Enviado Especial a Montevidéu
Cena
Um - Na noite de quinta-feira, em meio ao comício de encerramento
da campanha da Frente Ampla, surge um ônibus de turismo lotado,
com um rústico cartaz de papelão colado na lateral:
"Volvemos de Brasil". São emigrantes que regressam
para votar, recebidos com alegria, aplausos e emoção,
como se se tratasse de um reencontro definitivo.
Cena Dois - Na Calle Rio Branco, em pleno centro de Montevidéu,
todos os dias, inclusive nesta semana eleitoral decisiva, formam-se
grandes filas diante do consulado argentino. São uruguaios
que querem partir, ainda mais agora que o governo Alfonsín
já não exige o contrato de trabalho para dar-lhes
o visto de permanência.
Esses dois instantâneos captam as luzes e sombras que pairam
sobre este pequeno país de três milhões de habitantes
que vai hoje às urnas, após onze anos de ditadura
militar. Há, de um lado, uma intensa e contagiante embriaguez
cívica pelo retorno à democracia, mas há, também,
a incerteza quanto ao futuro econômico. E este, mais que a
volta à democracia, é que preocupa os uruguaios, conforme
constata pesquisa da empresa "Equipos", publicada na sexta-feira:
o item "criar fontes de trabalho" é considerado
como principal prioridade do futuro governo na opinião de
20,6 por cento dos entrevistados, maior porcentagem que surge da
pesquisa. Logo depois (com 18,5 por cento), aparece a questão
do aumento de salários e só em seguida é que
surge (com 18,1 por cento) o fortalecimento da democracia.
E é natural que seja assim: o governo situa o desemprego
em 14,66 por cento da população economicamente ativa,
mas considera empregados todos os que trabalharam apenas 24 horas
no mês anterior. Bem feitas as contas, o desemprego chega
a 30 por cento da população ativa, sem contar os trezentos
mil uruguaios (dez por cento da população) que tiveram
que deixar o país, disseminando-se pelo mundo.
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Poder
de compra |
No item salários, as estatísticas oficiais mostram que
o poder de compra caiu 42 por cento, nos onze anos de governo. Mas
economistas da oposição afirmam que a porcentagem real
é ainda mais elevada (quase cinquenta por cento). Ainda que
se aceite a cifra oficial, ela é brutalmente elevada e representa
uma transferência de renda, em detrimento dos assalariados,
da ordem de 4,6 bilhões de dólares - praticamente o
equivalente à dívida externa uruguaia.
Essa transferência fica evidente no ponderável crescimento
da renda nacional concentrada em poucas mãos: em 1968, os cinco
por cento mais ricos do país detinham 17 por cento da riqueza
uruguaia; em 79, essa porcentagem quase duplicava, passando a 31 por
cento.
É evidente que, com a democracia, os trabalhadores vão
querer apresentar a fatura e recuperar pelo menos parte do que perderam.
Às vésperas da eleição, já houve
negociações entre sindicatos empresariais e de trabalhadores,
em torno de um pacto pelo qual os assalariados se comprometeriam a
não fazer greves durante um certo período, em troca
de um aumento salarial de 75 por cento sobre os níveis de dezembro
passado. Como a inflação até outubro foi de 59
por cento, a oferta patronal permitiria que os salários recuperassem
o poder de compra perdido este ano (a queda foi de 14,66 por dento
segundo as contas oficiais). Mas os dirigentes sindicais querem começar
já a recuperar o atraso também de anos anteriores e
defendem aumentos que reponham não só o que se perdeu
em 84 mas ao menos dez por cento da erosão sofrida nos últimos
onze anos.
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Sombra
sobre a democracia |
Será essa disputa pela escassa renda nacional a mais pesada
sombra sobre a democracia que renasce. "O Uruguai está
à beira de uma explosão social", previne Roberto
Asiain, candidato a deputado pelo Partido Colorado.
Mais grave ainda: os programas dos dois partidos com chances reais
de chegar à presidência (blancos e colorados) contêm
apenas formulações genéricas, não demagógicas,
para atacar a questão econômica. Os colorados, por exemplo,
embarcam na linha desenvolvimentista, combinando um certo grau de
intervenção estatal com boa dose de liberalismo, na
melhor tradição partidária.
E apostam, fundamentalmente, na solidariedade internacional, especialmente
das grandes democracias: "Definitivamente, a única solução
que tem o país para produzir mais é que os países
do Norte possam comprar mais nossos produtos".
Os colorados vão passar imediatamente da retórica à
prática: já em dezembro, embarcam dirigentes políticos
e sindicais para diversos pontos do Globo, com o objetivo de conseguir
duplicar as exportações uruguaias, levando-as a dois
bilhões de dólares ao ano.
