CRISE NO GOLFO PÉRSICO TRAZ SAUDADE DA GUERRA FRIA

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo 02 de setembro de 1990

Clóvis Rossi
Enviado especial a Nova York

A crise do golfo Pérsico completa um mês hoje, trazendo como principal e paradoxal consequência uma difusa saudade da Guerra Fria. A teoria da saudade se fundamenta na avaliação de que um mundo com múltiplos pólos de poder é menos previsível do que um mundo que vivia sob a polarização EUA-URSS.
Mas, se a existência de uma só superpotência, os Estados Unidos, certamente o torna mais previsível, o problema é que os norte-americanos não querem e não podem pagar pela estrutura militar que detêm. O fim da Guerra Fria gerou não um mundo multipolar, mas um mundo em que há um gigante com sérios problemas econômicos e candidatos a gigantes que não agem como tal.

Crise com Iraque traz saudades da Guerra Fria

Clóvis Rossi
Enviado especial a Nova York

A crise do golfo Pérsico, a primeira da era pós-Guerra Fria, completa um mês hoje, trazendo como principal e paradoxal consequência uma difusa saudade da Guerra Fria.
É verdade que bom antes do presidente iraquiano, Sadam Hussein, invadir o Kuait, no dia 2 de agosto, já havia nos Estados Unidos o receio de que o fim da Guerra Fria talvez não fosse exatamente o paraíso. Em setembro de 1989, o segundo homem na hierarquia do Departamento de Estado, Lawrence Eagleburger, já suspeitava: "Com todos os seus riscos e incertezas, a Guerra Fria se caracterizou por uma marcante estabilidade e um conjunto de relações previsíveis entre as grandes potências".
Mas a ofensiva de Sadam Hussein e a perspectiva de conflito em uma área em que estão enterrados quase US$ 13 trilhões em petróleo (ao custo atual de US$ 27 o barril) trouxeram à vida real o que parecia ser apenas exercício acadêmico ou diplomático.
"Administrar crises no Terceiro Mundo é, como Sadam Hussein nos obrigou a lembrar, muito mais complicado e exigente do que deter o aventureirismo soviético", escreve John Newhouse na revista "The New Yorker".
A revista "The Atlantic Monthly", por sua vez, dedica a sua capa de agosto justamente ao tema "porque nós logo vamos sentir saudades da Guerra Fria". É um resumo de um artigo do professor da Universidade de Chicago John Mearsheimer, escrito antes da crise e que passou a circular profusamente no Departamento de Estado.
A essência da teoria da saudade repousa na avaliação de que um mundo com múltiplos pólos de poder é menos previsível e, portanto, menos seguro do que o velho mundo da Guerra Fria.
A imprevisibilidade de fato existe. Mas a teoria tem pelo menos um furo essencial: é no mínimo discutível que o mundo pós-Guerra Fria seja multipolar. Na prática, o que a crise no Golfo está provando é que ficou de pé um único país, os Estados Unidos, com força ao mesmo tempo econômico e militar para merecer o nome de superpotência.
Uma só superpotência pode não tornar o mundo melhor, mas certamente o faria mais previsível, se não fosse um problema: "Os americanos se sentem confortáveis por terem uma grande estrutura militar, mas não querem e nem podem pagar por ela", resume o economista Jeffrey Garten, que está terminando um livro sobre a competição EUA-Japão-Alemanha no pós-Guerra Fria em outras.
Palavras, o papel de xerife do mundo recuperado pelos Estados Unidos, serviu para: 1) Inflar o orgulho da sociedade. "O trauma do Vietnã deve ter mesmo desaparecido, porque presume-se de novo que os EUA não podem perder", escreve em "Newsweek" Jonathan Alter, duro crítico da escalada militar no Golfo; 2) Mas serviu também para que os americanos exijam dividir o peso. "Assim como os EUA não mais dominam a economia mundial (...), nós não deveríamos continuar dominantes no fornecimento de músculos militar para conter ameaças à economia mundial", escreve para o "Los Angeles Times" o senador democrata Clairbone Pell, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado.
Fica claro que o fim da Guerra Fria gerou não um mundo multipolar mas um mundo em que há um gigante com sérios problemas econômicos (os EUA) e candidatos a gigantes que não agem como tais (Japão e Alemanha). O jogo mundial de xadrez ficou menos perigoso, sem dúvida, mas ficou também muito mais complicado e instigante.


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