PAULO VI: "PAREM E REFLITAM"


Publicado na Folha de S. Paulo, sexta-feira, 24 de dezembro de 1965

Neste texto foi mantida a grafia original


Cidade do Vaticano, 23 (Folha)
- Na Mensagem de Natal que dirigiu hoje a todos os cristãos e a todos os homens do mundo, o Papa Paulo VI fez vibrante exortação "à paz entre os homens" e exaltou o recente Congresso Ecumenico, no qual a Igreja chamou para junto de si, humildemente, "irmãos cristãos de há muito afastados de sua comunhão".
"Homens irmãos —disse Paulo VI— ouvi deveras a mensagem de paz que o Natal traz de novo aos homens, que são sempre objeto de benevolencia divina. Examinai a direção de vossos passos, estais talvez de novo errando o caminho. Detende-vos e refleti. A verdadeira sabedoria está na paz."
Sublinhou o Santo Padre que a paz é o "primeiro e sumo bem de uma sociedade que supõe a justiça, a liberdade, a ordem e todos os outros bens da vida humana".
Sem aludir especificamente à guerra no Vietnã, que tem sido motivo de suas constantes preocupações, mas pensando na guerra que ensanguenta aquele país - e que hoje será suspensa por 24 horas atendendo a um apelo seu - disse Sua Santidade:
"Torna-se necessario construir a paz com a valente revisão das defeituosas ideologias do egoismo, da luta, da hegemonia. É preciso saber perdoar e recomeçar uma historia nova, onde as relações entre os homens não sejam reguladas pelo poderio e a força, nem apenas pelas vantagens economicas ou o grau de desenvolvimento, mas por um conceito superior de igualdade e solidariedade."
E mais adiante: "Ninguem deve começar a violar com fraudulentas insidias e com artificiosas desordens a tranquilidade dos outros. Ninguem deveria obrigar o vizinho (hoje todos somos vizinhos) a recorrer à defesa armada, e ninguem deveria fugir à negociação equitativa e leal para restabelecer a ordem e a amizade".
Paulo VI referiu-se tambem ao papel da Igreja no mundo moderno, a proposito da ultima constituição do Concilio: "As paginas dessa constituição levam de novo a Igreja ao meio da vida contemporanea, não para dominar a sociedade, nem para dificultar o autonomo e honesto desenvolvimento de suas atividades, mas para iluminá-la, sustentá-la e consolá-la", no destino transcendente de salvação e de felicidade "aberto aos homens por esse Cristo cujo humilde e glorioso nascimento celebramos".
A Mensagem de Paulo VI diz ainda que a Igreja, no recente Concilio, se 'encontrou a si mesma" e é hoje a suprema mensageira da paz entre os homens.

Paulo VI exorta à paz na mensagem de Natal

Cidade do Vaticano, 23 (Folha) - Em sua Mensagem de Natal, dirigida hoje a todos os cristãos e a todos os homens do mundo, o Papa Paulo VI lançou vibrante apelo à paz e recomendou que as relações entre os homens sejam norteadas por uma noção mais elevada de igualdade e solidariedade". Eis o texto da Mensagem:
"A todos os nossos filhos, a toda a nossa santa e amada Igreja Catolica, espalhada por todo o mundo e congregada na mesma comunhão de Fé e Caridade.
A todos os irmãos cristãos, aos que continuamente esperamos poder saudar participando perfeitamente da mesma admiravel comunhão.
A todos os homens da Terra. A vós dirigimos nossa saudação de Natal.

