Carlos Eduardo Lins da Silva
De Washington
O Senado
aprovou a indicação de Clarence Thomas para a Suprema
Corte dos EUA, por 52 votos contra 48. Thomas, 43, é agora
o mais jovem juiz da história da Corte e o que chegou lá
com o maior número de votos contra.
O resultado reflete a divisão em que a opinião pública
desse país mergulhou com o processo iniciado pelo presidente
George Bush em 1° de julho, ao anunciar o nome de Thomas como
seu candidato para a substituição de Thurgood Marshall,
o primeiro juiz negro da Suprema Corte, que anunciara que ia se
aposentar.
Bush escolheu a tática fácil de indicar um jurista
negro, conservador, medíocre e desconhecido. Ninguém
conhecia as opiniões de Thomas sobre nada importante e seria
complicado para a oposição democrata barrar a permanência
de um negro na Suprema Corte.
Tudo é consequência do erro do Senado, que em 1987
derrubou a indicação de Robert Bork, um jurista qualificado,
só por causa de suas opiniões ideológicas de
direita. A partir daí, Reagan e Bush resolveram partir para
a tática do "quanto menos competente, melhor" para
passar seus nomes para a Suprema Corte.
Bush não podia prever Anita Hill. A confirmação
fácil no Senado se transformou em novela de TV com lúbricas
históricas que monopolizaram a atenção do país
por cinco dias.
O Senado, em vez de julgar as qualificações de Thomas,
se transformou em árbitro da moralidade pública. Escolheu
quem estava mentindo. A maioria achou que Anita Hill mentiu.
Não por coincidência, as pesquisas de opinião
às vésperas da votação também
mostravam pequenas margens de vantagem para Thomas sobre Hill.
O Senado talvez não devesse ter adiado a votação
em uma semana por causa das acusações de Anita Hill.
Primeiro, porque elas não poderiam jamais ser provadas. Segundo,
porque seu conteúdo nada tem a ver com as condições
para o indicado desempenhar suas funções na Corte.
Os senadores na semana passada cederam à pressão forte
das feministas. Todos quiseram fazer média, mostrar às
mulheres que eles dão importância a assuntos do interesse
delas. Mesmo quando fora de contexto, como neste caso. Ontem, a
maioria seguiu o resultado das pesquisas e confirmou a indicação
do juiz Clarence Thomas para a Suprema Corte.
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Caso envolvendo juiz acusado de abuso sexual denuncia o terrorismo
que se instala sobre a vida privada nos EUA
Marcelo
Coelho
Da equipe de articulistas
Como
qualquer outro país, os Estados Unidos já tiveram
surtos de demência coletiva: a Lei Seca, a Ku Klux Klan, o
macarthismo. Mas nunca a loucura foi tão grande como agora.
O caso desse juiz Clarence Thomas é a ponta de um iceberg.
Fica até difícil comentar todas contradições
e paradoxos envolvidos. Primeiro paradoxo: Bush, querendo nomear
para a Suprema Corte um juiz conservador, escolhe um negro. Clarence
Thomas é negro e conservador; a cor da pele funcionou, assim,
como salvo-conduto moral para suas idéias. Fosse protestante,
branco, milionário, a indicação de Bush seria
inominável, seria um erro político atroz. Já
havia nessa escolha um racismo sutil - não de Bush, mas de
toda a opinião pública: aparentemente, um negro, pelo
simples fato de ter essa cor, está cercado de mais condições
éticas para defender determinada posição política
do que um brando protestante...
Mas, como se sabe, este é apenas o começo da história.
Clarence Thomas é acusado - por uma negra - de ter um comportamento
sexual "abusivo". Anita Hill, sua antiga subordinada,
presta um depoimento aos senadores encarregados de confirmar a nomeação
de Thomas à Suprema Corte. Diz que Thomas se jactava do tamanho
do pênis, que contou detalhes de um filme pornográfico;
que fez piadas de mau gosto; é, em suma, um tarado e não
é possível nomeá-lo para a Suprema Corte.
O episódio não poderia ser mais louco. A acusação
foi feita sem nenhuma prova. Qualquer pessoa, qualquer candidato
a um cargo público, está exposto a acusações
desse tipo. Pouco importa se verdadeiras ou não, e pouco
importa o desfecho, favorável ou negativo, de cada devassa
em sua vida particular. O indivíduo estará prejudicado
para sempre. Seus inimigos podem contratar uma atriz competente,
inventar uma história, e destruir, sem prova alguma, sua
reputação. É pior do que o macarthismo. Institui-se
um verdadeiro terrorismo sobre a vida privada.
Mas admite-se que a acusação seja verdadeira. Clarence
Thomas falava de sexo com sua subordinada Anita Hill. Fazia piadas
de mau gosto. Gabava-se de seu virtuosismo sexual. Não acredito
estar falando como machista sulamericano se perguntar: e daí?
Isso é crime? O acusado tentou estuprar alguém? Ameaçou
a moça de demissão caso não cedesse às
investidas? Não. Clarence Thomas é um chato, tipo
inconveniente, obsessivo; mas foi Anita Hill quem pediu demissão
de seu cargo, depois de bom tempo de convivência profissional
- e acusa Thomas de ter sido a causa de dores de estômago
que a levaram a uma clínica. Francamente. Perigosíssimo,
criminoso, esse Clarence Thomas...
