DIVORCIO NA ITALIA; VATICANO REAGE


Publicado na Folha de S. Paulo, quarta-feira, 2 de dezembro de 1970

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"Agora, da proxima vez que sua esposa o agredir com um sapato, você poderá ameaçá-la com o divorcio", exclamou alegremente um homem num bar de Roma.
"Sim, mas como pagá-lo?" - responde imediatamente o seu colega de mesa.
Ambos comentavam a aprovação final, pelo Parlamento, na madrugada de ontem, da lei do divorcio na Italia. O dialogo revela apenas uma faceta do "piccolo divorzio", que dividiu a opinião publica italiana e levou o Vaticano a fazer severa advertencia ao governo de Roma.
Os adeptos do divorcio dançavam ao amanhecer do dia; os opositores, começavam a recolher assinaturas para que a medida fosse submetida a plebiscito.
Contudo, o "picollo divorzio" já é possivel na Italia, desde que exista consentimento mutuo e que os conjuges estejam separados há mais de cinco anos. E, sobretudo, que tenham dinheiro para os altos honorarios previstos em lei para os advogados.

A denuncia do Vaticano

Na Cidade do Vaticano, a reação foi imediata. O orgão oficial da Santa Sé "Osservatore Romano" denunciou o Tratado de Latrão assinado em 1929, pelo qual o Estado italiano se comprometia a manter a proibição do divorcio no país.
Em Sidney, na Australia, o papa Paulo VI interrompeu suas atividades para manifestar o "profundo desgosto que o divorcio trará às familias italianas, especialmente às crianças e por ser lesivo à concordata entre a Santa Sé e o Estado italiano".

A lei do divorcio é ratificada na Italia

ROMA, 1 - Por 319 votos contra 286, a Camara dos Deputados aprovou esta madrugada a redação final do projeto de lei que institui o divorcio na Italia e que já fora aprovado anteriormente pelas duas casas do Parlamento. A lei entrará em vigor tão logo seja sancionada pelo presidente Giuseppe Saragat, dentro de algumas semanas.
A votação encerrou, no ambito parlamentar, uma das mais acirradas e apaixonantes disputas politicas. Os democrata-cristãos sofreram uma contundente derrota, mas, ao que parece, a estabilidade do governo de coalização presidido por Emilio Colombo não será afetada, porque a questão do divorcio não figura no programa de governo e cada partido votou como quis.
Os democrata-cristãos, apesar de derrotados, não acreditam ter perdido definitivamente a batalha pelo divorcio e se articulam para submeter a nova lei a um referendo popular, medida prevista pela legislação italiana. Julgam que, com o apoio dos monarquistas e dos neofacistas, conseguirão meio milhão de assinaturas necessarias à convocação do plebiscito. Tendo em vista a longa tramitação prevista pela Constituição para a convocação dessas consultas populares, o eventual referendo para o divorcio não poderia decorrer antes de 1972.

Papa e Vaticano

A aprovação, em redação final, do projeto de lei do divorcio suscitou imediata reação do Vaticano. O "Obsservatore Romano", orgão oficial da Santa Sé, denunciou a violação do Tratado do Latrão, firmado entre o Estado Italiano e a Igreja, em 1929.
"Com esta lei, viola-se o compromisso solenemente sancionado pela propria Concordata. A solidez da familia, sancionada por leis às quais a Concordata acrescentou o valor de um compromisso solene de carater internacional, foi negada hoje pela primeira vez em seu principio e comprometida até em seus fundamentos - acrescenta o jornal.
De outro lado, um comunicado do Vaticano assinala que o Papa Paulo VI recebeu a noticia da aprovação da lei na Australia com "profunda dor". O comunicado acrescenta que a noticia, embora não fosse inesperada, "causou profunda dor ao Santo Padre por dois motivos: primeiro pelo problema que o divorcio traz para a familia e, particularmente, para as crianças, e segundo porque esta lei atenta contra o acordo estabelecido entre o Vaticano e o Estado, o que é de fundamental importancia".