O historico encontro

Para vós vai tudo quanto de mais sincero, de mais cordial e de mais propicio pode brotar de nossa alma. Do mesmo modo que nossa felicitação ergue a voz para fazer-se ouvir, assim cresce tambem em intensidade e valor para vos ser grata e benefica. O Natal não permite mediocridade de sentimentos e nós deixamos que ele encha com seu espirito o nosso coração para derramar sobre vós não somente o humilde dom do afeto, mas tambem o imenso e inefavel do misterio de luz e de graça que ele mesmo encerra".
"Para entendermo-nos em seguida, nós vos diremos que consideramos o Natal como o encontro, o grande encontro, o historico encontro, o decisivo encontro de Deus, com a humanidade. Quem tem fé o sabe, e deve alegrar-se. Os demais que ouçam e reflitam.
Ainda ressoam dentro de nós as vozes comovedoras da Sagrada Liturgia do Advento, que precisamente nos apresentam o Natal como o ponto de chegada dos dois longos e bem diversos itinerarios que se encontram: o itinerario misterioso de Deus que desce os degraus abismais de sua transcendencia, sai da nuvem cada vez mais luminosa das profecias, aproxima-se de um mundo novo, sobrenatural, de nossa terra, de nossa historia, e toca, por fim, na inesperada humildade de Belem e na candida pureza de Maria, e em nossa aura terrena se faz homem: é Cristo. O outro itinerario, o nosso, tortuoso e trabalhoso, sem uma meta em si precisa, mas orientado mais tarde para uma vaga esperança que se esfuma, uma esperança superior a nossas forças naturais, a esperança de chegar a Deus, a esperança de descobri-lo no homem, a esperança de encontrá-lo, como se encontra numa estrada um peregrino viajante, um amigo que se conhece, um irmão do proprio sangue, um mestre da propria lingua, um libertador que pode fazer tudo, um salvador".

O poder de Deus

"Ouvi a voz da liturgia: "Olhando ao longe, eis aqui que vejo o poder de Deus que vem e uma nuvem que cobre toda a terra. Saí ao seu encontro e dizei-lhe: Anunciai-nos se sereis vós precisamente que deveis reinar..." Quantas coisas poderíamos dizer sobre estes itinerarios historicos e espirituais, cujas marcas nos deixaram o Antigo Testamento e quantas tambem sobre a modalidade com que o maravilhoso encontro se realiza. Ainda espiritualmente teriamos que começar por descrever as cenas do evangelho e comentar até o infinito, seu significado, sua exemplaridade, sua linguagem definitiva e seu perene e universal valor.
Todos sabemos que o encontro de Deus com a humanidade não foi um simples contato, externo e transitorio, mas uma união vital, uma união estavel, uma união da natureza divina com a natureza humana, uma união substancial, hipostatica como a chamaram os pais de nossa fé, uma união com a qual o verbo de Deus, em sua infinita e eterna pessoa, fez sua a natureza humana, concebida no seio purissimo da Virgem Maria, tornando-se deste modo o Homem Jesus Cristo, Deus e Verdadeiro Homem que, como Homem, Nação, viveu, ensinou, sofreu e ressuscitou, sem deixar de ser o Deus que era, mas tornando-se o Homem que nós conhecemos e que na realidade somos.
Pois bem: a recordação deste encontro é o Natal. Mais ainda: deve ser a continuação deste encontro.

O concilio ecumenico

Este nosso pensamento se corrobora com o reflexo que do encontro em Cristo entre Deus e a humanidade nos parece vislumbrar no acontecimento celebrado nestes ultimos anos e recentemente encerrado: referimo-nos ao Concilio Ecumenico Vaticano Segundo. Tambem o Concilio foi um encontro. Um duplo encontro: da Igreja consigo mesma e da igreja com o mundo".
"No Concilio, efetivamente, levou-se a cabo o encontro da Igreja consigo mesma. Grande e proveitoso encontro em verdade. Poderiamos fixar nossa atenção no quadro exterior do acontecimento: não foi coisa de pequeno valor que todos os pastores da grande familia catolica se encontrassem, se conhecessem, e finalmente se amassem, na realidade não só espiritual, mas tambem na experimental da visão, da saudação, da conversação, da oração comunitaria e da caridade mais viva. Que coisa mais cristã que este encontro? Mas agora nosso pensamento cala mais fundo no significado e na eficiencia do Concilio: a Igreja, diziamos, encontrou-se nele consigo mesma: sua propria fé, sua doutrina, sua firmeza, sua missão, sua energia apostolica e missionaria, sua riqueza de sabedoria e de graça, sua capacidade de tirar de suas inesgotaveis reservas interiores, tesouros novos, sua ansia de entender, de servir e de salvar o mundo.
A Igreja se encontrou nesta introspeção, não somente consigo mesma, mas com Cristo: com Cristo, a quem leva consigo, despertou o compromisso de fidelidade à sua palavra e ao seu desejo de penetrá-la toda e como embriagá-la e exaltá-la, sentiu que o espirito de Cristo refluia em si, que aflorava de novo a seus labios a mensagem evangelica, a necessidade de renovar seu anuncio a si e a todos os homens. A Igreja se rejuvenesceu. Sentiu que renascia. Recordo-vos, irmãos, este maravilhoso e novo encontro com Cristo que o Concilio procurou. Recordemo-lo: a Igreja pode hoje celebrar outra vez o retorno de seu Natal, não cedendo ao mal-entendido "aggionarmento" que já nosso venerado predecessor João XXIII deplorava, não tratando de absorver o "espirito do tempo", ou depositando sua confiança nas enfermas ideologias do mundo profano, ou recebendo o influxo de uma equivoca mentalidade por um pretenso fatalismo historico, e nem sequer contentando-se com acrescentar algum retoque pratico a algumas de suas normas canonicas secundarias, mas tratando de encontrar a Cristo em si mesma, de encontrar-se com ele mais conscientemente, e, em seguida, o encontro da Igreja com o mundo.
Este aspecto do Concilio Ecumenico foi observado por todos. A Igreja, de certo modo, saiu de si mesma para encontrar-se com os homens de nosso tempo, com as novidades enormes e assombrosas do mundo moderno e com as crescentes necessidades de grande parte da população mundial, como a fome de alimento fisico e de alimento espiritual. Revestiu-se de uma caridade pastoral mais expansiva: e não poderia agir de outro modo".

