JOÃO PAULO 2º É UM POLONÊS
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Publicado
na Folha de S. Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 1978
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Os cardeais encerrados desde sábado na capela Sistina romperam
ontem uma tradição de 455 anos e surpreenderam o mundo
ao elegerem papa o polonês Carol Woitila, de 58 anos, arcebispo
de Cracóvia. Ele é o primeiro papa não italiano
desde 1522, o primeiro polonês a chefiar a Igreja Católica
em seus quase dois mil anos de história e o primeiro prelado
de um país comunista a ser escolhido Sumo Pontífice.
"Não sei se poderei expressar-me na vossa, na nossa
língua italiana, mas se eu errar me corrijam", foi a
primeira frase que o novo papa que escolheu o nome João
Paulo 2º dirigiu aos 120 mil fiéis que lotavam
a praça de São Pedro. O Sumo Pontífice assomou
ao balcão principal da basílica de São Pedro
às 19h23, exatamente 43 minutos depois de o cardeal italiano
Pericle Felice proclamar "habemus papam", à multidão
que se mantinha na expectativa desde as 18h17, quando a chaminé
da capela Sistina expeliu rolos da tão ansiada fumaça
branca que indica ter sido o papa eleito pelos cardeais.
Ao lado de João Paulo 2º estava o cardeal-primaz da
Polônia, Stefan Wyszynski, de 77 anos, visivelmente feliz
e sorridente. João Paulo 2º pediu silêncio à
multidão que aplaudia sem cessar e agitava lenços
coloridos sob uma enorme lua cheia que banhava a praça de
São Pedro, iluminada também por potentes holofotes.
Em seu primeiro pronunciamento como chefe da Igreja Católica,
João Paulo 2º disse: "Caríssimos irmãos
e irmãs, estamos ainda todos sentindo a morte do queridíssimo
papa João Paulo 1º e eis que os eminentíssimos
cardeais já chamaram um novo bispo de Roma. E o chamaram
de um país longinquo. Longinquo mas sempre vizinho pela comunhão
na fé e na tradição cristãs. Tive medo
de receber esta nomeação, mas o fiz no espírito
de obediência para com Nosso Senhor e de confiança
total em sua mãe, a Senhora Santíssima."
Sempre falando em italiano e usando o "eu" em lugar do
plural majestático estilo que o primeiro João
Paulo inaugurou em seu brevíssimo pontificado de 33 dias,
o cardeal polonês concluiu: "Assim me apresento a todos
vós, para confessar nossa fé comum, a nossa esperança,
a nossa confiança na mãe de Cristo e da Igreja, e
também para começar de novo sobre esta estrada da
História e da Igreja, de recomeçar com a ajuda de
Deus e dos homens."
Carol Woitila nasceu em Wadowice, perto de Cracóvia, a 18
de maio de 1920. Ordenou-se sacerdote com 26 anos. Como seu predecessor,
era filho de um operário e ele também trabalhou como
operário numa indústria química para pagar
os estudos.
Foi, sucessivamente, vigário de paróquia, capelão
e professor de Teologia Moral nas faculdades de Teologia de Cracóvia
e Lublin. Foi designado bispo auxiliar de Cracóvia a 4 de
julho de 1958 e arcebispo da mesma arquidiocese a 13 de janeiro
de 1964. Paulo 6º, de quem era muito próximo, o elevou
ao cardinalato em julho de 1967.
Como arcebispo de Cracóvia, adotou uma atitude mais conciliatória
em relação às autoridades comunistas da Polônia
do que seu superior, o primaz Stefan Wyszynski, embora não
menos firme na defesa das prerrogativas da Igreja. Também
nunca hesitou em falar em defesa dos direitos civis.
O regime polonês manifestou ontem sua satisfação
pela eleição de João Paulo 2º: "Esta
eleição tem um significado especial. Foi eleito um
papa polonês, um nativo do país que sofreu o inferno
da guerra, introduziu profundas mudanças e agora continua
no caminho do desenvolvimento versátil que pode ser notado
em todo mundo", disse o porta-voz do governo de Varsóvia,
Wlodzimierz Janiurek.
Apesar do regime comunista, a Polônia possui o maior número
de católicos da Europa Ocidental. Segundo dados do próprio
governo, 93 por cento dos poloneses são batizados e 70 por
cento consideram-se católicos praticantes. As 27 dioceses
polonesas contam com 75 bispos e possuem 7.498 paróquias
entregues a 18 mil padres e 30 mil freiras. Os últimos levantamentos
dão conta de 4 mil matrículas nos seminários
poloneses.
O presidente Ernesto Geisel enviou ontem telegrama de felicitações
ao papa João Paulo 2º por sua eleição
e o chanceler Azeredo da Silveira enviou mensagem ao secretário
de Estado do Vaticano, Jean Villot, também de felicitações
pela escolha do novo papa.
Em Washington, o presidente Jimmy Carter disse que conhece "muito
bem" o cardeal Woitila e que ele é um velho amigo de
seu assessor para assuntos de Segurança Nacional, o polonês
Zbigniew Brzezinski.
