REBELDES SE RENDEM NA ARGENTINA


Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 19 de janeiro de 1988

CLÓVIS ROSSI
Enviado especial a Buenos Aires

O ex-tenente-coronel do Exército argentino, Aldo Rico, 43, que estava rebelado desde a manhã de domingo, rendeu-se às 18h de ontem (19h em Brasília), horas depois de uma troca de tiros entre as tropas legalistas e o grupo de oficiais amotinados que havia tomado o 4° Regimento de Infantaria de Monte Caseros (junto à fronteira com o Brasil e o Uruguai).
A rendição de Rico - imediatamente levado de helicóptero para a 3ª Brigada de Infantaria, em Curuzu Cuatia, a 68 km de Monte Caseros - não é suficiente para desfazer o mal-estar nas Forças Armadas argentinas, evidenciado pelo pipocar de rebeliões isoladas durante as 48 horas em que o grupo de Rico controlou o quartel de Monte Caseros.
Houve motins em pelo menos quatro guarnições militares, em diferentes pontos da Argentina, mas a ação espetacular ocorreu na capital, Buenos Aires: um grupo de aproximadamente 20 pessoas, com os rostos pintados de negro, ocupou o segundo aeroporto da cidade (o aeroporto metropolitano Jorge Newbery), forçando a suspensão das operações aéreas, durante todo o dia. No final da tarde, o aeroporto foi desocupado. A maioria dos rebeldes conseguiu fugir sem ser molestada, apesar do aparato mobilizado pelo governo.
Além do mal-estar, a rebelião de Aldo Rico deixou três feridos: um tenente e um sargento cujo veículo militar passou, no domingo, sobre uma mina antitanque colocada pelos rebeldes nas imediações de Monte Caseros, e uma pessoa não identificada, vítima do tiroteio da tarde de ontem. O número de feridos foi fornecido às 20h15 de ontem, hora local, pelo ministro da Defesa, Horácio Jaunarena, quando os boatos espalhados por Buenos Aires falavam em um número muito superior de vítimas.
A rendição de Rico, a segunda em nove meses, pois ele chefiou também a chamada rebelião da Semana Santa, em 87, é uma vitória para o chefe do Estado-Maior do Exército, general Jose Dante Caridi, cujo afastamento era uma das exigências do grupo rebelde. Mas é uma vitória parcial, porque, por trás dessa reivindicação, está outra, bem mais complexa: os amotinados - com apoio tático da maior parte da oficialidade - querem o reconhecimento de que os crimes cometidos durante a ditadura militar (1976/1983) não foram crimes comuns, mas sim uma vitória militar contra os "inimigos da pátria".

Rico se rende; Exército argentino domina focos de rebelião

CLÓVIS ROSSI
Enviado especial a Buenos Aires

O ex-tenente-coronel Aldo Rico, 43 rendeu-se às 18h de ontem (horal local, 19h em Brasília) ao coronel Juan Colotti, integrante de uma brigada de infantaria deslocada de Bahia Blanca, a 2 mil km de Monte Caseros, a localidade do norte argentino, na fronteira com Brasil e Uruguai, em que o líder militar rebelado instalou seu quartel-general, Rico foi levado, em um helicóptero "Puma" para o comando da 3ª Brigada de Infantaria, em Curuzú Cuatiá, onde as tropas legalistas montaram o comando das operações destinadas a obter a rendição de Rico e do grupo de 161 oficiais que o acompanhava, no que foi chamado, na Argentina, de "a rebelião dos carapintadas", devido ao fato de os militares rebelados participarem das ações com a face pintada de preto e em uniforme de combate.
Os rebeldes devem ser levados a Buenos Aires, onde aguardarão julgamento pela Justiça Militar.
Apesar da prontidão da Marinha e da Aeronáutica, não houve intervenção direta dos bombardeiros, mas pelo menos quatro aviões fizeram vôos rasantes sobre Monte Caseros.

