ARTE DE SER CARRASCO


Publicado na Folha da Manhã, Domingo, 13 de novembro de 1949

Neste texto foi mantida a grafia original


A China sofre, atualmente, uma ruína política e social que, certamente, repercutirá sobre todos os usos e costumes da população. A China, país de lendas e tradições seculares, não seguiu até agora a evolução do tempo. Ficou, em muitos dominios, para trás; usa ainda hoje metodos dignos das antigas dinastias primitivas que tiveram sua grandeza já há seculos.
Um desses metodos, é a condenação à morte por decapitação, mostrando claramente o atraso de adaptação ao progresso da vida.
Ainda recentemente, em breve comunicado de uma agencia sob controle comunista, anunciava-se que a cabeça do terrível bandido Yang tinha caído sob o golpe de sabre do carrasco...

Concepção artistica da pena de morte

O sabre do carrasco? Para os ocidentais, a guilhotina, o enforcamento automático, o fuzilamento, a cadeira eletrica, tiraram da pena de morte o seu carater... artistico!
As execuções capitais não mais oferecem emoção - chamemô-la estatica - que tinham outrora. Os carrascos modernos não têm mais a expressão feroz que o povo lhes atribua. Falta-lhes personalidade, relevo. Todos se igualam. A mecanica vulgarizou os rivais de Sonson e Deibler: sua missão reduz-se a puxar uma alavanca ou apertar um botão...
No Oriente ao contrario, ontem como hoje, o carrasco conserva ainda seu prestigio historico. Sob o céu da China ou das Indias, o carrasco que mata com "a faca" toma um relevo romantico. Sua disciplina é resultado de uma longa pratica. Numerosos dentre eles - a poesia popular guarda os seus nomes - souberam fazer da decapitação uma pagina... de arte.
É por isso, naturalmente, que os juizes de Yang quiseram que o bandido fosse executado por Wang, o mais celebre dos carrascos chineses. Wang tem o apelido de "Um golpe", pois nunca o viram bater duas vezes na mesma nuca. A rapidez com que decepou de um só golpe - seco e rapido - despertou um ligeiro murmurio de admiração entre os espectadores.
O fantastico Wang - motivo de orgulho do mundo dos ceifeiros de cabeças - merecia descer em linha reta ao inimitavel Kint, herói de uma lenda, que se perpetuou de geração em geração desde mais de três seculos.

O terrivel concurso

Nos Estados de Kiang-Son, rei famoso por suas crueldades e pela maravilhosa beleza de sua filha, aproximadamente no meio do seculo 17, foi posto em concurso o lugar de carrasco. Três candidatos apresentaram-se: Kint, que era então desconhecido, e dois outros, dos quais o tempo apagou os nomes.
O terrivel exame teve lugar uma manhã, no grande parque do palacio, diante do rei e de oito juízes. Naquele dia - bem raro - não havia condenados à morte, nas prisões. Para que a festa não fosse transferida, o intendente escolheu três vitimas dentre os escravos. À hora marcada, e diante de um publico numerosíssimo, formado pelas damas e senhoras mais nobres, o espetaculo foi iniciado.
Os costumes, vermelhos, azuis, verdes, violetas, sobre os quais o brilho do ouro triunfava, davam à festa formidavel magnificencia.
O primeiro candidato apresenta-se. Parecia ter vinte anos. Depois de ter tocado a terra com a testa, diante do trono, fez com que o condenado se ajoelhasse, convidou-o a estender o pescoço e, com um golpe de mestre, decapitou-o. A cabeça, solta, não caiu verticalmente - fez uma curva elegante. Um murmurio de admiração percorreu a platéia e a delicada Hi-Bo, a filha do rei, acariciou com a doçura de seus olhos obliquos, o matador.
O segundo candidato apresenta-se. Um dos juízes previne-o de que se deve retirar, se não está à altura do seu professor. Em caso contrario, seria castigado. Senhor de si, responde: - "Sei fazer algo mais". Então, instalou a vitima, ajoelhada e sentada sobre os pés. O aço traçou por duas vezes no ar, um círculo de fogo e tocou horizontalmente a nuca da vitima. Para espanto de todos, a cabeça não se mexeu. Tinha naturalmente errado o golpe.
- Fora! Que o condenem a morte! - gritava alguns convidados. Mas aquele a quem vaiavam, sorriu discreta, quase imperceptivelmente e disse: - "Está morto... Pegou a cabeça pelos cabelos. Desprendeu-a do tronco, toda suja de sangue, e mostrou-a ao publico, no qual a colera, instantaneamente, transformou-se em admiração e aplausos.
A ovação prosseguiu ainda, quando Kint se apresentou. Seus largos ombros, a dureza do seu olhar, acusavam uns quarenta anos.
O juiz que presidia ao juri convidou-o a renunciar à prova. Kint replicou tranquilamente: - "Posso fazer melhor... Vou mostrar-lhes o que nunca viram..."
Fez a vitima sentar-se sobre os pés, o busto reto. Rapidamente, fez o gesto de cortar a garganta. Desta vez, a cabeça ainda não se moveu e a vitima nem se mexeu. O publico calou-se, desconfiado.
Subito, a vitima interpelou o matador:
- Não me faças sofrer, selvagem! Mata-me de uma vez... como resposta, Kint deu-lhe uma pancadinha na nuca e a cabeça rolou por terra: tinha-o decapitado tão rapidamente que a morte nem tinha percebido...

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