ENCÍCLICA PROÍBE TODA DIVERGÊNCIA COM O PAPA

O Vaticano apresenta hoje o texto integral da décima encíclica do papa João Paulo 2.º, o "Esplendor da Verdade". Intelectuais católicos chamam o documento de ""Horror dos Teólogos", porque ele condena qualquer divergência com as opiniões do papa. Teólogos que discordem da linha do Vaticano não devem ser autorizados a dar aulas nem a publicar livros.

"Terror teologico"
Nova encíclica proíbe a divergência
"Esplendor da Verdade', o documento conservador a ser divulgado hoje, exige obediência total a João Paulo 2.º

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 5 de outubro de 1993

Mauricio Stycer
Da Reportagem Local

- O cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), apresenta hoje no Vaticano, às 11h30 (7h30 em Brasília), o texto integral da encíclica "Veritatis Splendor" -o "Esplendor da Verdade"-, a décima publicada pelo papa João Paulo 2.º. Trata-se, segundo se pôde ler em versões do texto vazadas para a imprensa, do documento mais conservador já produzido pelo atual papa.
Intelectuais católicos que tiveram acesso ao conteúdo do documento apelidaram a encíclica de "Theologorum Horror" (ou ""Horror dos Teólogos"), pelo fato de ela condenar qualquer tipo de divergência com as opiniões do papa. O texto foi recentemente divulgado na íntegra pela agência de notícias italiana "Adista" e pela revista francesa "Golias" (*leia texto abaixo).
"A oposição ao ensinamento dos pastores da Igreja não pode ser vista como uma legítima expressão da liberdade cristã ou dos dons do espírito", diz, por exemplo, um trecho da encíclica, na versão divulgada pela "Adista".
Conflitos de opinião, segundo o papa, são normais numa democracia -não na Igreja. A encíclica afirma que o ensinamento moral não pode se basear em "procedimentos deliberativos" -uma forma educada de dizer que quem manda na Igreja é João Paulo 2.º e ninguém mais.
"A divergência, sob forma de protesto bem-orquestrado e de polêmicas conduzidas pelos meios de comunicação, está em oposição à comunhão eclesial e a uma correta compreensão da constituição hierárquica do povo de Deus", diz o texto divulgado pela agência católica "Adista".
Teólogos que venham a divergir da linha do Vaticano não devem ser autorizados a dar aulas ou publicar livros. Universidades e escolas católicas devem perder o ""católica" do título se não aplicarem com rigor os princípios morais e éticos da Igreja.
A encíclica não se detém em nenhum tema específico, como sugere o subtítulo do documento -""Algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja". De qualquer maneira, João Paulo 2.º reitera em "Veritatis Splendor" a sua condenação a práticas que vem criticando cada vez com ênfase maior, como a contracepção, o aborto, o divórcio e a fecundação artificial.
O cardeal Joseph Ratzinger é apontado como o principal autor do texto da encíclica (o papa apenas reviu o documento). Segundo a "Adista", um importante colaborador de Ratzinger foi o sacerdote polonês Tadeusz Styczen, que sucedeu Karol Wojtyla (quando este foi escolhido papa) na cátedra de ética na Universidade Católica de Lublin.
A encíclica, que vinha sendo preparada há mais de seis anos, será divulgada hoje em latim com traduções em sete línguas (italiano, inglês, francês, alemão, polonês, espanhol e português).

Principais pontos da carta papal

A encíclica ""Veritatis Splendor" não traz novidades em termos de prescrições éticas e morais, como aborto, contracepção e divórcio. O documento enfatiza exatamente a autoridade suprema do papa em relação a essas questões. Veja abaixo alguns dos princípios abordados no documento:
1. Não é permitido ter divergências com o papa em matéria de ética e moral
2. "A oposição aos ensinamentos dos pastores da Igreja não pode ser vista como uma legítima expressão da liberdade cristã"
3. A divergência se opõe à comunhão eclesial (a unidade em torno da Igreja)
4. Os teólogos que divergem do papa não devem ter direito de ensinar e de publicar livros
5. Escolas, universidades e, mesmo, hospitais católicos devem perder este título ("católico") caso apresentem divergências com a linha do Vaticano
6. Quem aceita a orientação do Vaticano e renuncia ao desejo de exprimir suas dúvidas em público deve ser perdoado
7. O perdão vale também para quem reconhece sua "fraqueza" e pede perdão por seu "deslize"
Fontes: Agência "Adista" e jornal "La Repubblica"

Saiba o que é encíclica

Da Reportagem Local

Encíclicas são uma espécie de carta que os papas escrevem para manifestar a unidade doutrinária e diciplinar da Igreja Católica, além de orientar seus membros frente às questões colocadas pelo desenvolvimento da sociedade. Seus títulos derivam das primeiras palavras -em latim- do texto.
A carta é dirigida a todos os católicos. Nos últimos anos, vem abordando principalmente questões polêmicas, como o controle da natalidade (na ""Humanae Vitae", de Paulo 6.º, divulgada em 1968).
A palavra "encíclica" foi usada inicialmente para designar "cartas circulares", no século 4.º, enviadas pelos bispos a seus colegas de uma mesma região. O objetivo era já o de manter a unidade doutrinária da Igreja frente à pregação de grupos rebeldes.
A partir de Bento 24.º, em sua "Carta de Advertência a todos os Bispos", de 3 de dezembro de 1740, o termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa em forma de carta a toda a Igreja Católica.

