JUIZ É ACEITO NA SUPREMA CORTE DEPOIS DE POLÊMICA

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 16 de outubro de 1991

O Senado aprovou ontem a indicação de Clarence Thomas para a Suprema Corte dos EUA, por 52 votos contra 48. Thomas, 43, é agora o mais jovem juiz da história da Corte e o que teve mais votos contra. Bush tinha escolhido a tática fácil de indicar um jurista negro, conservador, medíocre e desconhecido. Mas acusações de Anita Hill, de que ele a teria molestado sexualmente, monopolizaram a opinião pública norte-americana nos últimos dias.

Senado confirma o juiz Thomas para Suprema Corte dos EUA

Carlos Eduardo Lins da Silva
De Washington

O Senado aprovou a indicação de Clarence Thomas para a Suprema Corte dos EUA, por 52 votos contra 48. Thomas, 43, é agora o mais jovem juiz da história da Corte e o que chegou lá com o maior número de votos contra.
O resultado reflete a divisão em que a opinião pública desse país mergulhou com o processo iniciado pelo presidente George Bush em 1° de julho, ao anunciar o nome de Thomas como seu candidato para a substituição de Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro da Suprema Corte, que anunciara que ia se aposentar.
Bush escolheu a tática fácil de indicar um jurista negro, conservador, medíocre e desconhecido. Ninguém conhecia as opiniões de Thomas sobre nada importante e seria complicado para a oposição democrata barrar a permanência de um negro na Suprema Corte.
Tudo é consequência do erro do Senado, que em 1987 derrubou a indicação de Robert Bork, um jurista qualificado, só por causa de suas opiniões ideológicas de direita. A partir daí, Reagan e Bush resolveram partir para a tática do "quanto menos competente, melhor" para passar seus nomes para a Suprema Corte.
Bush não podia prever Anita Hill. A confirmação fácil no Senado se transformou em novela de TV com lúbricas históricas que monopolizaram a atenção do país por cinco dias.
O Senado, em vez de julgar as qualificações de Thomas, se transformou em árbitro da moralidade pública. Escolheu quem estava mentindo. A maioria achou que Anita Hill mentiu.
Não por coincidência, as pesquisas de opinião às vésperas da votação também mostravam pequenas margens de vantagem para Thomas sobre Hill.
O Senado talvez não devesse ter adiado a votação em uma semana por causa das acusações de Anita Hill. Primeiro, porque elas não poderiam jamais ser provadas. Segundo, porque seu conteúdo nada tem a ver com as condições para o indicado desempenhar suas funções na Corte.
Os senadores na semana passada cederam à pressão forte das feministas. Todos quiseram fazer média, mostrar às mulheres que eles dão importância a assuntos do interesse delas. Mesmo quando fora de contexto, como neste caso. Ontem, a maioria seguiu o resultado das pesquisas e confirmou a indicação do juiz Clarence Thomas para a Suprema Corte.

Deu a louca na sociedade norte-americana

Caso envolvendo juiz acusado de abuso sexual denuncia o terrorismo que se instala sobre a vida privada nos EUA

