NIGERIA DIFICULTA A AJUDA A 5 MILHÕES DE FAMINTOS EM BIAFRA

Publicado na Folha de S. Paulo, quinta-feira, 15 de janeiro de 1970

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Um milhão e duzentos mil biafrenses (principalmente crianças e mulheres) poderão morrer dentro de 48 horas, e cinco milhões em uma semana se não receberem alimentos com urgencia - advertiu ontem pateticamente a Cruz Vermelha Internacional, em Genebra, denunciando as dificuldades opostas pelo governo federal da Nigeria à ajuda internacional às vitimas da guerra civil nigeriana.
Fazendo coro aos apelos de diversas entidades internacionais, o presidente da França, Georges Pompidou instou o secretario-geral das Nações Unidas, U Thant, a convencer o governo de Lagos a autorizar uma operação internacional de ajuda maciça à sacrificada população de Biafra. Contudo, o governo federal nigeriano incluiu a França, juntamente com Portugal, Africa do Sul e Rodesia no rol dos paises cuja ajuda considera indesejavel, por entender que ajudaram à causa secessionista. No mesmo caso estão a Caritas, organização do Vaticano e os serviços da Cruz Vermelha Internacional da França e dos paises escandinavos. "Não queremos sua ajuda ou assistencia; usaremos nossos recursos" - afirmou o general Gowon, chefe do governo nigeriano.
Gowon anunciou tambem a "vitoria militar total" com a tomada da Radio Biafra e a ocupação do "ultimo reduto de resistencia" no aeroporto de Uli.

Biafra: denunciado o genocidio pela fome

Londres, 14 - Biafra se extinguia hoje lenta e silenciosamente, enquanto as crianças que formariam as futuras gerações do povo Ibo morriam pela falta de alimentos e remedios que o mundo esperava entregar a Nigeria.
Os funcionarios das organizações internacionais de socorro que deixaram Biafra nos ultimos dias disseram que atrás deles ficaram milhares de crianças famintas, sem esperanças de sobreviver.
Representantes da Cruz Vermelha Internacional (CVI) revelaram que o governo federal na Nigeria aceitou a oferta da organização de socorro para enviar alimentos e remedios à região de Biafra. Mas tudo deverá ser entregue à Cruz Vermelha da Nigeria.
A CVI declarou em Genebra que 1 milhão e 200 mil refugiados estão a ponto de morrer de fome nas selvas de Biafra.
A maior parte das nações do mundo ocidental armazenou toneladas de alimentos e remedios esperando a hora de embarcá-los para a Nigeria. O governo do Lagos, entretanto, disse que podia atender por si mesmo as vitimas da guerra e qualificou as ofertas de ajuda das organizações catolicas como originadas de "dinheiro manchado de sangue".

Exigencias

O governo nigeriano insistiu que qualquer ajuda deve ser feita através de seus proprios mecanismos de auxilio. A critica feita à organização catolica "Caritas" e a outras analogas foram recebidas com desanimo em todo o mundo e um funcionario da "Caritas" disse que Biafra enfrenta a fome total.

Genocidio

Tres missionarios catolicos que acabam de chegar de Biafra revelaram numa entrevista coletiva realizada em Londres que "cinco milhões de refugiados estão em perigo de morrer de fome a menos que sejam levados alimentos por avião nos proximos dias".
Os padres Kevin Doheny, Michael Doheny e Michael Hannan, que saíram da Nigeria na semana passada, disseram que levaram esta advertencia diretamente ao primeiro-ministro Harold Wilson.
"O senhor Wilson não se dava conta de que tudo o que queriamos eram alimentos" - disse o padre Kevin na entrevista de imprensa.
"Ficou muito surpreso ao tomar conhecimento de que há mais de 100 missionarios europeus que se encontram ainda no aeroporto destruido da Uli. Sem condições de retornar, mas em condições de ajudar. Mas não podem fazê-lo por ordem das tropas nigerianas".
"Não creio que o primeiro-ministro esteja bem inteirado da grandeza do problema", afirmou.

Nigeria não ajuda

Os três sacerdotes disseram ainda que a ajuda procedente de Lagos, Enogu e Porto Harcourt não resolverão o problema e os abastecimentos teriam que ser transportados em avião, de São Tomé ou Libreville.
"O governo britanico ganhou virtualmente a guerra para a Nigeria e agora deveria usar de sua influencia com as autoridades de Lagos para que se levasse a cabo a ajuda", disse o padre Kevin, irmão de Michael.