D. Eugênio já recebeu texto

-O lançamento no Brasil da encíclica "Veritatis Splendor" será feito hoje em entrevista coletiva do arcebispo do Rio, d. Eugênio Sales, o principal interlocutor do papa João Paulo 2.º no país. Ao contrário de outros bispos e cardeais brasileiros, d. Eugênio já recebeu o texto da encíclica e até o comentou em seu programa radiofônico ""A Voz do Pastor", na última sexta-feira.
Entre os que afirmaram não ter recebido uma cópia do documento está o arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, um dos expoentes da chamada "ala progressista" da Igreja Católica. A assessoria de imprensa da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) informou ontem que a entidade também não havia recebido o documento.
Em Brasília, a Nunciatura Apostólica -a embaixada do Vaticano- informou que só hoje serão enviados exemplares da encíclica aos bispos brasileiros. O privilégio concedido a d. Eugênio reforça sua importância perante o papa -o arcebispo do Rio ocupa dez cargos no Vaticano.
Em seu pronunciamento de sexta-feira, d. Eugênio condenou os erros sobre a concepção de moral da Igreja que, segundo ele, são disseminados até mesmo em seminários e faculdades eclesiásticas. "Há uma ânsia de independência que termina por levar ao campo oposto, à subserviência e escravidão". Para d. Eugênio, a Igreja "deve indicar o caminho certo, e isto é o que faz a encíclica".
D. Eugênio foi um dos responsáveis pelos questionamentos que geraram as sucessivas punições ao teólogo e ex-padre Leonardo Boff. Uma das maiores divergências referia-se à possibilidade -defendida por Boff- de os leigos participarem da formulação da doutrina católica.

Colaboraram a Reportagem Local e a Sucursal de Brasília

Revista francesa aponta terror

Fernanda Scalzo
De Paris

Uma revista católica editada na França e na Bélgica antecipou para seus leitores o texto da encíclica "Veritatis Splendor". A revista "Golias", que se autodenomina "periódico católico terno e discordante", não informa como teve acesso à íntegra publicada na edição do outono (setembro), surpreendendo o próprio papa.
Segundo Christian Terras, diretor editorial da revista, o papa teria modificado o texto em função da publicação antecipada. A "Golias" faz duras críticas à encíclica, acusando-a de ignorar a evolução da humanidade e de repudiar a pesquisa dos teólogos.
Entre os teólogos procurados pela revista para comentar o texto da encíclica está o ex-frei Leonardo Boff, que disse: "Lendo esta encíclica, tem-se a impressão de que Roma está preparando a edição atualizada do 'Directorium Inquisitorum' contra os teólogos do mundo todo".
"Alguns podem ver aí o ápice do 'terror teológico' que o papa João Paulo 2.º e seu fiel tenente, o cardeal Ratzinger, fazem reinar no seio da Igreja Católica há muitos anos", diz a revista. O papa teria feito algumas modificações na encíclica, que estaria em sua versão oficial com "um tom mais leve, mais pastoral e menos doutrinal", afirmou Christian Terras à Folha.
A "Golias", revista de orientação de esquerda dentro da Igreja, justifica a antecipação do texto da encíclica pela necessidade de trazer à tona o debate entre todos que se interessam "pela fé, pela moral e pela liberdade, e não somente os padres e teólogos".

Debate alcança Reino Unido

A nova encíclica papal provoca polêmica no Reino Unido antes mesmo de seu lançamento. As reações destacam a impraticabilidade das recomendações de João Paulo 2.º, mas há também elogios à crítica do relativismo moral.
"Isso vai atingir os padres, pois eles não sabem bem o que fazer. E vai atingir o Terceiro Mundo, pois os bispos terão de reforçar a proibição ao controle da natalidade", diz uma ativista católica ao jornal "The Guardian".
Para John Marshall, professor de neurologia na Universidade de Londres que atuou como conselheiro na encíclica "Humanae Vitae" (1968), o Vaticano não entende o papel do sexo na sociedade moderna. "Ainda vêm o sexo orientado para a procriação e duvidam que o prazer do sexo seja uma dádiva de Deus", disse ao "The Guardian".
Essas dificuldades constituem, segundo o diário "The Times", o paradoxo da encíclica. Ao reiterar "verdades eternas e imutáveis", o papa rejeita argumentos seculares. "O relativismo moral não é somente errado em si mesmo, mas é inimigo mortal da felicidade humana. Essa é a sabedoria que o papa ensina", diz o jornal.
(Humberto Saccomandi)

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.