O projeto do Partido Nacional (blanco) é semelhante, mas inclui
itens que são pura demagogia: fala, por exemplo, em nacionalizar
o sistema bancário (28 dos trinta bancos que operam no país
são estrangeiros), mas, reservadamente, seus dirigentes admitem
que não é para valer. No máximo, vão introduzir
mecanismos de controle do crédito para que ele possa ir a atividades
produtivas. Falam, também, em reforma agrária, mas visando,
essencialmente, a aglutinar os minifúndios em cooperativas
e não em tocar as grandes propriedades, ainda que parte delas
esteja em mãos de estrangeiros que mal visitam o país
(6,18 por cento da superfície total pertence a estrangeiros
ou um de cada dezesseis hectares).
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Volta
aos quartéis é um processo lento e difícil |
Tantas sombras não impedem que o simples fato de desmilitarizar
o país abra luzes e dê motivos para a festa permanente
em que se viveu no país ao longo de toda a campanha eleitoral
e, particularmente, nesta semana final. A devolução
do poder aos civis permite, ao menos em tese, que se eliminem distorções
só cabíveis em regimes de força controlados pelas
Forças Armadas.
Dois exemplos: 1) de cada quarenta uruguaios, um veste uniforme, quando
o número de médicos é de um para 1.651 e o de
professores de um para 180; 2) segundo a revista "Gastos Sociais
e Militares no Mundo", o Uruguai tem 10,3 uniformizados para
cada mil habitantes, quando, no Brasil, a proporção
é de 2,1 por mil. E mesmo em El Salvador, em plena guerra,
ela não passa de 3,5 por mil.
Não será, entretanto, um processo fácil, ainda
mais que os militares, na véspera da eleição,
cuidaram de introduzir elementos que aumentem sua participação
na vida nacional: a Lei Orgânica do Exército, aprovada
terça-feira, dá autorização para a montagem
de empresas pelas Forças Armadas, com direito a explorar o
resultado de sua produção - o que equivale, mais ou
menos, à criação de "fabricaciones militares",
o complexo argentino que ajuda a entender a enraizada presença
dos militares daquele país na vida política, econômica
e institucional do país.
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Repressão
e desaparecidos |
E ficam, também, as sequelas da repressão maciça
praticada pelo regime militar. Tão maciça que o padre
jesuíta Luis Perez Aguirre, do Serviço Paz e Justiça,
calcula que um de cada 47 uruguaios sofreu, em carne própria,
a repressão, por meio de breves detenções, prisões
ou ao menos "batidas" policias em suas residências.
O regime carcerário foi - e, aliás, continua sendo -
tão duro que as entidades de direitos humanos calculam que
oitenta por cento dos presos (e chegou a haver o recorde mundial,
em relação à população, de 56 mil)
sofreram torturas. Oitenta pessoas, ainda segundo as mesmas entidades,
morreram nas prisões, algumas vítimas de mordidas dos
cães de guarda.
Por fim, há a questão trágica dos desaparecidos
(131, sendo 117 na Argentina, em operações conjuntas
dos Exércitos dos dois países). O número não
é tão impressionante quanto o da Argentina (25 a 30
mil),mas, nesse capítulo, o que conta não é a
quantidade mas o simples fato de se recorrer a um crime de lesa humanidade.
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Revisionismo
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Tudo isso faz supor que uma parte da sociedade colocará rapidamente
na mesa de discussão o tema do revisionismo (palavra que aqui
se prefere a revanchismo, sempre em moda no Brasil). As mães
de desaparecidos e o Serviço Paz e Justiça estão
propondo a criação de uma comissão parlamentar
de inquérito para investigar tudo o que se refere à
repressão e já estão levando à justiça
alguns dos casos de sequestros e/ou desaparição (um
deles é o de Lilian Celiberti e Universindo Diaz, sequestrados
em Porto Alegre, em ação conjunta do Exército
uruguaio e do Dops gaúcho. Hoje, Lilian e Universindo vivem
em liberdade e são candidatos - ela a vereadora e, ele, a deputado
- pelo Partido da Vitória do Povo, uma das treze agrupações
da Frente Ampla).
Os militares não estão dispostos a aceitar um eventual
julgamento pela justiça civil - o que lança novas sombras
sobre o futuro imediato.
Ainda assim, o sufoco foi tão grande que o simples fato de
se realizarem eleições razoavelmente abertas (quatro
mil políticos continuam proscritos, entre eles os líderes
do Partido Nacional, Ferreira Aldunate, e da Frenta Ampla, general
Liber Seregni) abriu um enorme espaço para as luzes. Por isso
mesmo, sem que se saiba quem vai ganhar, já está programada
uma festa monumental na noite de hoje na avenida 18 de Julio, a principal
da cidade.
Depois, os emigrados retornarão aos países onde estão
vivendo, as filas continuarão no consulado da Argentina, ainda
haverá desemprego e baixos salários - mas haverá
também o direito de protestar e gritar contra tudo isso e,
acima de tudo, o direito de ter esperança.
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