70 DIAS DE DRAMA NOS ANDES

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 23 de dezembro de 1972

Neste texto foi mantida a grafia original

Setenta dias depois de ter caido na cordilheira dos Andes, batendo no cume de uma montanha e deslizando encosta abaixo, até o fundo de um desfiladeiro, a 4 mil metros de altura, o que amorteceu seu impacto, foi descoberto na madrugada de ontem com 16 sobreviventes o bimotor "Fairchild", da Força Aerea Uruguaia, desaparecido desde 13 de outubro, com 40 passageiros e cinco tripulantes.
A descoberta deveu-se a audácia e a coragem de dois jovens, Roberto Canessa Urta, de 21 anos e Fernando Parrado Dolgay, de 19, integrantes da equipe de rugby "Old Christian", de Montevidéu, que jogaria em Santiago. Varios jogadores levavam familiares, entre eles Fernando, que no acidente, perdeu a mãe, Xenia Dolgar e sua unica irmã, Susana.
Os dois jovens deixaram o aparelho sinistrado há dez dias e lançaram-se cordilheira abaixo, em busca de socorro. Anteontem chegaram a um local inacessível, cortado por um rio. Ali ficaram até que na outra margem, surgiu o tropeiro Sergio Catalan, de 44 anos. Escreveram um bilhete em papel-carta, amarraram-no numa pedra e lançaram-na ao tropeiro. Este caminhou cinco horas, até San Fernando, e entregou a mensagem ao delegado local.
"Procedemos de um avião que caiu na montanha. Somos uruguaios. Há dias que estamos caminhando. No avião ficaram 14 pessoas feridas," dizia o bilhete.
Começava o dramatico resgate, a cargo de helicopteros do Serviço de Salvamento do Chile.
Horas depois, Fernando Parrado e Roberto Canessa conduziam um dos helicopteros ao local do desastre. Oito sobreviventes foram retirados ontem á tarde, depois de uma arriscada operação aerotransportada, feita pelos helicopteros sob uma tempestade de neve.
Hoje, serão retirados os outros oito.
Os dois jovens, muito enfraquecidos e subnutridos (alimentaram-se somente de ervas e de agua derretida da neve), disseram que o piloto e o co-piloto morreram instantaneamente, assim como mais oito ou nove passageiros. Trinta e seis sobreviventes inicialmente, mas 20 morreram dias depois sob a neve, após uma terrivel tormenta.
A região onde caiu o "Fairchild", está a 70 km da aldeia de San Fernando e a 140 km ao sul de Santiago. Denominada "El Perejil", é totalmente inospita, açoitada por tempestades de neve frequentes e de longa duração.
No Uruguai, a noticia causou enorme emoção. O pai de Roberto, ainda ontem, sobrevoava os Andes num avião particular, a procura dos restos do aparelho.

A narrativa da tragedia aerea dos Andes

SAN FERNANDO, Chile, "Voavamos quase as cegas. De repente vi os picos a poucos metros da asa. Disse a mim mesmo: vamos bater. Senti o choque e esperei a morte".
Mas Fernando Canessa não morreu, nem quando o avião em que viajava caiu no alto da nevada Cordilheira dos Andes, ha 70 dias, nem durante sua permanencia ali, com outros companheiros, comendo ervas, transformando neve em agua e dormindo entorpecidos na fuselagem do avião semidestruido.
O jovem jogador de rugby uruguaio, debilitado, com sua roupa rasgada, barbudo, mas "feliz e dando graças aos céus", repousava ontem no hospital de San Fernando, a 140 quilometros de Santiago, para onde foi transportado com outros sete sobreviventes.
Outros oito sobreviventes da incrivel odisseia ainda permanecem no lugar do acidente em territorio argentino, perto da fronteira, e serão resgatados hoje, sabado.
Canessa conversou ontem a noite com o jornalista Raul Pena, do jornal "La Tercera", de Santiago.

Desespero

"Senti o choque e esperei a morte... Mas a morte não veio. Senti fortissimas sacudidas e depois o avião deslisou e deslisou muitos metros, em meio do estrondo e da gritaria dos passageiros. Foi algo terrível. Então, o aparelho parou. Olhei para o meu lado e ali estava meu amigo Fernando (Parrado). Perguntei-lhe se estava bem e respondeu-me que sim. Eu tinha apenas escoriações e nunca perdi os sentidos.
"O companheiro que estava a minha direita estava morto".
Canessa andou dez dias, desde o lugar onde estava o avião "sempre para o oeste, para o Chile, onde foi localizado por um tropeiro, dando inicio ao salvamento.
Canessa acrescenta que o avião perdeu as duas asas e ficou quase totalmente destruido, exceto uma parte da cabinas dos passageiros.

