O CLUBE DOS CEM KILOS

Uma reportagem entre os homens gordos de Paris

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 19 de maio de 1935

Neste texto foi mantida a grafia original

"Café des Cent Kilos.
L'rendez-vous des costauds,
A la plac'Sant Ambroise,
Dans l'quartier "populo"...

É esse o Hymno dos Homens Gordos, que se canta com a musica da conhecida marcha "Os rapazes da Marinha", no "Clube dos Cem Kilos" em Paris, composto de quarenta cidadãos bem fornidos, dos quaes o "mais magro" pesa cento e quinze kilos...

"A fin de rivaliser
les rois de l'obesité,
Nous nous entretons
Sur les point's ou les crampons..."

Estamos no Clube dos "reis da obesidade", como elles se chamam no seu hymno official. Mas não supponham que nos encontramos entre personagens de circo. Não. Os "reis da obesidade são operarios, commerciantes, funccionarios publicos, vendedores ambulantes... homens, enfim, que ganham a sua vida trabalhando, e não exhibindo a sua adiposidade.
Para que os nossos leitores tenham uma verdadeira idéia do caracter desse clube, vamos reproduzir os tres primeiros artigos dos seus estatutos. Porque se trata, realmente, de uma sociedade constituida com todos os requisitos legaes, tendo sido fundada em 1896 e está inscripta nos registros da Chefia de Policia parisiense de accôrdo com o que determina a lei de 1901. Réza o art. 1°:
"A "Cem Kilos", sociedade recreativa e esportiva tem por fim manter entre seus socios, as melhores relações de amizade, praticar esportes, fazer excursões campestres, e realizar banquetes e festas familiares.
Art. 2° - A sociedade compõem-se de: Socios activos, Socios honorarios e Socios benemeritos".
A séde social dos Cem Kilos está situada num café popular na rua Folie Mericourt, 2 e, no momento em que chego ahi, os socios festejam ruidosamente os prodigios de agilidade realizados por um delles durante uma partida de "push-ball" jogada, ha pouco, com uma bola de um metro e meio de diametro.

O que se come num banquete dos cem kilos

Já se disse muitas vezes, mas eu torno a repetir, que o homem gordo é jovial e o magro é taciturno. Quanto a isso, já não tenho dúvidas, depois que assisti ao banquete dos Cem Kilos. Não se pense, comtudo, que essa alegria seja exaggerada, nem que se pareça com algazarra. Os Cem Kilos falam com moderação e cantam em surdina., as vozes de alguns delles chegam a surpreender pela agudeza do timbre, em absoluto desacordo com esses corpos de elephantes.
Vem o primeiro prato: salsichas. Chamo o garçon e pergunto quantos kilos cabe a cada commensal. E sou informado de que ali não se come aos kilos. Cada mastodonte daquelles recebe, nesse primeiro prato, especial de "hor d'oeuvre", oito metros de salsichas. Oito, nem mais, nem menos.
O pão é consumido em cestas! O vinho é servido aos litros. Tres leitões. E galinhas! Ovos! Massas!.
Santo Deus! Não estarão saciados ainda?
Parece que não porque, dahi a pouco, surge um pastel - que digo? - um pastel, com um metro de diametro!
Tento approximar-me desses homemzarrões mas não tenho coragem. Na verdade, sinto-me acanhado, pois os meus aváros 60 kilos dariam logo na vista. Mas o dono do café auxilia-me, apresentando-me ao presidente do Clube.
Monsieur Colombs é um cavalheiro distincto. Pésa 115 kilos que só notam em sua elevada estatura, pois é o "mais magro" de todos.
- Nosso Clube - diz-nos mr. Colombs - brigou com a tristeza. O sr. deve ter notado isso. Nós somos alegres por temperamento pois, além do conceito risonho da vida, praticamos o esporte, por necessidade e por gosto.
Com effeito; o Clube dos Cem Kilos conta entre seus membros, com capeões de natação, de futebol, de corrida a pé...
- O numero de socios - prosegue mr. Colombs - não póde exceder de quarenta e os pequenos gastos da sociedade são cobertos por uma quota mensal de cinco francos, que pagam os socios activos, e de vinte e cinco pagos e pelos socios benemeritos.
Arrisco uma observação:
- Deve ser difficil chegar a ser gordo nestes tempos de crise...
- Por que?
- Sim... Os senhores precisam alimentar-se muito bem...
- Oh! não... A alimentação de um "cem kilos" não se differencia da de um homem normal. Hoje, naturalmente, nos excedemos. Trata-se de uma festa. É verdade que, entre nós, ha quem seja capaz de comer 24 ovos cosidos como "aperitivo". Mas creia que isso é uma excepção.
A "excepção" é o sr. Sutty, da equipe de futebol do Clube. O sr. Sutty, nos seus dias de gloria, pesava 200 kilos. Hoje, porém, "emmagreceu" muito: está pensando "apenas" 166...

Os homens gordos e o amor...

As mulheres, as mocinhas principalmente, estabeleceram como padrão de belleza masculina os homens altos, esbeltos, com bigodinhos fataes e olhares languidos. Esse ideal, naturalmente, está longe de assemelhar-se com os socios do Clube dos Cem Kilos. O que, logicamente, nos levaria à conclusão de que os "cem kilos" estão definitivamente derrotados parta os prelios de amor.
Isso, todavia, seria uma conclusão erronea.
Os homens gordos não se consideram, evidentemente, galãs perigosos, nem vampiros sentimentaes. Mas, quando é preciso amar, elles tambem o sabem, que diabo!
Mr. Sutty, a uma das mesas, conta um caso de amor. Os casos de amor parisienses são sempre condimentados à maneira de Ovidio: "cum grano salis". E, às vezes , ao sal, ajunta-se uma pequena dóse de pimenta...
Os homens gordos ouvem mr. Sutty e riem, riem...
- Mas - interrogo - qual é a attitude dos homens gordos diante do Amor?
- Oh! - responde-me um delles - dessas coisas não se deve falar. Eu, por exemplo...
E conta-me, ao ouvido, uma historia que quasi me faz corar!
Mas mr. Sutty accrescenta:
- Saiba que quasi nós todos somos casados. Logo...
Sim. Mas indago:
- E quando se casaram? Eram gordos assim?
- De certo. O Sutty casou-se com 199 kilos...
Em verdade, a natureza foi sábia: ha gostos para todos...

Outra vez o Hymno

Levanto-me. Os homens gordos me rodeiam, pondo em relevo inverso a minha desoladora magreza. De repente, assalta-me um perigo imaginario: E se, nesta agglomeração, um "cem kilos" me pisa no pé? Há, em torno de mim, assustadoramente, 4.850 kilos - que é o peso total do Clube!
Procuro a porta, cautelosamente. Despeço-me. Saio. Respiro. E, da rua, ouço o hymno que esruge novamente:

"Café des Cents Kilos,
L'rendez-vous des costauds..."


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