IMPASSE NO CHILE, DEZ ANOS DEPOIS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 11 de setembro de 1983
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Há exatamente dez anos, da manhã de 11 de setembro de
1973, jatos Camberra da Força Aérea chilena bombardeavam
o palácio presidencial de La Moneda. Era o fim do governo constitucional
de Salvador Allende, que morreu metralhado (a versão oficial
diz que o chefe de Estado se suicidou), resistindo com um rifle dourado
que ganhara de presente de Fidel Castro.
Hoje,
o regime do general Pinochet festeja os 10 anos de poder sob o protesto
da maioria dos chilenos. Os principais segmentos da sociedade civil,
agrupada em torno da Democracia Cristã, pedem a volta do
Estado democrático. As frequentes jornadas de protesto, que
ceifaram a vida de dezenas de pessoas, são no momento o quadro
mais dramático da crise chilena, gerada por uma prolongada
recessão econômica e alto índice de desemprego,
além de uma dívida externa sufocante.
Medidas
de exceção, que expirariam hoje, foram prorrogadas
por mais seis meses, novas prisões foram efetuadas e a Aliança
Democrática sustou o recém-aberto diálogo com
o governo.
"Estamos
empenhados em livrarmo-nos desta ditadura e devolver ao povo seu
poder de decisão", afirma o ex-chanceler Gabriel Valdés,
em entrevista exclusiva À "Folha".
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O
período de transição já começou,
diz Gabriel Valdés |
Ministro das Relações Exteriores durante os seis anos
de governo de Eduardo Frei, subsecretário da Organização
das Nações Unidas durante anos, Gabriel Valdés
foi eleito, em maio de 1982, presidente da Democracia Cristã
chilena. Após sua prisão, por ordem do general Pinochet,
em junho do ano passado, ele surgiu no cenário político
chileno como o mais expressivo líder da oposição.
Atualmente é um dos responsáveis pela organização
da Aliança Democrática e pela elaboração
das reivindicações que a oposição pretende
encaminhar ao ministro Onofre Jarpa. Esta entrevista exclusiva à
"Folha" - realizada pela jornalista Patricia Verdugo - foi
concedida em meio a uma agitada campanha política quando Gabriel
Valdés, junto com outros líderes da oposição
chilena, ajudava a preparar a 5ª Jornada de Protesto do dia 8
de setembro.
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'Todos
fomos responsáveis por 1973' |
"Folha" - Qual o papel da Democracia Cristã na atual
situação?
Valdés
- Um papel importante porque a DC é uma força
considerável na política e na sociedade de meu país.
Fiz na semana passada uma viagem às provincias do Sul e encontrei
um enorme entusiasmo e uma demonstração massiva de
adesão a nossos princípios. O sentimento era paralelamente
de oposição ao regime de Pinochet. Admirei-me pela
quantidade de jovens que nos prestigiou, o fervor das mulheres,
a diversidade do apoio que recebemos de setores profissionais. E
falo de milhares de chilenos que participaram de nossos comícios
e depois saíam às ruas em passeatas espontâneas.
Estamos decididos - como o sedimentamos no quadro da Aliança
Democrática - a articular uma força que se encarregue
do processo de transição e, eventualmente se assim
o povo desejar, do governo da República, ou pelo menos da
formação das bases de um futuro governo.
O período de transição já começou,
e a DC já demonstrou sua vontade de trabalhar com as outras
forças políticas democrática. Vejo ao mesmo
tempo um futuro luminoso, mas um presente cheio de incertezas.
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"Cometemos
erros" |
"Folha" - A DC chegou a fazer uma análise autocrítica
sobre sua postura ao se iniciar o governo Allende, durante o golpe
e durante a ditadura?
Valdés
- Claro que o fizemos. Já se passaram dez anos, o que
nos deu tempo e oportunidade para fazê-lo. Creio que todos
os chilenos, diante da dureza do regime, tivemos a limpeza de espírito
suficiente para nos autocriticar. Fomos todos (alguns mais, outros
menos) responsáveis pelo colapso que o país sofreu
em 1973.
