URSS ENTERRA KRUSCHEV COM 5 LINHAS

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 1971

Neste texto foi mantida a grafia original

MOSCOU - O "Pravda" publicará hoje, em sua primeira pagina um comunicado de 5 linhas, anunciando pela primeira vez a milhões de cidadãos sovieticos a morte de seu ex-primeiro-ministro Nikita Kruschev.
Um porta-voz do jornal (o orgão oficial do Partido Comunista Sovietico) disse ontem em Moscou a um reporter da "Associated Press" que a noticia aparecerá sem titulo e sem fotografia.
Kruschev faleceu sabado, vitima de um ataque cardiaco, num hospital, em localidade ainda não divulgada. A publicação da nota necrologica coincidirá com o enterro do dirigente sovietico fixado para o meio-dia de hoje, no cemiterio Novodevichy.
O cemiterio Novodevichy é reservado a personalidades do Governo sovietico, que não chegam a merecer a honra de serem sepultados nos muros do Kremlin, como Lenine ou os astronautas mortos no espaço.
Kruschev foi o mais importante lider sovietico durante um periodo de 11 anos, desde 1953 até ser destituido em 1964. A sua realização mais espetacular foi a denuncia publica das atrocidades cometidas por Stalin na União Sovietica. Essa denuncia foi feita num discurso por ocasião do XX Congresso do Partido Comunista Sovietico, em 1956.

O texto do comunicado

Eis as 5 linhas de lauda da nota que o "Pravda" publicará hoje em sua primeira pagina:
"O Comitê Central do Partido Comunista da União Sovietica e o Conselho de Ministros da URSS informam com pesar que a 11 de setembro de 1971 depois de uma grave e prolongada enfermidade, o ex-primeiro-ministro do Comitê Central e presidente do Conselho de Ministros, aposentado, Nikita Sergeyevich Kruschev, faleceu no seu septuagesimo ano de vida.
O Comitê central do Partido Comunista da União Sovietica.
O Conselho de Ministros da União Sovietica."

Kruschev será enterrado hoje

MOSCOU - Os jornais sovieticos, que ignoraram Nikita Kruschev desde que caiu do poder, há quase sete anos, nada publicaram ontem sobre sua morte, ocorrida no sabado, em consequencia de um ataque cardiaco. Mas numa nota será dada hoje no "Pravda", informou-se.
O ex-primeiro-ministro e chefe do Partido Comunista morreu num hospital de funcionarios do Kremlin.

A morte foi divulgada através de amigos da familia, e mais tarde confirmada por um funcionario da chancelaria. No entanto, não houve nenhum comunicado publico de radio de Moscou, nem da agencia Tass.
Salvo em casos excepcionais, a imprensa sovietica não cita as informações iniciais sobre falecimentos, publicando notas necrologidas oficiais dois dias depois, ou mais.
A falta de informação sobre a morte de Kruschev pode significar que os jornais receberam ordens de dar apenas rotineiro a qualquer outro cidadão de destaque na União Sovietica.
Desde que foi derrubado em outubro de 1964, pelos atuais dirigentes do Kremlin, Kruschev viveu numa como da casa de campos nos arredores de Moscou.
Suas atividades nunca foram reveladas pela imprensa, e seu nome só aparecia nos relatos oficiais.

O enterro

Os amigos da familia informaram que Nikita será enterrado hoje no cemiterio Novodeivicky, em Moscou.
Naquele cemiterio estão sepultados muitos cidadãos importantes que não merecem a honra de um funeral aparatoso e nem o muro do Kremlin.
Mesmo quando Nikita foi despojado de todos os seus cargos e ignorado oficialmente, as homenagens anteriormente recebidas, como heroi da União Sovietica e ganhador do premio Lenin da Paz, não foram retiradas.
Estas honradas seriam suficientes para dar a Nikita Kruschev uma sepultura de honra, mas ele não será enterrado no muro do Kremlin.