Fala Dell'Acqua

De seu lado, o vigario papal para a diocese de Roma, cardeal Angelo Dell'Acqua, disse que "o centro do catolicismo estava mortificado pela legalização do divorcio". O prelado deu a entender que os romanos sentiam "amargura e decepção" por uma lei "que não pode servir ao verdadeiro progresso da nação, já que deteriora o sagrado conceito da familia". Paralelamente, circulavam versões segundo as quais o Vaticano estava preparando uma energica nota de protesto ao governo italiano, assinalando que a aprovação da lei representa a violação unilateral da Concordata de 1929. Informava-se que o secretario de Estado do Vaticano, cardeal Jean Villot, estava dando os ultimos retoques a esse protesto formal. Oficialmente, tais versões não foram confirmadas.
Embora os observadores considerem energicos os protestos da Igreja, assinalam que nem a nota do Vaticano relativa à declaração do Papa, nem o editorial do "Osservatore Romano", nem a manifestação pessoal do cardeal Dell'Acqua procuram estimular o povo a favor de um eventual referendo para anular a lei.
Até a aprovação da lei, e apesar de o matrimonio ter recebido condição de instituto civil pelo Tratado do Latrão, as questões de dissolução de casamentos haviam sido deixadas à jurisdição do Vaticano, que as dirimia por intermedio do Tribunal da Sagrada Rota.

O "Piccolo divorzio"

O projeto que instituiu o divorcio (chamado "piccolo divorzio" - pequeno divorcio) foi apresentado há cinco anos pelos deputados Loris Fortuna, socialista, e Antonio Basilini, liberal. Ele prevê o divorcio nos seguintes casos:
1 - Quando um dos conjuges é condenado à prisão perpetua ou à reclusão por mais de 15 anos.
2 - Quando um dos conjuges cometeu delitos sexuais na sua propria familia, ou forçou esposa ou filhos à prostituição.
3 - Quando um dos conjuges tentou matar o outro ou um dos filhos do casal.
4 - Quando um dos conjuges tiver sido absolvido de um desses delitos por debilidade mental.
5 - Quando um dos conjuges, estrangeiro, obteve o divorcio no seu país de origem.
6 - Quando o matrimonio não foi consumado.
7 - Quando há separação legal há mais de cinco anos. Se um dos conjuges se opõe ao divorcio , a duração da separação preliminar se estende a seis anos e a sete, se o conjuge culpado é quem pede o divorcio.
Esta ultima condição permitiu afirmar que o pequeno divorcio, na realidade, nada tem de pequeno, porque pode abranger todos os que estiverem separados.

Caro e demorado

O processo de obtenção do divorcio, segundo advogados e outros especialistas, será simples, mas muito demorado, principalmente em razão do acumulo de demandas, já que, segundo se prevê, pelo menos um milhão de italianos recorrerão aos tribunais. O custo de um ação de divorcio, de outro lado, será caro: custará de um minimo de 400 mil liras (670 dolares) a um maximo de 1 milhão e 200 mil liras (2 mil dolares), ou seja, um gasto medio de 800 mil liras (mil e 200 dolares). Uma demanda dessa natureza, do seu ajuizamento à sentença, poderia durar de seis meses a cinco anos.

Declaração do Vaticano

Cidade do Vaticano, 1 - O Papa Paulo VI interrompeu hoje suas atividades na Australia para denunciar a lei do divorcio na Italia, que considera nociva a vida familiar e lesiva aos acordos entre o Vaticano e o Estado Italiano, informou a Santa Sé.
O sumo pontifice expressou seu "profundo desgosto" ante a aprovação parlamentar do projeto de lei que legaliza o divorcio na Italia.
O Vaticano informou ter recebido os comentarios do sumo pontifice diretamente de Sydney.
A mensagem papal insinua que ele não considera que a questão tenha concluido no nivel diplomatico.
A declaração do Vaticano diz:
"A noticia, embora não inesperada, causou profundo sofrimento ao santo padre, por duas razões:
Pelos danos muito graves que o divorcio trará as familias italianas e especialmente às crianças, e tambem porque a Santa Sé, como já assinalou, apoiando-se numa argumentação ampla e serena, considera que a lei atual é lesiva para a concordata de 1929, numa materia que para a Santa Sé, é de uma importancia fundamental.



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