Mas desejo ser bastante categórico: em 1973 havia os que
governavam e os que tinham perdido a eleição de 1970.
Procuramos tornar viável o regime da Unidade Popular, apesar
de todos os problemas que esta postura acarretava. Votamos no nome
de Allende quando, por não ter obtido maioria absoluta nas
urnas, sua indicação à presidência ficou
a cargo do Congresso Nacional. Tratamos, até o fim, de buscar
um acordo com as forças que o acompanhavam, as mesmas forças
que tinham cometido o erro de, em 1964, negar ao então recém-eleito
presidente Eduardo Frei o mínimo para se garantir nosso governo.
Foi lamentável constatar o grau de paixões então
existente. A democracia não pode ser construída e
mantida com paixões. É preciso se comportar com generosidade
e com a razão. Não com ideologismos excludentes e
absorventes. A democracia é uma tarefa de todos. Cometemos
erros e estamos dispostos a não repeti-los.
"Folha"- Durante o governo Allende, a situação
econômica tornou-se de extrema gravidade. Agora, afirma-se
o mesmo. Ora, o regime de então e o de agora são diametralmente
opostos. Como explicar esta coincidência?
Valdés
- A gravidade das crises é de natureza distinta. Durante
o governo do presidente Allende, produziu-se uma desordem indescritível
das forças sociais. Os trabalhadores não podiam trabalhar
e os estudantes não podiam estudar em razão desta
desordem coletiva. Mesmo assim, se comprarmos os índices
de produção, os do triênio 71-73 são
bem melhores que os atuais. A crise da época era de ordem
social e política, com uma fortíssima ameaça
pesando sobre a propriedade privada. Mas na época o Chile
produzia 1 milhão e 300 mil toneladas de trigo, contra uma
colheita atual de apenas 300 mil toneladas
A crise
de agora é estrutural, provocada pelo modelo econômico
aplicado sob a proteção da ditadura militar. É
uma crise gerada pela aplicação dogmática deste
modelo, e que levou ao sucateamente da indústria nacional,
ao esfacelamento de sua agricultura, a redução a zero
dos investimentos, ao endividamento externo que é o maior
per cápita do mundo. Desse modo, a crise é hoje bem
mais séria que há uma década.
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A
caminho do colapso |
"Folha" - Em que forças se apóia atualmente
Pinochet?
Valdés
- Trata-se de um governo basicamente reduzido ao apoio militar,
a uma direita política e financeira. Mas este apoio é
cada vez menor. E creio que sua base de sustentação
na opinião pública é mínima.
"Folha"
- Ele poderá resistir com esta sustentação
atrofiada, utilizando apenas o poder da força?
Valdés
- Não acredito, por mais que possa sobreviver por algum
tempo. Caminha, entretanto, para seu próprio colapso, na
medida em que os cidadãos forem-se exprimindo e ocupando
os espaços de liberdade que já estão conquistando.
"Folha"
- As Jornadas Nacionais de Protesto ajudam ou dificultam o estabelecimento
da democracia?
Valdés
- Creio que o protesto é decisivo para convencer o governo
de que não dispõe de apoio popular. O protesto transformou-se
na forma legítima de nosso povo se exprimir, na medida em
que estavam entupidos (e declarados ilegais) todos os caminhos pelos
quais os cidadãos podem-se exprimir numa democracia. Refiro-me
aos partidos políticos, à representação
parlamentar, às eleições livres e periódicas,
às organizações sociais intermediárias
(associações profissionais, sindicatos). Desprovido
destes canais, o povo protestou, e o fez pacificamente. Se a violência
ocorreu, não foram os manifestantes que a promoveram, e temos
neste sentido testemunhos inequívocos.
