ARGENTINA VOTA COM EXERCITO NAS RUAS

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 10 de março de 1973

Encerrada a campanha eleitoral para as eleições presidenciais de amanhã na Argentina (13 milhões de eleitores), o Exercito iniciou a movimentação de 100 mil soldados para cobrir os distritos eleitorais de todo o país. O ultimo dia de campanha foi marcado por graves acusações do candidato peronista Hector Campora, que acusou o general-presidente Alejandro Lanusse "de financiar uma campanha de mentiras para nos colocar na ilegalidade".
Campora é o favorito mas não deverá obter a maioria absoluta, necessaria para sua eleição amanhã. É no segundo turno, provavelmente a 8 de abril, que estão depositadas as esperanças de Ricardo Balbin, lider do Partido Radical e apontado pelas pesquisas de opinião publica como segundo principal candidato.
Belbin acredita que atrairá os votos de todas as outras forças politicas antiperonistas (dos agrupamentos de direita aos de esquerda) para derrotar Campora no segundo turno das eleições.
No encerramento da campanha, a grande surpresa foi o comicio do candidato esquerdista Oscar Alende, apoiado pelo Partido Comunista (ilegal), que reuniu 50 mil pessoas num estadio de futebol de Buenos Aires.

Forças Armadas a postos na Argentina

BUENOS AIRES - No momento em que os candidatos silenciavam, entrando em recesso 48 horas antes das eleições, Exercito argentino terminava a movimentação de 100 mil soldados para cobrir os distritos eleitorais e uma mensagem significativa saía do Grupo de Artilharia Antiaerea de Mar Del Plata. Seu comandante é um coronel, cuja intervenção representou a aparição publica de ativismo de quadros militares abaixo do generalato. "As Forças Armadas convocaram o povo a eleger quem vai governar representando-o", proclamou o coronel Antonio Figueiroa. "Assim o fizeram certas do patriotismo, amadurecimento politico e responsabilidade populares,. Voltamos dessa maneira ao exercicio institucional da autoridade. Os únicos inimigos dessa volta são os que não têm o apoio do povo, recusam as decisões democraticas expressadas em liberdade ou querem a violencia. As Forças Armadas garantirão o direito de voto e assegurarão a vigencia dos dispositivos constitucionais que o protegem".
O ministro do Interior afirma que um moderno sistema de computação, alimentado quase instantaneamente por contagens feitas nas próprias mesas de votação e despachados por 350 mil funcionarios, permitirá saber ainda na noite de domingo o nome do candidato presidencial majoritario. Numa mensagem à meia-noite de sábado, quando indeciso representando 25 por cento do eleitorado tomarão intimamente a decisão final, o presidente Lanusse ressaltará o "fato historico" de que "pela primeira vez em 17 anos a Argentina vai as urnas sem qualquer tipo de proscrição". É o tempo entre a derrubada de Peron em junho de 1955 e as eleições de março de 1973, durante o qual fracassaram as duas tentativas (as ascensões de Arturo Frondizi em 1958 e de Arturo Illia em 1963), de restabelecer o poder civil com o peronismo marginalizado do jogo politico.

Duas forças

Esse conjunto de intenções resultará numa volta tranquila e estavel ao regime constitucional? As duas maiores forças da Argentina, o peronismo e o radicalismo, cada uma jogando com antecedentes que cobrem quase toda a população, mostram a disposição de defenderem juntas o processo. O radicalismo foi a expressão de uma classe média cuja emergencia levou ao poder nas decada de 20 o primeiro caudilho. Hipolito Yrigoyen, a lutar contra a oligarquia tradicionalmente enraizada em palacio. O peronismo levantou depois, com métodos ditatoriais e paternalistas, a bandeira de incorporação do proletariado a uma sociedade em nova transição.
A Argentina vive outros tempos, mas o peronismo e o radicalismo permanecem como forças hegemonicas tocadas por variações que transitam num ambito limitado aos dois. O forte empobrecimento da classe média, proletarizando-a determinou o aumento das bases peronistas e a modificação da ideologia radical. "Parece até que você me roubou a plataforma eleitoral", disse para Campora, da "Frente Justificativa de Libertação", o candidato do Partido Radical, Ricardo Balbin. Campora e Balbin reuniram-se com os outros sete candidatos numa mesa-redonda na "Confederação Geral Economica", entidade empresarial nacionalista, e ambos coincidiram em muitos pontos com a mesma dose de agressividade. Balbin atacou violentamente as empresas multinacionais, se estendendo em condenações a praticas de investidores estrangeiros e talvez justificando o desabafo de um executivo norte-americano de que "preferimos a peronista Campora ao radical Balbin". Por que? "Campora não precisa provar que é antiamericano e Balbin precisa".