U Thant recebe apelos para ir à Nigéria

Nações Unidas, 14 - O secretario-geral das Nações Unidas, U Thant, recebeu uma sugestão de viajar para Lagos a fim de pedir às autoridades nigerianas que autorizem a ação das organizações internacionais de socorro, revelou-se hoje na ONU.
A sugestão partiu de alguns dos colaboradores mais chegados a Thant, que lembraram ao Secretario a urgencia da ajuda que deve ser prestada às vitimas de Biafra.
Thant comunicou-se telefonicamente varias vezes com os membros da secretaria da ONU, desde que se precipitaram os acontecimentos da Nigéria. O secretario está em visita oficial a diversas nações africanas.
O governo de Lagos disse hoje que "Thant seria benvindo".
Mas U Thant lembrou em Nianey, capital de Niger, que uma operação de auxilio em escala mundial para Biafra apenas será possivel com a aprovação e cooperação do governo de lagos.
O presidente Georges Pompidou exortou, por sua vez, U Thant a tentar obter a aprovação urgente da Nigéria para uma operação maciça de ajuda internacional à população de Biafra.
Pompidou disse na reunião do gabinete francês que seu país "dará o maximo apoio a uma iniciativa que deveria ser tomada pelo secretario-geral para levar ajuda material e moral aos civis biafrenses".
Pompidou manifestou sua profunda preocupação pela população de Biafra e a inquietação do governo francês quanto ao futuro imediato e a longo prazo dos habitantes da região".
"A obrigação da Organização das Nações Unidas é evidente e urgente", declarou.

O Vaticano aguarda para enviar ajuda


Cidade do Vaticano, 14 - O papa Paulo VI não mencionou hoje Biafra em seu pronunciamento na audiencia semanal das quartas-feiras, ao que parece devido a reação negativa do governo da Nigeria diante de suas exortações de auxilio às vitimas da guerra civil.
No entanto, o Vaticano continua reunindo alimentos e remedios, aguardando a autorização de Lagos para enviá-los a Biafra.
A "Caritas Internacional" - organização catolica de ajuda - apelou à Nigeria para que permita a entrega de remedios e alimentos aos biafrenses, milhares dos quais fugiram para a selva, com o avanço das tropas federais.
O diretor da "Caritas", dom Jean Rodhain, conferenciou com Paulo VI e a Santa Sé anunciou que Rodhain iria viajar para Lagos numa tentativa de coordenar a ajuda aos vencidos.
Um porta-voz da "Caritas", padre Nicholas Frank, disse que dom Rodhain viajaria hoje ou amanhã, acrescentando que levaria um cheque pessoal do papa aos biafrenses. Ao mesmo tempo, pediu aos nigerianos que permitam a chegada dos socorros para os biafrenses que estão morrendo de fome.

 

Algumas tropas ainda resistem no interior

Lagos, 14 - Combates esporadicos continuavam ocorrendo hoje no setor de Biafra, mas com intensidade cada vez menor. Os nigerianos continuam perseguindo os ultimos elementos do exercito de Biafra, constituidos essencialmente por comandos organizados para ataques na retaguarda das linhas federais, informaram fontes nigerianas.
Algumas destas unidades não renunciaram ainda à luta apesar do apelo feito pelo chefe do estado maior de Biafra, general Phillip Effiong, para uma retirada ordenada.
Os porta-vozes de Lagos dizem que "os rebeldes adotaram uma tatica de empurrar em massa a população civil entre eles e nós". Milhares de civis desarmados foram enviados do reduto biafrense para o encontro com as tropas federais.
Mas estes são os ultimos choques e a guerra realmente terminou, deixando o terrivel problema, da fome.

Ojukwu continua desaparecido

Lisboa, 14 - Um porta-voz do Ministério português de Relações Exteriores, declarou hoje ignorar que o general Ojukwu encontra-se em territorio português.
A expressão "territorio português" compreende também a ilha de São Tomé, esclareceu o porta-voz.
Por sua vez, o governo de Zambia desmentiu hoje oficialmente que o general Ojukwu, tivesse aterrissado na fronteira da Tanzania, ao norte do país.
O paradeiro do ex-lider de Biafra continua a ser um mistério.

Owerri, a ex-capital foi tomada sem nenhuma luta

Lagos, 14 - Owerri, capital de Biafra, caiu em poder das tropas federais sem que estas encontrassem praticamente qualquer resistencia, informou hoje nesta capital um viajante, que quis se conservar no anonimato. É o primeiro a regressar da zona de hostilidades.
Revelou que os combates causaram poucos estragos na capital biafrense. Citou o exemplo da grande torre construida em 1960, por motivo da independencia da Nigeria, "que permanece intacta".
"Não acompanhei a ação", prosseguiu, "mas ouvi em torno de mim o fragor dos combates".
Afirmou que tinha visto dezenas de milhares de refugiados dirigindo-se para a selva.
"Não creio que exista perigo de fome em Owerri, pois equipes de socorro encontram-se lá. Mas o problema é que a alimentação e o cuidado dos refugiados estão a cargo do exercito nigeriano".

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