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EDITORIAL
Sem fronteiras |
Todas as conjeturas que se possam fazer em torno do futuro da Igreja
a partir da eleição do polonês Carol Woitila
para o trono papal parecem concluir numa certeza: o Colégio
Cardinalício não elegeria um nome que colocasse em
xeque a política de abertura do Vaticano em relação
aos países comunistas de onde se origina o cardeal polonês,
hoje papa João Paulo 2º. Isso, a rigor, quer dizer muito;
mas não mais do que a realidade da internacionalização
da Igreja expressa não apenas na escolha de um papa não
italiano mas na evidência ainda mais ampla de que, ao escolher
o nome de João Paulo 2º, para si, o novo papa, como
seu antecessor, vê no Concílio Vaticano 2, a expressão
de uma política de abertura para o mundo, política
que, a essas alturas, não parece ter mais reversão.
A alternativa pelo catolicismo em seu sentido etimológico
como universalismo é, por isso mesmo, o grande
fato que deve ser saudado na eleição do novo papa.
Trata-se, no fim das contas, do reconhecimento da evidência
de que a Igreja define no ecumenismo sua missão primordial
no mundo de hoje. E isso significa muito, não apenas para
o futuro da Igreja no Leste europeu; assume importância transcendental
também para os países do Terceiro Mundo, entre os
quais nos incluímos. Ou seja, é possível que
o papa João Paulo 2º não cumpra por inteiro o
que dele esperam os 700 milhões de católicos; não
importa, pois o que fica é a evidência de que a Igreja,
mais que nunca, não parece ver em nações ou
partidos suas únicas opções.
E este é o sentido simbólico da eleição
de um papa não italiano. A Igreja, afinal, está expressando
seu universalismo num nome que, aparentemente, por se originar de
um país oficialmente ateu, deveria estar fora das cogitações
da Igreja; mas não está. E tanto isso é importante
quanto se pode ter certeza de que contribuirá decisivamente
para uma maior união entre mundos divididos.
O papa João Paulo 2º pode ser uma incógnita em
muitos aspectos; não o é enquanto simboliza uma Igreja
que se assume num mundo cuja divisão é menos entre
povos, do que entre a riqueza e a miséria realidade
que, sob todos os pontos de vista, nos diz respeito.
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Pastor,
diplomata e "intransigente" |
"Tinha de ser assim? Não seria possível agir
de modo diferente quanto à construção de igrejas
tão necessárias à população católica
da Polônia?"
Com essa frase, d. Carol Woitila, hoje papa João Paulo 2º,
inaugurava em 1977 a primeira igreja da cidade de Nowa Huta, que
foi projetada depois da Segunda Guerra Mundial para ser a primeira
cidade socialista da Polônia. Por essa razão, durante
25 anos a Igreja polonesa lutou para conseguir que as autoridades
permitissem a construção de um templo na cidade-modelo,
que "seria uma cidade sem Deus, uma cidade sem Igreja",
como frisou Woitila perante 50 mil fiéis que o ouviam na
inauguração da primeira igreja de Nowa Huta.
A construção desse templo, mesmo não podendo
ser considerada uma vitória particular de Woitila, serve
para ilustrar a firmeza, a inflexiblidade e, ao mesmo tempo, a habilidade
diplomática do arcebispo de Cracóvia, que mostrava,
na ocasião, preferir convencer as autoridades polonesas a
adotarem uma atitude mais compreensiva com uma instituição
cuja influência é poderosíssima num país
onde a esmagadora maioria da população (entre 80 e
90 por cento) é católica e praticante. Apesar disso,
é significativo o fato de que a permissão para construção
da igreja de Nowa Huta foi outorgada em 1967, ano em que Woitila
foi criado cardeal por Paulo 6º, a quem era muito chegado,
e os trabalhos começaram imediatamente.
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Intransigente |
Os meios católicos de Varsóvia consideram o primeiro
polonês que vai dirigir a Igreja Católica em quase
dois mil anos de história um "intransigente" que
jamais se deixa manobrar ou que o desviem de seus objetivos. Carol
Woitila, aliás, João Paulo 2º, é um homem
calmo, que se irrita muito pouco e sabe perfeitamente o que quer.
Filho de um operário, como seu antecessor, Albino Luciani,
Carol Woitila nasceu a 18 de maio de 1920 em Wadowice, perto de
Cracóvia. Foi ordenado sacerdote a 1º de novembro de
1946 e foi, sucessivamente, vigário de paróquia, capelão
e professor de Teologia Moral nas faculdades de Teologia de Cracóvia
e Lublin. A 4 de julho de 1958, Pio 12 o designou bispo-auxiliar
de Cracóvia, passando a arcebispo da mesma diocese a 13 de
janeiro de 1964. Foi criado cardeal por Paulo 6º a 26 de julho
de 1967 e desempenhou importante papel no Concílio Vaticano
2º.
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Na
resistência |
Carol
Woitila trabalhou como operário numa indústria química
para pagar seus estudos, empenhando-se ativamente na formação
religiosa e cultural dos seus colegas trabalhadores, para os quais
trabalhou pela criação de um centro esportivo e cultural.