Focos

A rendição de Rico introduz um dado adicional de confusão ao panorama militar da Argentina. Afinal, na véspera, no seu tom arrogante de sempre, o ex-tenente-coronel havia dito que "soldado não negocia, soldado combate". Ontem , entretanto tentou negociar um prazo de seis horas para atender à ordem de rendição, não foi ouvido e rendeu-se da mesma forma.
Mais ainda: a rendição de Rico ocorreu no momento em que pipocavam pelo país focos isolados de rebelião, a saber:
1. O mais grave estava instalado em Tucuman, província do noroeste argentino, onde o tenente-coronel Angél Daniel León tomou, no domingo, o 19° Regimento de Infantaria, com a convivência ou omissão do sub-comandante da guarnição, o major Walter Jaime. Até 19h30 de ontem (hora de Brasília), não havia confirmação oficial de que o tenente-coronel León havia se rendido. Segundo informações de militares legalistas na cidade, os cerca de 300 homens sob o comando de León depuseram as armas - metralhadoras - no final da tarde, mas o tenente-coronel não aceitava ser levado preso pelo coronel Carlos Faring, que comandava 300 homens, equipados com canhões de 20 mm, cinco tanques e 16 jipes armados com metralhadoras. Às 21h (de Brasília), o ministro da Defesa, Horacio Jaunarena, anunciou a detenção de León.
2. Uma tentativa de motim ocorreu no grupo de artilharia de defesa antiaérea 601, na província de San Luis, a oeste de Buenos Aires. O tenente José Foncueva e cerca de 120 oficiais e suboficiais declararam apoiar a rebelião de Aldo Rico, mas foram dominados por efeitos legalistas.
3. Também na província de San Juan houve o que o Exército designou oficialmente como "atos de indisciplina" no Regimento de Infantaria de Montanha 22. Dez homens foram presos e colocados à disposição da Justiça Militar.
4. Na manhã de ontem, a partir de 6h30, um grupo de aproximadamente vinte homens, com rostos pintados de negro, ocupou o aeroporto metropolitano Jorge Newbery, próximo ao centro de Buenos Aires, obrigando ao cancelamento de todos os vôos previstos para ontem. O aeroporto metropolitano, mais conhecido como aeroparque, serve aos vôos internos e a um pequenos números de vôos internacionais, para os países limitrofes, que tiveram, todos, de ser deslocados para Ezeiza, o aeroporto internacional, a cerca de 25 km do centro da capital argentina. Os vôos no aeroporto só serão reiniciados hoje. Houve algumas prisões, mas a maioria dos ocupantes do aeroporto fugiu sem ser identificada, pelo menos até o início da noite de ontem. a única pessoa identificada não é um militar, mas o civil Carlos Castrogiavanni, militante de extrema direita.
Ao contrário do que acontecera na chamada rebelião da Semana Santa do ano passado, também protagonizada por Rico, desta vez o desfecho do motim não foi incruento: um tenente e um sargento ficaram feridos, com alguma gravidade, quando o veículo que utilizavam passou sobre uma mina antitanque colocada pelos amotinados nas imediações de Monte Caseros. Os dois feridos foram removidos para o hospital militar central, em Buenos Aires, e um deles corre o risco de ter a perna amputada.
Houve, ainda, danos a instalações físicas: de acordo com as informações dadas pelo prefeito de Monte Caseros, os rebeldes dinamitaram uma ponte e causaram danos em uma segunda ponte que dá acesso à cidade. Já o prefeito de Curuzú Cuatiá, QG das tropas legalistas, a 68 km de Monte Caseros, contou a emissoras de Buenos Aires que a população local falava em 50 ou 60 mortos nos supostos combates entre amotinados e legalistas, mas ele próprio desqualificava a versão, alegando que o que pudera ver e ouvir não autorizava, em hipótese alguma, a existência de mortos. Às 21h30 (hora de Brasília), Jaunarema disse que houve um só ferido antes da rendição dos rebeldes, além dos dois feridos com a explosão da mina.
Pouco depois das 21h locais (22h em Brasília), Alfonsin afirmou, em entrevista coletiva, que o país "enfrentou um problema sério. Mas a democracia está consolidada e pusemos outra vez a casa em ordem".