Uma denuncia

Quando a campanha se esgotava o peronismo esqueceu um pouco as plataformas eleitorais e explodiu numa denúncia que alcançou diretamente o palacio do governo e indiretamente o proprio general Lanusse. Falando a jornalistas argentinos e estrangeiros, Campora citou nominalmente Eduardo Sajon, secretario de Imprensa da presidencia, cargo de nivel ministerial, de financiar a "campanha de mentiras" contra a "Frente Justicialista de Libertação". Estavam na entrevista altos dirigentes da coligação liderada pelos peronistas, inclusive o ex-presidente Frondizi. Campora parecia esgotado pela campanha. "Lamento ter de fazer graves denuncias, mas somos obrigados a isso", disse logo de entrada dando a todos a sensação de um momento dramatico. Continuou:
- "A Argentina quer viver em paz e pela paz, mas permanecem as manobras visando a deformar o papel de nosso movimento popular. Há algo orquestrado contra nós. Querem mostrar-nos envolvidos com a violencia. É uma mentira. Vejam os comunicados anonimos publicados nos jornais. Tiveram valentia para fuzilar em 1956 e matar gente na praça de Mayo. Onde está a coragem para assinar os comunicados? Os responsaveis estão dentro do governo. Este é um momento de decisão. O que pretendem? Temos informação de que os comunicados são pagos pela secretaria de imprensa da presidencia. Preparam a fraude com a inclusão até de mortos nos registros eleitorais. Querem afogar-nos em alguma armadilha. Recebemos denuncia de que vão circular votos falsos que anulariam as eleições. A campanha eleitoral terminou para nós, mas não terminou para o governo. Ainda vão falar o presidente Lanusse e o ministro do Interior, Mar Roig. Não permitir a divulgação de resultados parciais é a fraude mais vergonhosa que já vimos. Podem afirmar, no entanto, à opinião publica argentina e mundial nem com todo esse dinheiro conseguirão impedir a nossa vitoria".

O sequestro

O candidato peronista chamou de "suposto sequestro", cujo intensão era tumultuar as eleições, o sequestro por algumas horas na quinta-feira do diretor do jornal "Cronica". A divulgação de um manifesto guerrilheiro apoiando a "Frente Justicialista de Libertação" teria sido a exigencia dos sequestradores. Há um esforço evidente para comprometer o peronismo com o terrorismo. "Este é um momento", afirmou Campora já quase sem voz e entregando simultaneamente um comunicado oficial acusando o governo argentino de varias coisas. "O governo executa manobra confusionista e intimidatoria para apresentar a iminente vitoria da frente como um perigo para a paz social", diz o comunicado. Pede a "união nacional", e "guarda contra essa campanha de mentiras".
Não se conhece até o momento nenhuma reação oficial a ultima e violenta investida do peronismo. Simplesmente continuam os desdobramentos confusos de uma campanha confusa para eleições de consequencias imprivisiveis. Outra novidade é incorporada: para triunfar na primeira votação será preciso conseguir mais da metade de todos os votos depositados, inclusive os nulos. Campora, de seu lado, terminou a campanha sem haver assumido uma personalidade propria. Isto era visivel no comicio de encerramento e na entrevista coletiva. "O povo está nas ruas por Peron e pela libertação", disse à multidão reunida no estadio de futebol do "Independientes", no suburbio industrial de Avellaneda. "Dependencia ou libertação Lanusse ou Peron", gritou ele proprio em meio ao slogan "Campora no governo e Peron no poder", cantado pela multidão.
Em suas "pautas programaticas" promete o candidato peronista textualmente:- "Lealdade total e incandicional aos meus verdadeiros amigos. Considero o maior deles o general Juan Peron e fui leal a ele dentro e fora do governo. A esta lealdade pessoal se soma a lealdade especial que se deve a um chefe". Qual seria o verdadeiro papel de Peron desde que Campora triunfe e assuma o poder na Argentina? responde o proprio Campora: "Nele me inspirei. Em seus postulados, sua doutrina e no governo que conduziu entre 1946 e 1955. Há que adaptar essa doutrina as novas circunstancias nacionais e internacionais". Isto não implicaria na implantação de um duplo poder? De novo responde Campora:- "Não creio. O primeiro a tratar para que não haja duplo poder será Peron mesmo. Ele apenas estará conjugado com os homens que governam por serem de sua confiança. Jamais trairemos essa confiança.".
O proprio Campora, portanto, se encarrega de dizer que ele não existe. Quem existe é ainda Peron. Este é o principal argumento usado pelo regime militar no pedido a justiça para que a "Frente Justificativa de Libertação" seja proscrita. Segundo a Constituição o poder deve ser exercido em nome do povo pela pessoa eleita pelo povo. Mas a Argentina vive uma situação talvez nunca experimentada por outro pais. Um ex-presidente deposto e exilado há 17 anos disputa o poder em eleições estando até proibido de regressar. Em que dará isto? Chegando ao poder, Campora continuará sendo o peronista de absoluta fidelidade escolhido para representar a Peron? O momento argentino é extremamente confuso e o futuro extremamente incerto. Terminada a campanha não se ve na população de Buenos Aires, onde estão 40 por cento do eleitorado, um grau de entusiasmo que corresponda ao "momento de decisão" proclamado por Campora. A sensação é a de que predomina o sentimento de 'confiar desconfiando".
Nem mesmo este quadro conseguiu, no momento, rompeu o velho formalismo proprio de final de eleições e bastante chegado ao espirito argentino. Cada um dos nove candidatos deu a sua ultima mensagem. "Queremos fundamentalmente que o pais recupere o poder de decisão", declara o candidato do Partido Radical, Ricardo Balbin, o segundo nos inqueritos de opinião publica. "Os setores politicos responsaveis tem a obrigação historica de esgotar as vias pacificas", disse Campora num esforço de distanciamento da violencia. "A Argentina continua presa à insegurança", afirma o ex-oficial de Marinha e ex-ministro do Bem-Estar Social, Francisco Manrique, possivelmente o terceiro colocado por força de uma politica populista. "Nada de atitudes vagas", proclama o candidato de extrema-direita, Julio Chamizo, da "Nueva Fierza", cuja campanha quase limitou-se a repetir a todo momento que "a Argentina não seguirá o exemplo de Cuba e do Chile". Ai estão algumas das figuras em cena. As restantes naufragaram num mar de confusão.

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