Em 1943, entrou no seminário maior de Cracóvia, onde
cursou filosofia e teologia. Durante a Segunda Guerra Mundial, lutou
na Resistência contra o ocupante nazista e fez parte de um
grupo de teatro amador clandestino.
Terminada a guerra, em novembro de 1946 seguiu para Roma, onde obteve
o doutorado em Filosofia pelo Ateneu Pontifício Angélico,
dos dominicanos, em 1948. Ao voltar à Polônia, exerceu
o ministério pastoral como vigário auxiliar de várias
paróquias da arquidiocese de Cracóvia, atuando ao
mesmo tempo como diácono dos universitários. Nos anos
seguintes foi professor e publicou numerosos ensaios em revistas
filosóficas francesas e uma série de estudos, entre
os quais uma monografia sobre o filósofo alemão Max
Scheler.
Na arquidiocese de Cracóvia favoreceu a participação
dos leigos na vida da Igreja, e promoveu, apesar das limitações
impostas pelas autoridades polonesas, a criação de
novas igrejas e o desenvolvimento das publicações
católicas polonesas.
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Na
sombra de Wyzynski |
Carol
Woitila expressa uma fé tão forte quanto tradicional
e tem um agudo senso de disciplina. Sem essas características,
não teria conseguido manter a resistência tenaz que
opôs durante 30 anos ao regime comunista polonês. Se
não chegou a ser tão mencionado quanto o cardeal Stefan
Wyzynski, sempre decantado pela imprensa ocidental por sua confrontação
com as autoridades polonesas, muito provavelmente é porque
tem um estilo muito diferente do primaz polonês, de quem se
diz que ele seria o sucessor.
Mesmo atuando mais na sombra do que Wyzynski, Woitila não
deixou de incomodar o governo polonês, mas sempre o fez com
diplomacia e firmeza. Opôs-se aos grupos que exigem severa
condenação do ateísmo, explicando que isso
seria contraproducente. Falando em nome dos bispos poloneses no
Concilio Vaticano 2º, Woitila disse: "Não é
missão da Igreja ensinar os não crentes.
Vamos evitar qualquer espírito de monopolização
e moralização. Um dos principais defeitos dessa abordagem
é que a Igreja parece autoritária em relação
ao assunto".
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Na
resistência |
Talvez seja por esse estilo, menos tonitroante mas mais eficiente
que Wyzynski, o regime polonês, segundo consta, não
queria que ele sucedesse o primaz quando chegou a época dele
se aposentar. Os dirigentes poloneses, afirma-se, alegaram que Woitila
é um "imprevisível". O Vaticano prolongou
o mandato de Wyzynski por mais três anos e, nesse meio tempo,
estabeleceu relações diplomáticas oficiosas
com o regime polonês e Paulo 6º recebeu o secretário-geral
do PC polonês, Edward Gierek, na Santa Sé.
O jornal do Vaticano, "L'Osservatôre Romano", ao
publicar, ontem, em edição extra, um perfil do novo
papa, destacou um texto do livro "Signo da Contradição"
(título tirado de uma frase de São João Batista,
pela qual o profeta anuncia a chegada do Cristo). Nesse livro, Carol
Woitila afirma que um sinal de contradição do século
20, mesmo no progresso, é a "grande pobreza dos povos,
primeiro de todos a dos povos do Terceiro Mundo, a fome e a exploração
econômica, o colonialismo, que está presente não
apenas no Terceiro Mundo".
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Aldeia
natal é tipicamente agrícola |
Varsóvia Wadowice,
cidade natal de Carol Woitila é uma localidade do sul da
Polônia situada 29 quilômetros a sudeste de Cracóvia,
ao pé dos pequenos besquidis as montanhas que marcam
naquele ponto a fronteira entre a Polônia e a Tchecoslováquia
tem atualmente 13 mil habitantes que em sua maioria dedicam-se a
agricultura. Em seu povoado natal também há algumas
pequenas indústrias, várias escolas secundárias
e diversas escolas profissionais.
A igreja paroquial de construção antiga, foi reconstruída
no século 18. Há também um castelo de estilo
neo-clássico construído no início do século
passado.
O cardeal Woitila permaneceu em Wadowice até 1938, quando
o pai decidiu mudar para Cracóvia. De 1932 a 1938 ele estudou
no ginásio local. O padre Edward Wacher, pároco de
Wadowice, que foi seu professor no ginásio, lembra dele como
um ótimo estudante (destacava-se sobretudo nas matérias
linguísticas e literárias) e era muito querido dos
colegas.
Desde cedo, Woitila demonstrou vivo interesse pela poesia e distinguiu-se
como ator nas representações teatrais organizadas
na escola. Durante os anos do curso secundário, compilou
um catálogo dos monumentos históricos da região.
Segundo o padre Wacher, Woitila, embora fosse muito piedoso e assíduo
nas práticas religiosas, não demonstrou até
deixar Wadowice vocação declarada pela vida eclesiástica.
O padre Wacher acredita que tal vocação surgiu nos
primeiros anos da guerra, depois que o jovem Woitila foi para Cracóvia.
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