Missão sem limite

"A figura evangelica do pastor, que procura, que caminha, que se fadiga por dar com o rastro da ovelha fugida, dominou o Concilio. A consciencia de que a humanidade, a humanidade inteira, simbolizada com arcadica simplicidade pela ovelha errante, e sua, e da Igreja, encheu o espirito do Concilio:
"Sua, sim, ou seja da Igreja, a humanidade por um mandato divino universal.
A Igreja entendeu uma vez mais, quão tremenda é a lei que comporta o nome que autenticamente a distingue: catolica. Quer dizer que sua missão, sua responsabilidade, seu coração não tem limites.
"Sua, por isto, deve chamar a Igreja à humanidade: por dever, que não conhece fadiga e desafia heroica, singelamente, qualquer dificuldade. Sua por direito de amor, sem que a Igreja —por estranha, refrataria e hostil que seja a humanidade— possa eximir-se de amá-la, de amar a esta humanidade, pela qual Cristo deu seu sangue.
"Sua tambem, por um certo parentesco historico. Não engendrou a Igreja em grande parte a civilização que o mundo tem agora por verdadeira e que faz propria? Sua, ainda, por uma misteriosa esperança que todos os fenomenos mais notaveis da historia contemporanea parecem confirmar: tais como a busca da verdade e da liberdade, como o caminho obrigatorio para a unidade, como a necessidade de fraternidade e de paz, bens estes que somente à luz do evangelho adquirem plenitude de vida.
"A Igreja conciliar, portanto, está à procura de encontros. Tão zelosa de sua disciplina do misterio, ela começou a convidar as testemunhas e difusores das informações sociais e a deixá-los ver e falar, a fornecer-lhes noticias.

O tecido rasgado

Mas, ainda mais: a Igreja Conciliar realizou um encontro que há seculos não ocorria e parecia inverossimil que se pudesse realizar: chamou para junto de si, humildemente, cordialmente, a irmãos cristãos de há muito afastados de sua comunhão, para recompor, pelo menos em sua trama humana e elementar, um tecido rasgado: o do conhecimento reciproco, do respeito, da confiança, o de uma inicial conversação, e alem dos povos, o mundo. A Igreja deve encontrar-se com o mundo.