O absurdo de todo o episódio não cessa aí.
Duas circunstâncias podem revelar a mistura de paranóia
e de cinismo que envolve o caso. Em primeiro lugar, Thomas recorre,
em sua defesa, ao mais desonesto dos argumentos: ele estaria sendo
vítima de um preconceito, de um estereótipo - o do
negro estuprador, do negro incontrolável na selvageria sexual.
A acusação não tem prova nenhuma do que diz,
mas a defesa não poderia ser mais oportunista: se sou injustiçado,
é porque sou negro... se vocês acreditam que sou tarado,
é porque vocês são racistas, identificam imediatamente
minha pele escura a um bestialidade sexual... sou inocente porque
sou negro... "A Febre da Selva", filme de Spike Lee (negro)
é uma brilhante denúncia tanto do racismo quanto da
má fé que o anti-racismo é capaz de envolver.
Segunda circunstância diabólica é o fato de
a acusadora ser, ela própria, negra. Fosse branca, o que
aconteceria? Pesaria também sobre ela a acusação
de racismo: nosso simpático Clarence Thomas queria ir para
a cama com uma branca. Ela recusa; considera-se ultrajada; mas será
que isso se deve ao fato de Thomas ser um canalha ou ao fato de
ela ser racista? A opinião pública ficaria mais confusa
neste caso...
O terrorismo moral, a irracionalidade de todo esse episódio
não poderiam ser maiores. Um bate-boca inadmissível
numa reunião de condomínio reveste-se de importância
internacional. Mc Luhan estava errado: não é de aldeia,
é de cortiço global o que se trata no momento. Não
se discute se o cidadão Clarence Thomas é um juiz
isento, tecnicamente preparado, se suas decisões foram alguma
vez deturpadas devido a seus problema pessoais; discute-se se é
verdade ou não que tenha dirigido gracejos idiotas a uma
jovem alguma vez na vida...
Patológica, nessa situação, é a mistura
entre o público e o privado. O assanhamento de Thomas, se
é que existe, prejudica sua atividade profissional? Pouco
importa. O que parece ocorrer, neste caso, é uma tendência
mais complexa. Trata-se de impor um moralismo no varejo, dentro
de uma sociedade dilacerada internamente.
Quanto mais se conformam o pragmatismo, a corrupção,
a inviabilidade de se dirigir uma condenação moral
genérica ao sistema de vida norte-americano, mais se insiste
na importância de pecadilhos individuais. Pior que isto. Numa
sociedade hiperdesenvolvida, a proteção aos "fracos"
torna-se regra. Fracos, então, são os negros - e Clarence
Thomas é inocente. Fracas, então, são as mulheres
- e Clarence Thomas é um monstro. Não se julgam mais
as coisas pelo que são, mas sim conforme o poder de fogo
das minorias envolvidas. Feminismo e negritude entram em conflito
neste caso.
Tudo isso é sintoma de um fenômeno mortal para qualquer
democracia: a verdade geral, o consenso em torno de valores básicos,
a racionalidade do sistema entraram em colapso. A idéia abstrata
de que uma acusação só vale se tiver provas
concretas, de que qualquer cidadão é inocente até
prova em contrário, cede diante do mais obscuro e perigoso
preconceito: o preconceito anti-preconceito. Se alguém é
negro, tem razão; se é mulher, tem razão. Decide-se
tudo em função da cor da pele ou do sexo do interessado;
não para discriminar mas para proteger; é o preconceito
às avessas. Consequência, acima de tudo, de um profundo,
arraigado, neurótico sentimento de culpa: mulheres foram
oprimidas, negros foram oprimidos, é verdade, e por isso
estão automaticamente certos no que digam ou façam.
O curto-circuito começa quando não se sabe quem é
mais digno de confiança: o negro que quer ser juiz da Suprema
Corte ou a mulher que o acusa de ser tarado.
Estabeleceu-se uma tirania, um terrorismo sobre a esfera privada
nas sociedades desenvolvidas. Ao mesmo tempo em que os direitos
individuais são garantidos até ao absurdo - uma fulana,
relata Carlos Eduardo Lins da Silva, pede 500 mil dólares
porque seu porquinho da índia foi vítima de erro médico
-, a privacidade é oprimida de maneira brutal: há
empresas nos Estados Unidos que fazem teste de urina em seus empregados
para saber se fumam escondidos... o que não é desejável...
O próprio vocabulário se submete à censura
do "politicamente correto".
O dilema é menos pueril do que se pode pensar: trata-se de
saber se, numa democracia, os direitos de cada grupo, de cada facção
de cada minoria, podem ser respeitados integralmente - sem que isso
resulte em prejuízo coletivo. O caminho para o delírio
e a paranóia está aberto: o presidente americano beija
sua mulher; fazendo isso, não estará por exemplo,
sacralizando um tipo conservador de relacionamento entre os sexos,
e indiretamente, discriminando lésbicas e homossexuais? Faço
uma caricatura. Mas a disputa pelo poder, a questão política
em si, parece estar sendo ocupada por questão desse gênero
- onde o âmbito privado, o interesse repressivo, o patrulhismo
de todos contra todos toma o primeiro plano. A política,
nas sociedades hiperdesenvolvidas, mudou seu foco - o privado, e
não o público, tornou-se crucial. Um novo terrorismo
se inicia, aliás como é de praxe em todos as revoluções.
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