KHOMEINI ANUNCIA A REPÚBLICA DO IRÃ


Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1979

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Desde o momento em que o aiatolá Khomeini desembarcou ontem em Teerã, após 15 anos de exilio, o Irã passou a viver, na prática, a dualidade de poderes. Milhões de pessoas saudaram a chegada de Khomeini, o que impediu que ele fizesse de carro o percurso de 32 quilômetros do aeroporto ao cemitério onde estão às vítimas da repressão do xá.
Discursando à nação muçulmana na "praça dos mártires da revolução", junto ao cemitério de Bechechte Zahra, o lider xiita indicou o caminho a seguir para a proclamação da República Islâmica no Irã. Este passa, segundo o aiatolá, pela expulsão de todos os estrangeiros do país, derrubada do governo do Bakhtiar e também pela dissolução do "Parlamento ilegal".
O primeiro-ministro Shapour Bakhtiar reiterou ontem que "não haverá dois governos no Irã, nem duas legalidades". Contudo, colaboradores do aiatolá informaram que, nos dois próximos dias, Khomeini organizará o Conselho da Revolução Islâmica, que pretende substituir o governo de Bakhtiar na direção do país. Um dos assessores de Khomeini informou que a população iraniana está se armando e o aiatolá advertiu os generais iranianos para que "não fiquem contra o povo".

Khomeini chega e instala governo paralelo em Teerã

Teerã - O líder de 33 milhões de iranianos muçulmanos xiitas, aiatolá Ruhollah Khomeini, regressou ontem a seu país após quinze anos de exílio, e prometeu criar uma "sociedade sem violências" através do estabelecimento de uma "república islâmica" no Irã. Milhões de pessoas - uma multidão sem precedentes, segundo a agência AFP - se postaram em torno do aeroporto de Mehrabad, ao longo do trajeto ao cemitério e em torno do próprio cemitério, para onde o líder se dirigiu após o desembarque, recepcionando o aiatolá, em uma manifestação "delirante", segundo as agências noticiosas.
A recepção ao aiatolá contou com cerca de cinco milhões de pessoas e contribuiu para uma avaliação do apoio que Khomeini receberá no Irã. Contudo, depois de liderar do exílio a luta contra a monarquia do xá, com inúmeras manifestações durante o último ano e uma greve total, paralisando o Irã há dois meses, poucos observadores duvidam da força do líder xiita.
O primeiro-ministro Shapour Bakhtiar reiterou quarta-feira que não admitirá um poder paralelo ao seu governo no país. Contudo, colaboradores do aiatolá disseram ontem que em dois dias Khomeini organizará o "Conselho da Revolução Islâmica", que governará provisoriamente o Irã após a "queda do governo de Bakhtiar". Um colaborador do líder xiita acrescentou que armas estão sendo distribuídas à população iraniana e explicou: "Ainda não foi dada a ordem de utilizá-las, mas a hora se aproxima".
As nove horas (2h30 em Brasília), o Boeing 747 da Air France pousou no aeroporto de Teerã, conduzindo o aiatolá, seu filho, cinquenta assessores e 150 jornalistas. No aeroporto havia cartazes com os dizeres: "Derrubemos o regime faraônico", "a nação muçulmana do Irã aceita de todo o coração o Conselho Revolucionário Islâmico eleito pelo grande líder".
Quando Khomeini, envolto em suas vestimentas escuras, firme porém visivelmente emocionado, apareceu na porta do avião, a multidão que cercava o aeroporto irrompeu em uma aclamação. Protegidos por membros de uma "polícia islâmica" - cinquenta mil voluntários foram organizados para proteger o aiatolá - Khomeini foi conduzido, em um automóvel, ao salão de honra do aeroporto.
Personalidades políticas e religiosas esperavam o aiatolá, entre elas estavam o aiatolá Taleghani, líder religioso de Teerã; Karin Sanjabi, presidente da Frente Nacional de Oposição; representantes das igrejas síria e armênia; e inúmeros dirigentes religiosos xiitas. As primeiras declarações do líder xiita foram no sentido de que a luta contra a monarquia está tendo êxito, mas "esta é apenas uma primeira etapa". Em seguida, Khomeini pregou a união de toda a oposição na luta contra a monarquia iraniana. A TV iraniana cobriu durante vinte minutos a chegada de Khomeini ao Irã, interrompendo em seguida a transmissão em virtude de "dificuldades técnicas".
Após deixar o aeroporto, Khomeini seguiu em carro aberto na direção do cemitério Behechte Zahra, onde está sepultada a maior parte das vítimas da violência dos últimos meses no Irã. No cemitério Khomeini faria um discurso à nação, indicando o rumo a seguir para a proclamação da "república islâmica". Atrás do carro do líder religioso seguiam vários micro-ônibus, levando os jornalistas e dirigentes políticos e religiosos.
Assim que a comitiva iniciou o percurso de 32 quilômetros que separam o aeroporto do cemitério, o cordão de proteção formado por cinquenta mil pessoas simplesmente desapareceu, pulverizado em meio à maré negra que se estendia até onde alcançava a vista ao longo das retilíneas avenidas de Teerã. Ao alcançar a praça central da capital - rebatizada Khomeini durante as últimas manifestações - o veículo que conduzia o aiatolá perdeu-se em meio à multidão que bloqueava completamente as ruas.
Foi desligado o motor do automóvel do aiatolá, que passou a ser empurrado e arrastado pela multidão, que levava enormes retratos de Khomeini e gritava "Alá é grande" e "Khomeini é nosso chefe". Em vista da impossibilidade de chegar ao cemitério através das ruas completamente congestionadas, o aiatolá completou a distância em um helicóptero. Chegando a Behechte Zahra, Khomeini foi levado à tribuna instalada na "praça dos mártires da revolução", enquanto um orador afirmava que "o heróico povo do Irã deseja unanimemente o estabelecimento de uma república islâmica no país, dirigida pelo aiatolá Khomeini". Em seguida, a pela primeira vez, ouviu-se o "hino da república islâmica".
Khomeini criticou violentamente em seu discurso, o governo do premiê Shapour Bakhtiar, chamando-o de "ilegal", do mesmo modo que o Parlamento, e ameaçou prender o primeiro ministro caso não renuncie. O aiatolá criticou a dinastia Pahlevi e afirmou que a Constituição monárquica de 1906 foi estabelecida pelas baionetas, contra a vontade da nação iraniana. Khomeini também não poupou críticas aos EUA e reiterou que expulsará os assessores militares norte-americanos do Irã.
Ao sair do cemitério, o líder religioso rumou ao hospital Pahlevi para visitar os feridos durante as últimas manifestações, para mais tarde dirigir-se a uma ex-escola, especialmente preparada pelos dirigentes religiosos xiitas para receber o aiatolá.
Los Angeles - O xá Reza Pahlevi deu instruções ao Exército iraniano para "atirar à vontade" contra os manifestantes, durante sua ausência, com o objetivo de provocar uma guerra civil prolongada e facilitar seu retorno ao poder, segundo discurso de 15 minutos contido numa fita, divulgado ontem pela emissora de televisão KNTX, de Los Angeles, operada pela cadeia CBS.
O discurso seriam instruções que o xá dera aos chefes militares dias antes de abandonar o Irã e teria sido gravado numa fita, posteriormente retirada do país, por um general de Exército dissidente. A fita foi entregue à CBS por um representante da Frente Nacional de Oposição nos Estados Unidos e segundo a AP, suas reproduções são vendidas a dois ou três dólares nas ruas de Teerã.
"Criando hostilidade e ódio entre o Exército e o povo, ordenando aos soldados para atirar a vontade e matar, vocês poderão jogar estas duas forças poderosas uma contra a outra. Uma longa guerra civil, assim criada, nos dará tempo suficiente para que possamos idealizar contramedidas, como por exemplo, a formação de um governo que seria aceitável até certo ponto pelo povo", diz a voz gravada, identificada pelos especialistas como sendo a do xá.
"O povo não deve ter liberdade em excesso, pois já mostrou que não merece esta bênção que lhe concedi", acrescentou.