Marcelo Coelho
Da equipe de articulistas

Como qualquer outro país, os Estados Unidos já tiveram surtos de demência coletiva: a Lei Seca, a Ku Klux Klan, o macarthismo. Mas nunca a loucura foi tão grande como agora. O caso desse juiz Clarence Thomas é a ponta de um iceberg. Fica até difícil comentar todas contradições e paradoxos envolvidos. Primeiro paradoxo: Bush, querendo nomear para a Suprema Corte um juiz conservador, escolhe um negro. Clarence Thomas é negro e conservador; a cor da pele funcionou, assim, como salvo-conduto moral para suas idéias. Fosse protestante, branco, milionário, a indicação de Bush seria inominável, seria um erro político atroz. Já havia nessa escolha um racismo sutil - não de Bush, mas de toda a opinião pública: aparentemente, um negro, pelo simples fato de ter essa cor, está cercado de mais condições éticas para defender determinada posição política do que um brando protestante...
Mas, como se sabe, este é apenas o começo da história. Clarence Thomas é acusado - por uma negra - de ter um comportamento sexual "abusivo". Anita Hill, sua antiga subordinada, presta um depoimento aos senadores encarregados de confirmar a nomeação de Thomas à Suprema Corte. Diz que Thomas se jactava do tamanho do pênis, que contou detalhes de um filme pornográfico; que fez piadas de mau gosto; é, em suma, um tarado e não é possível nomeá-lo para a Suprema Corte.
O episódio não poderia ser mais louco. A acusação foi feita sem nenhuma prova. Qualquer pessoa, qualquer candidato a um cargo público, está exposto a acusações desse tipo. Pouco importa se verdadeiras ou não, e pouco importa o desfecho, favorável ou negativo, de cada devassa em sua vida particular. O indivíduo estará prejudicado para sempre. Seus inimigos podem contratar uma atriz competente, inventar uma história, e destruir, sem prova alguma, sua reputação. É pior do que o macarthismo. Institui-se um verdadeiro terrorismo sobre a vida privada.
Mas admite-se que a acusação seja verdadeira. Clarence Thomas falava de sexo com sua subordinada Anita Hill. Fazia piadas de mau gosto. Gabava-se de seu virtuosismo sexual. Não acredito estar falando como machista sulamericano se perguntar: e daí? Isso é crime? O acusado tentou estuprar alguém? Ameaçou a moça de demissão caso não cedesse às investidas? Não. Clarence Thomas é um chato, tipo inconveniente, obsessivo; mas foi Anita Hill quem pediu demissão de seu cargo, depois de bom tempo de convivência profissional - e acusa Thomas de ter sido a causa de dores de estômago que a levaram a uma clínica. Francamente. Perigosíssimo, criminoso, esse Clarence Thomas...
O absurdo de todo o episódio não cessa aí. Duas circunstâncias podem revelar a mistura de paranóia e de cinismo que envolve o caso. Em primeiro lugar, Thomas recorre, em sua defesa, ao mais desonesto dos argumentos: ele estaria sendo vítima de um preconceito, de um estereótipo - o do negro estuprador, do negro incontrolável na selvageria sexual. A acusação não tem prova nenhuma do que diz, mas a defesa não poderia ser mais oportunista: se sou injustiçado, é porque sou negro... se vocês acreditam que sou tarado, é porque vocês são racistas, identificam imediatamente minha pele escura a um bestialidade sexual... sou inocente porque sou negro... "A Febre da Selva", filme de Spike Lee (negro) é uma brilhante denúncia tanto do racismo quanto da má fé que o anti-racismo é capaz de envolver.
Segunda circunstância diabólica é o fato de a acusadora ser, ela própria, negra. Fosse branca, o que aconteceria? Pesaria também sobre ela a acusação de racismo: nosso simpático Clarence Thomas queria ir para a cama com uma branca. Ela recusa; considera-se ultrajada; mas será que isso se deve ao fato de Thomas ser um canalha ou ao fato de ela ser racista? A opinião pública ficaria mais confusa neste caso...
O terrorismo moral, a irracionalidade de todo esse episódio não poderiam ser maiores. Um bate-boca inadmissível numa reunião de condomínio reveste-se de importância internacional. Mc Luhan estava errado: não é de aldeia, é de cortiço global o que se trata no momento. Não se discute se o cidadão Clarence Thomas é um juiz isento, tecnicamente preparado, se suas decisões foram alguma vez deturpadas devido a seus problema pessoais; discute-se se é verdade ou não que tenha dirigido gracejos idiotas a uma jovem alguma vez na vida...
Patológica, nessa situação, é a mistura entre o público e o privado. O assanhamento de Thomas, se é que existe, prejudica sua atividade profissional? Pouco importa. O que parece ocorrer, neste caso, é uma tendência mais complexa. Trata-se de impor um moralismo no varejo, dentro de uma sociedade dilacerada internamente.
Quanto mais se conformam o pragmatismo, a corrupção, a inviabilidade de se dirigir uma condenação moral genérica ao sistema de vida norte-americano, mais se insiste na importância de pecadilhos individuais. Pior que isto. Numa sociedade hiperdesenvolvida, a proteção aos "fracos" torna-se regra. Fracos, então, são os negros - e Clarence Thomas é inocente. Fracas, então, são as mulheres - e Clarence Thomas é um monstro. Não se julgam mais as coisas pelo que são, mas sim conforme o poder de fogo das minorias envolvidas. Feminismo e negritude entram em conflito neste caso.
Tudo isso é sintoma de um fenômeno mortal para qualquer democracia: a verdade geral, o consenso em torno de valores básicos, a racionalidade do sistema entraram em colapso. A idéia abstrata de que uma acusação só vale se tiver provas concretas, de que qualquer cidadão é inocente até prova em contrário, cede diante do mais obscuro e perigoso preconceito: o preconceito anti-preconceito. Se alguém é negro, tem razão; se é mulher, tem razão. Decide-se tudo em função da cor da pele ou do sexo do interessado; não para discriminar mas para proteger; é o preconceito às avessas. Consequência, acima de tudo, de um profundo, arraigado, neurótico sentimento de culpa: mulheres foram oprimidas, negros foram oprimidos, é verdade, e por isso estão automaticamente certos no que digam ou façam. O curto-circuito começa quando não se sabe quem é mais digno de confiança: o negro que quer ser juiz da Suprema Corte ou a mulher que o acusa de ser tarado.
Estabeleceu-se uma tirania, um terrorismo sobre a esfera privada nas sociedades desenvolvidas. Ao mesmo tempo em que os direitos individuais são garantidos até ao absurdo - uma fulana, relata Carlos Eduardo Lins da Silva, pede 500 mil dólares porque seu porquinho da índia foi vítima de erro médico -, a privacidade é oprimida de maneira brutal: há empresas nos Estados Unidos que fazem teste de urina em seus empregados para saber se fumam escondidos... o que não é desejável... O próprio vocabulário se submete à censura do "politicamente correto".
O dilema é menos pueril do que se pode pensar: trata-se de saber se, numa democracia, os direitos de cada grupo, de cada facção de cada minoria, podem ser respeitados integralmente - sem que isso resulte em prejuízo coletivo. O caminho para o delírio e a paranóia está aberto: o presidente americano beija sua mulher; fazendo isso, não estará por exemplo, sacralizando um tipo conservador de relacionamento entre os sexos, e indiretamente, discriminando lésbicas e homossexuais? Faço uma caricatura. Mas a disputa pelo poder, a questão política em si, parece estar sendo ocupada por questão desse gênero - onde o âmbito privado, o interesse repressivo, o patrulhismo de todos contra todos toma o primeiro plano. A política, nas sociedades hiperdesenvolvidas, mudou seu foco - o privado, e não o público, tornou-se crucial. Um novo terrorismo se inicia, aliás como é de praxe em todos as revoluções.


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