A violência surgiu por duas razões. Há uma violência
institucionalizada, com 35 por cento de desempregados - cifra não
registra em nenhum outro país latino-americano -, com o setor
da produção endividado em proporções
superiores a sua capacidade de amortização (dívidas
em 150 por cento superiores ao capital e reservas) junto a um sistema
bancário tecnicamente quebrado. Esta é a violência
gerada pelo fracasso do sistema, é uma violência potencial
gigantesca. A segunda violência é a provocada pela
polícia, pelo Exército, que no último protesto
de agosto tentou abafar até algo de doméstico, como
o protesto do bater das caçarolas. E como resposta ao homem
ou a mulher que protestava deste modo se disparou com fuzil de guerra.
Isso nós denunciamos com toda a força, porque são
atitudes desse tipo que geram a violência.
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Assembléia
Constituinte |
"Folha"- Que perspectiva existem para que a democracia
volte ao Chile? É possível que isso aconteça
sob o atual governo, com um general Pinochet que se fez eleger até
1990 e que, inclusive, estabeleceu suas condições na
Constituição para poder ser eleito pela Junta de Governo
até 1997?
Valdés
- Acredito que não. E temos dito isso publicamente. Dissemos
- ao formar a Aliança Democrática - que o Estado deve
ser dirigido por uma pessoa que inspire a confiança de que
realmente caminhamos para uma democracia. E que tenha o consenso
nacional. Porque o que qualquer governo tem que fazer agora é
organizar a sociedade para voltar à democracia. Para nós
isso significa, em primeiro lugar, ter uma Assembléia Constituinte
que devolva ao povo sua soberania. Que ele eleja seus representantes,
livre e informadamente, para que redijam uma nova Constituição.
Acreditamos que o atual chefe de Estado não reúne
nenhuma destas condições, porque nos últimos
dez anos vimos como atua e o resultado de sua gestão.
"Folha"
- O governo anuncia pacotes de medidas políticas e econômicas,
como o oposição vê isso?
Valdés
- Toda medida que vá na direção da democracia
vemos como positiva. O que nos preocupa é que as medidas
estão sendo tomadas tardiamente e, por isso mesmo, são
insuficientes. São defensivas ante a realidade que se impõe.
Acreditamos que ainda não existe uma vontade real de mudar
radicalmente o esquema econômico, que vai de mal a pior. E
quando o governo fala em estudar novas leis políticas, o
que faz é enviar um projeto de um setor do governo (o Gabinete)
para outro setor (o Conselho de Estado). Assim passaram-se dez anos
de comissões. Mas, da mesma maneira que somos pessimistas,
também temos uma grande esperança, porque sabemos
que - com eles ou sem eles - o povo chileno conquistará a
sua liberdade.
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Fora
do governo |
"Folha" - Em relação ao estudo das leis
políticas (registro eleitoral, estatuto dos partidos, funcionamento
do Congresso, etc.), a ser coordenado pelo Conselho de Estado, o que
fará a Aliança Democrática? Aceitará que
seus dirigentes - aqueles que foram convidados - participem dele?
Valdés
- Não, nós não vamos participar de estudos
que se façam dentro da estrutura do governo. Nossa equipe
de estudos constitucionais - chamado Grupo dos 24, formados em 1978
- está elaborando seus próprios projetos, que serão
analisados com a opinião pública. Há poucos
dias, por exemplo, demos a conhecer nosso projeto de estatuto dos
partidos políticos. Agora, se o governo os leva em conta...
"Folha"
- Caso as condições políticas mudem e se convoquem
eleições gerais, o senhor seria candidato à
presidência da República?
Valdés
- Não posso responder a esta pergunta. Primeiro, porque
tal possibilidade ainda está distante. Segundo, porque o
candidato ou os candidatos serão escolhidos pelos partidos
políticos e ninguém está pensando neste assunto
agora. É prematuro discutir isso, só perturbaria o
processo em que estamos empenhados: livrarmo-nos desta ditadura
e devolver ao povo seu poder de decisão, sua soberania. Então,
o próprio povo decidirá...
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