A viagem à ONU

Não podemos esquecer neste momento, nossa viagem a Nova York, convidado a falar na Assembléia das Nações Unidas e não podemos deixar de pensar no extraordinario encontro de nossas humilde pessoa com os representantes dos povos ali reunidos. Um encontro que nos parece historico e simbolico, e que certamente exprimia uma intenção capital de Concilio: levar aos povos uma mensagem de amizade e de paz. Recordamos aquele momento por sua maravilhosa plenitude, e queremos aproveitar a oportunidade desta festa para repetir de novo a quem ali nos convidou e acolheu tão amavelmente, nosso atento reconhecimento para renovar àquela Assembléia e a cada um de seus membros nossos votos de paz e para saudar de novo o povo dos Estados Unidos, que tivemos então a honra e a gloria de encontrar.
E eis aqui o primeiro aspecto que assume a presença da Igreja que vai em busca dos homens, o de mensageira da paz. Tambem esse fato resulta da natureza das coisas. Não é a paz a primeira saudação que pode pronunciar quem age em nome de Cristo, como fez o ressuscitado: "a paz seja convosco"?
E não é a primeira intervenção que a Igreja, colocada em meio ao mundo, pode desenvolver, o de colocar a paz, exortar a paz, educar para a paz? A paz é, efetivamente, o primeiro e sumo bem de uma sociedade que supõe a justiça, a liberdade, a ordem e torna possivel todos os outros bens da vida humana. Então, em seguida, nesse mesmo momento, faremos de novo a apologia da paz. Fá-la-emos, porque não só a paz é um bem excelente, como tambem porque hoje é um bem em perigo. Aos novos propositos, inspirados pelas tragicas experiencias da ultima guerra, vão substituindo velhas e arraigadas tendencias nacionalistas ou novas ideologias de subversão e de predominio das armas, cada vez pais poderosas e espantosas, que se transformam, pode-se dizer, na garantia unica de uma paz incerta e precaria, à qual falta o sentido de uma fraternidade humana e da justiça entre os povos.

Mensagem da paz

Homens irmãos, ouvi deveras a mensagem da paz que o Natal traz de novo aos homens, que são sempre objeto da benevolencia divina. Examinai a direção de vossos passos, estais talvez de novo errando o caminho. Detei-vos e refleti. A verdadeira sabedoria está na paz e a verdadeira paz está na aliança do amor. Ninguem deve circunscrever o amor à paz aos limites do proprio interesse e da propria ambição. Ninguem deve começar a violar com fraudulentas insídias e com artificiosas desordens a tranquilidade dos outros. Ninguem deveria obrigar o vizinho (hoje todos somos vizinhos) a recorrer à defesa armada, e ninguem deveria fugir à negociação equitativa e leal para restabelecer a ordem e a amizade.
Torna-se necessario construir a paz com a valente revisão das defeituosas ideologias do egoismo, da luta, da hegemonia. É preciso saber perdoar e recomeçar uma historia nova, onde as relações entre os homens não sejam regulada pelo poderio e a força, nem apenas pelas vantagens economicas ou o grau de desenvolvimento civil, mas por um conceito superior de igualdade e solidariedade, que, em ultima analise, somente a paternidade divina —revelada por Cristo— demonstra logicas, faceis e felizes.
Dizemos estas grandes coisas com acento sincero e humilde. Porque, irmãos, este é outro aspecto do encontro que a Igreja do Concilio oferece ao mundo. Ela se sabe portadora de um tesouro de infinito valor de verdade e salvação, que a impele a sair ao vosso encontro mas olhai: ela vem a vós sem orgulho algum, sem pretender para si nenhum privilegio. Ela não se coloca em oposição, mas reconhece de boa-vontade, incentiva, abençoa os grandes valores de vossa cultura e de vosso progresso. Ela não tem ambição alguma, nem de dominio, nem de riqueza. Pode, sim, uma coisa, é a liberdade para sua fé interior e a liberdade de anunciá-la externamente. Mas ela não se impõe a ninguem, mas antes quer que a responsabilidade suprema e a eleição decisiva da consciencia seja respeitada e defendida mesmo em relação à verdade religiosa.
"O encontro da Igreja com o mundo atual foi descrito em páginas admiraveis da ultima constituição do Concilio: toda pessoa inteligente, toda alma honrada, deve conhecer essas paginas. Elas levam, sim, de novo a Igreja ao meio da vida contemporanea, mas não para dominar a sociedade, nem para dificultar o autonomo e honesto desenvolvimento de sua atividade, mas para iluminá-la, sustentá-la e consolá-la. Essas paginas, assim o pensamos, assinalam o ponto de encontro entre Cristo e o homem moderno, e constituem a mensagem de Natal deste ano de graça ao mundo contemporaneo: recordamo-las aqui para provar o conteudo de nossa felicitação que quer ser, não algo apenas verbal e sentimental, mas um oferecimento cristão de positivo e desinteressado serviço em prol, da paz e da prosperidade da humanidade e em prol de sua esperança no destino transcendente de salvação e de felicidade, aberto aos homens por esse Cristo, cujo humilde e glorioso nascimento celebramos.
Irmãos, filhos, homens todos de boa vontade em nome dele, Cristo Nosso Senhor, fique convosco esta nossa felicitação de Natal, e com ela nossa benção apostolica".



© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.