A 2ª Tragedia

"Os primeiros minutos foram terriveis. Vinte e cinco de nos pudemos sair e começamos a socorrer os companheiros, alguns sãos, outros feridos. Alguns já não respiravam. Trabalhamos desesperados e a noite caimos fatigados..."
Vinte e quatro pessoas sobreviveram e decidiram organizar-se para enfrentar a emergencia, "pois esperavamos o resgate".
Canessa disse que um dia, que não especificou, estavam descansando em seu acampamento improvisado "quando ouviu um ruido terrivel e imediatamente uma avalanche de neve nos sepultou. Fiquei coberto inteiramente. Não podia respirar, desmaiara. Novamente senti a morte... Pude apenas tirar as mãos... Então alguem, me descobriu o rosto. Os que se salvaram não viam meu corpo coberto de neve e me pisavam e isso era muito desagradável. Mas eu, que já sentia estar morto, sentia-me um fenomeno".

Iniciativa

Canessa declarou que chocolate e outros alimentos que levavam nas bagagens foram a base de sua sobrevivência.
Obtinham a agua quando o sol derretia a neve.
Os forros dos assentos foram convertidos em mantos; os assentos em colchões para os feridos. Tudo o que era utilizavel foi empregado para tapar os buracos da fuselagem e resguardarem-se do frio intenso.
"Todos os que podiam, trabalhavam. Os demais rezavam. Unia-nos a fé".
"Tentamos procurar nos distrair e afastar de nossas mentes o tragico momento que viviamos".
Com uma antena e as baterias do avião, "conseguimos ouvir um rádio e, no oitavo dia, escutamos a triste noticia de que a busca fora abandonada", declarou.
"Mas sentimos que tinhamos que prosseguir e abrigavamos a esperança de não estarmos sozinhos na cordilheira e que quando o tempo melhorasse, poderiamos descer", acrescentou

O resgate

Dois helicopteros da Força Aerea chilena resgataram, ontem, os oito primeiro protagonistas da inacreditavel odisseia, durante a qual permaneceram no alto da cordilheira nevada, abrigados em seu avião semi-destruido, mas ainda com luz eletrica e acompanhando, desesperados, atraves do radio, as alternativas da busca de que eram alvo.
Cesar Charlone, encarregado de negocios do Uruguai, conversou com eles. Disse que eles lhe contaram que o acidente ocorreu quando uma asa do avião tocou um pico, precipitando-se de encontro ao solo.
Charlone disse que, de acordo com o relato dos sobreviventes, o piloto do avião conseguiu planar. Isso permitiu que o aparelho desse uma especie de "patinada" sobre a neve macia, o que fez com que algumas pessoas sobrevivessem.
Acrescentou que a queda não foi de todo irregular.

O radio funciona

Os sobreviventes fizeram um fundo mutuo, com o pouco alimento que levavam em sua bagagem e organizaram um metodo de vida para tentar sair da situação de emergencia em que se encontravam.
As baterias do avião ficaram intactas após a queda.
Os sobreviventes conseguiram fazer funcionar um receptor de radio, com o qual ouviam transmissões de emissoras chilenas e, inclusive, de Montevideu.
Puderam seguir, assim, as alternativas das tres buscas de que foram alvo, durante um periodo de mais de dois meses. Ficaram sabendo quando os trabalhos foram suspensos pela primeira vez, alguns dias depois da queda, devido ao mau tempo então reinante.
Com alegria, inteiraram-se do reinicio das buscas.
Em três oportunidades, viram passar aviões de busca e fizeram desesperados sinais, mas sem resultado: não foram avistados.
Ontem, tomaram conhecimento, atraves do radio, que dois de seus companheiros - Roberto Canessa e Fernando Parrada - tinham sido finalmente resgatados e que, no dia seguinte, eles tambem o seriam.
Canessa e Parrada sairam em busca de ajuda há mais de dez dias e caminharam dezenas de quilometros de cordilheira, até chegar perto do primeiro lugar civilizado, onde foram resgatados por uma patrulha policial.
Apesar do cansaço, falta de alimentação, e estado físico algo debilitado, tanto Canessa como Parrada integram-se aos grupos de resgate, guiando os dois helicopteros da Força Aerea chilena, ontem de manhã, até o local do acidente.

Opinião médica

Os medicos consideraram um milagre que os 16 passageiros tenham sobrevivido, o que atribuiram ao fato dos mesmos não terem se desidratado, embora muitos desses perdessem 15 quilos ou mais de peso.
"Estes homens têm, a pele sobre os ossos" - disse o encarregado de negocios uruguaio, aos jornalistas.
Os medicos insistiram que os sobreviventes necessitam de um repouso absoluto de pelo menos, 24 horas.
Charlone afirmou que os medicos consideram que, em termos gerais, os sobreviventes estão bem e se recuperando rapidamente.
Os psiquiatras que participam do atendimento aos sobreviventes proibiram, totalmente, que os mesmos sejam entrevistados pelos jornalistas.
As más condições do tempo impediram que os outros oito sobreviventes fossem resgatado. Contudo, eles receberam roupa, alimentos e medicamentos, suficientes para aguardarem o resgate, que deverá ser feito hoje.
Segundo Charlone, a condição física dos oito não oferece risco algum par que passem mais uma noite no local do acidente.
Dois helicopteros militares decolarão, tão logo as condições climaticas o permitiam para completar o salvamento.
Charlone descreveu a odisseia e o fato que houvessem sobreviventes como um milagre no mundo."

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