Uma analise

Nikita Kruschev será recordado na historia como um dos "jogadores" mais espetaculares do mundo, talvez muito depois que seus detratores sovieticos tenham sido esquecidos, opinaram ontem varios observadores norte-americanos.
Seus sucessores expurgaram seu nome da historia e ainda lhe negam a honra de ser enterrado no muro do Kremlin.
"Contudo, não poderão apagar a marca que Kruschev deixou no mundo, no comunismo e na propria União Sovietica. O Kremlin já compreendeu que era dificil suceder a Kruschev. Em comparação com ele, seus sucessores deram a grande parte do mundo, a impressão de que são uns burocratas lerdos, sem imaginação", disser o especialista em assuntos sovieticos William Ryan.
Como jogador consumado, Nikita entrou de cheio no jogo da politica das grandes potencias. As vezes era temerario, tanto em questões internas como em suas relações com os Estados Unidos.
Houve ocasiões em que não hesitou em jogar com o futuro da paz mundial na perseguição de seus fins politicos. Era capaz de aproximar-se da beira do desastre mundial, como o fez pelo menos em duas ocasiões; durante a crise cubana de 1962 e quando, em 1961, por causa de Berlim, viram-se frente a frente os tanques da União Sovietica e dos Estados Unidos" - continuou Ryan.
"Kruschev, tendo contemplado o abismo, era tambem capaz de recordar suas responsabilidades como dirigente mundial e como estadista russo. Quando a paz do mundo se viu seriamente ameaçada, deu um passo atrás."
"Deve-se a ele o fato de o comunismo internacional ser agora muito diferente do que era antes que irrompesse no cenario. Contribuiu muito para pôr em desenvolvimento um processo de cisão, desenvolvido a tal grau que já não havia um movimento comunista mundial", concluiu Ryan.

Reações

"O renegado Nikita Kruschev, que dirigiu durante onze anos a corte de traidores revisionistas sovieticos, morreu", anunciou ontem em breve comunicado a agencia de imprensa da Albania.
Acusou o falecido lider de haver trabalhado contra o marxismo-leninismo e de "advogar a restauração do capitalismo na União Sovietica".
"Sabe-se, concluiu a agencia, que em 14 de outubro de 1964, os outros membros de sua corte, Brejnev, Kossygin e Podgorny, vendo que Kruschev estava desacreditado e já não podia fazer sua politica anti-marxista, derrubaram-no do poder."
Mas Nikita Kruschev foi elogiado por estadistas e cidadãos de todo o mundo, que o qualificaram de dirigente de singular importancia.
Falando em Washington, em nome do presidente norte-americano o secretario de Imprensa Ronald Ziegler disse que Kruschev "foi uma grande figura mundial e que é bem conhecida a sua contribuição para a historia sovietica".
"O presidente conheceu bem o senhor Kruschev e o respeitou por considerá-lo um vigoroso e espetacular defensor de suas crenças", acrescentou Ziegler.
U Thant, secretario-geral das Nações Unidas, disse que conserva "recordações muito agradaveis" de varias reuniões mantidas com o ex-dirigente sovietico.
O senador Edward Kennedy cujo irmão, o falecido presidente Kennedy enfrentou Kruschev durante a crise cubana dos foguetes, em 1962, expressou o seu pesar. "Ele decidiu colocar a causa da paz e o destino da Humanidade acima dos interesses nacionais", declarou Kennedy.
A senhora Indira Gandhi, primeira-ministra da India, declarou que Kruschev foi "um homem do povo. Sua atitude amistosa para com a India, num momento decisivo, refletiu a profunda e duradoura amizade existente entre os dois paises e povos".
Em mensagem de condolencias à sra. Kruschev, enviada através da embaixada indiana em Moscou, a sra. Gandhi Salienta que a vista do antigo lider sovietico a India, em 1955, "deixou uma impressão muito favoravel entre os dirigentes e o povo".
Em Varsovia, a noticia da morte de Kruschev recebeu espaço diminuto nos jornais da Polonia.
O "Tribuna Ludo", órgão oficial do Partido Comunista deixou ao ex-lider sovietico apenas 30 palavras. Menciona o obito, os postos por ele ocupados, mas não tece qualquer comentario.
Outro jornal, "Zycie Warszawy" publicou uma fotografia, numa só coluna, reproduzindo as mesmas 30 palavras .

O povo, nas ruas, demonstrou maior interesse. Um homem comentou: «Houve um tempo em que, apenas espirrando, ele já era noticia».

Uma pergunta da tribuna

MOSCOU - Muitas anedotas, algumas delas, sem duvida, produto da imaginação, existem com relação a sessão secreta do Partido Comunista sovietico em 1956, durante a qual Nikita Kruschev denunciou Josef Stalin.

Uma delas narra o seguinte:

Um delegado gritou do fundo do salão, no momento em que Kruschev se referia a fase de terrorismo de Stalin:

"E onde estava você enquanto tudo isso acontecia?"

Kruschev respondeu:

"Quem disse isso?"

ninguem respondeu e Kruschev repetiu a pergunta.

Tampouco houve resposta.

"Estava aí", disse Kruschev olhando para a Assembléia. "Estava aí, silencioso e prudente".


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