As profecias do aiatolá

Teerã - Ao discursar ontem na "praça dos mártires da revolução", junto ao cemitério de Behechte Zahra, o aiatolá Khomeini demonstrou sua disposição de dirigir uma verdadeira "guerra santa" contra o governo do primeiro-ministro Shapour Bakhtiar. A seguir, os principais trechos do discurso do líder xiita:
1) Sobre a monarquia iraniana e a dinastia dos Pahlevi: "A dinastia Pahlevi foi desde o começo contra as normas. A Constituição que a estabeleceu (Constituição de 1906) foi imposta, a nação não a desejava. Estabeleceram a Constituição com as baionetas e forçaram a aprovação das leis"... "Ele (o xá) ainda está tentando um meio de voltar. O Irã sofreu cinquenta anos de tirania.
Perdemos tudo, nosso solo, cultura"... "Cinquenta anos de traição chegaram ao fim"... "O povo já deu sua opinião sobre o rei traidor e jamais permitirei que ele regresse".
2) Sobre o governo do primeiro-ministro Shapour Bakhtiar e o Parlamento: "O Parlamento e o governo são ilegais. Se eles continuarem no poder, nós os prenderemos e eu atirarei contra suas bocas"... "Nem o Exército nem o povo considera o governo de Bakhtiar legal"... "Acreditais por acaso que o Parlamento atua em vosso nome? O Parlamento é ilegal porque o xá é ilegal". "Processarei os membros do governo do premiê Bakhtiar em tribunais que eu mesmo designarei"...
3) Sobre o Exército iraniano e os EUA: "Queremos um Exército livre, orgulhoso e sólido"... "Unam-se (os militares) à maioria do povo e deixem de assassinar os filhos do Irã"... "Queremos que vocês (os generais iranianos) sejam independentes dos assessores norte-americanos. Vocês não desejam isso generais? Aconselho-os a ficarem do lado do povo"... "Não desejamos um sistema militar que alguém (Estados Unidos) possa dirigir para nós"... "Demos petróleo aos EUA e eles nos deram de volta armas, mas isso foi uma trapaça. Os EUA nos forçaram a manter bases e assessores militares. Assim, eles usaram nossas reservas de petróleo em seu próprio benefício"... "Peço a Deus que corte a mão (pena que deve ser imposta aos ladrões, segundo o Corão) de todos os assessores e funcionários estrangeiros que vivem no Irã" ... "Nossa luta continuará até deportamos os principais criminosos"... "Nossa vitória final será quando todos os estrangeiros deixarem o país e deixarem de orientar nosso Exército".
4) Sobre o governo que instalará no Irã: "Serei eu quem nomeará o novo governo"... "Designarei um governo com o apoio do povo"...
"Digo-lhes que cabe a todos nós prosseguir com esta revolução até escolhermos um governo"... "Nosso êxito é o resultado da unidade de todo o povo deste país. São seguidores de uma só palavra. "Islã", e até as minorias religiosas estão unidas ao "Islã"... "Eu me esforçarei para organizar uma sociedade onde não haja violência"... "Não sei como agradecer a este nobre povo que sacrificou tudo pela causa de sua revolução".

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