Rendição não encerra a crise

Do enviado especial a Buenos Aires

A rendição de Aldo Rico não é suficiente para afastar os velhos fantasmas que rondam uma Argentina assolada pela tradição de golpismo militar. Afinal, nas cerca de 72h em que esteve foragido, primeiro, e, depois, no comando do Regimento 4 de Infantaria, em Monte Caseros, o coronel rebelde conseguiu demonstrar a existência de um grau de "indisciplina horizontal", para usar o jargão castense, muito difundido nos quadros do Exército.
Não foram apenas os motins isolados, ocorridos em guarnições do sul, do noroeste e do oeste argentino, que evidenciaram a indisciplina; ela esteve ou ainda está um pouco por toda a parte. Exemplo claro: o tenente-coronel Arturo Gonzalez Naya, que estava detido em uma unidade militar da grande Buenos Aires, fugiu tranquilamente, logo que teve conhecimento da aventura de Rico. Não se foge de uma unidade militar sem um mínimo de convivência de parte de seus responsáveis.
Mais: os mais altos chefes militares acabaram sendo surpreendidos pela evolução dos acontecimentos: no domingo à noite o chefe do Estado-Maior da Força Aérea (equivalente a ministro, no Brasil), brigadeiro Ernesto Crespo, dizia triunfante: "Estamos com o controle de todos os aeroportos". Engano: horas depois dessa frase, exatamente às 6h30 de ontem, um grupo armado invadiu o aeroporto metropolitano Jorge Newbery, ocupou-o e obrigou ao cancelamento das operações que alí se realizam. Pior: ninguém foi preso. todos os invasores fugiram.
Em tácito reconhecimento de que não tem segurança quanto à obediência às ordens que emite, o chefe do Estado-Maior do Exército, general José Dante Caridi, dilatou ao máximo as operações para obter a rendição do grupo chefiado por Aldo Rico.
No domingo à noite, em reunião de avaliação feita na residência presidencial de Olivos, o presidente Raul Alfonsin dera ordens claras para que os amotinados fossem imediatamente dominados. O governo descarta qualquer negociação, ao contrário do que ocorrerá na rebelião da Semana Santa. "Não se negocia com um fugitivo da Justiça", chegou a dizer o porta-voz da presidência, José Ignácio Lopez, após a reunião.
Ontem pela manhã, entretanto, Caridi ainda acenava com a hipótese de negociação. "Desejamos que tudo se acerte pacificamente, mas, para isso, tem que haver a resposta correspondente do grupo sedicioso", dizia Caridi de seu quartel-general em Curuzú Cuatia.
Até às 21h de ontem (hora de Brasília), não estavam claras as condições em que Rico se rendera. Pouco antes, ele reafirmara suas exigências para depor as armas, que iam de uma solução política (nunca claramente especificada) para os oficiais acusados de violações aos direitos humanos a ditadura militar do período 76/83 ao afastamento do general Caridi do comando do Exército.
Por enquanto, Caridi venceu a primeira batalha, ao contrário de seu antecessor, general Héctor Rios Ereñu, afastado na Semana Santa de 1987, por exigência dos rebeldes capitaneados por Aldo Rico. Resta saber se a vitória de Caridi não será uma vitória de Pirro. (C.R.)

Há 26 anos, soldados foram contra golpismo

Da Redação

O confronto entre as tropas leais ao general José Dante Caridi e os rebeldes liderados por Aldo Rico foi o primeiro choque armado entre facções do Exército argentino nos últimos 26 anos. Em 1962, tropas da guarnição do Campo de Maio chefiadas pelo general Juan Carlos Ongánia insurgiram-se contra o alto comando do Exército e entraram em choque com as tropas do governo. Na época, os rebeldes sublevaram-se contra o golpismo dos chefes militares.
Em março de 1962, os militares depuseram o presidente constitucional Arturo Frondizi, da União Cívica Radical, e que fora eleito com o apoio dos peronistas, então na ilegalidade.
Essa situação provocou uma ruptura no Exército: os "azuis", comandados pelo general Juan Carlos Ongania, sublevaram o Campo de Maio contra os chefes militares, cujos adeptos ficaram conhecidos como "colorados" (vermelhos). Os "azuis" venceram depois de vários choques armados, obtendo o afastamento dos golpistas. Em 1966, o próprio general Onganía liderou um golpe que o levou à chefia de um governo militar, do qual saiu, deposto, em 1970.


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