A "BORBULHA" NUCLEAR AINDA AMEAÇA

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 01 de abril de 1979

Fontes do governo norte-americano informaram ontem a noite que poderia ser ordenada uma retirada maciça da população da área próxima à usina nuclear de Three Mile Island, na Pensilvânia, se os técnicos resolverem levar a cabo uma arriscada operação para eliminar a crítica "borbulha" de gás radiativo do reator avariado. Engenheiros da Metropolitan Edison, que opera a usina, disseram que têm meios para eliminar a "borbulha", mas há o risco de uma explosão (química) de hidrogênio que destruiria o edifício de proteção do reator, liberando quantidades incontroláveis de radiação.
Ontem, conseguiu-se reduzir em um terço o tamanho da "borbulha" e a temperatura do núcleo do reator diminuiu consideravelmente, segundo informações da administração da usina. Mas, conforme outras fontes, isso não seria suficiente para afastar o perigo de derretimento total do reator (catástrofe equivalente à explosão de uma bomba de nêutrons, que destruiria toda vida animal e vegetal numa extensa área).
O porta-voz da Comissão Reguladora Nuclear (NRC) dos Estados Unidos, Frank Ingram, anunciou que o acidente ocorrido quarta-feira na usina de Three Mile Island pode ver atribuído à fusão incontrolada de material físsil no núcleo do reator, por falha na refrigeração, o que danificou o sistema, provocando a liberação de doses letais de radiação, que até agora não cessaram.
Harold Denton, diretor de operações da NRC, enviado especialmente pelo presidente Jimmy Carter a Harrisburg, admitiu que "este é sem dúvida alguma o mais sério acidente no programa de energia nuclear privada". Afirmou que uma fusão não provocaria mortes imediatas, mas "câncer latente, contaminação da terra e graves prejuízos econômicos".

Three Mile perto da "explosão"

A usina da Harrisburg corre o risco de transformar-se numa espécie de bomba nêutrons

WASHINGTON - Uma parede de tijolos especiais começou a ser levantada no reator avariado da usina nuclear de Three Mile Island, que desde quarta-feira ameaça centenas de milhares de pessoas com a lenta e agonizante morte por radiação, informou ontem um porta-voz da Comissão Reguladora Nuclear (NRC), Frank Ingram.
O motivo aparente da construção dessa parede de proteção é o perigo de que, tendo ocorrido uma explosão de hidrogênio no prédio do reator, que foi a causa do acidente em Three Mile Island, a próxima sequência do drama de Three Mile Island seja uma fusão do caroço do reator - o "derretimento total" admitido desde anteontem pela mesma NRC, embora até ontem altas autoridades dessa comissão federal ainda considerassem a possibilidade "remota".

Bomba de nêutron

O "derretimento total", ou fusão, teria o efeito aproximado da explosão de uma bomba de nêutron, que no jargão científico-militar do Pentágono, é chamada de "bomba de radiação reforçada", isto é, uma explosão pequena, se comparada com o poder da carga explosiva, mas com uma carga radiativa dezenas de vezes maior em relação ás bombas nucleares "convencionais".
Segundo o diretor de operações da NRC, Harold Denton, enviado especialmente pelo presidente Jimmy Carter e Three Mile Island para assessorar os técnicos da Metropolitan Edison Co., proprietário da usina, "este é sem duvida alguma o mais sério acidente no programa de energia nuclear privada". Denton declarou que a fusão do caroço do reator é "a pior coisa possível" e explicou que isso não causaria mortes imediatas, mas "câncer latente, contaminação da terra e pesados danos econômicos".
Harold Denton acrescentou que "não há um perigo iminente" e que considera a fusão do caroço, ou "derretimento total", uma possibilidade "muito remota". Porém, afirmou que "estamos preocupados com a situação do combustível no caroço do reator", pois "houve extenso dano ao combustível" e, além disso, "há uma bolha de gás no reator, de maneira que precisamos resfriá-lo".

Minibomba-H

A bolha de gás, provavelmente, teria sido causada por uma explosão de hidrogênio no interior do reator - explosão que é o segundo pior tipo de acidente previsível numa usina nuclear (o primeiro é o "derretimento total"). À 1h (03 em Brasília) de ontem, a NRC informou que estudava a possibilidade de haver ocorrido a explosão de hidrogênio, o que ressaltaria a gravidade do drama de Three Mile Island.
Segundo o porta-voz Frank Ingram, a Metropolitan descobriu, anteontem, ao verificar dados anteriores, que a pressão dentro do reator atingirá 30 libras por polegada quadrada, a metade da pressão que as paredes do reator podem suportar, por volta das 13h50 (15h50 em Brasília) de quarta-feira, ou seja, dez horas após ser detetado o primeiro vazamento de radiação na usina situada perto de Harrisburg, capital da Pensilvânia.
Ingram explicou que a NRC está estudando a possibilidade de o aumento de pressão ter sido provocado pela explosão de hidrogênio no compartimento lacrado do reator - explosão que seria algo semelhante à de uma bomba de hidrogênio.

Explicação plausivel

De acordo com os especialistas, é possível que os tubos feitos de uma liga de zircão que circundam os recipientes que contêm urânio para abastecer o reator se tenham aquecido até duas vezes acima da temperatura normal, que é de 315 graus, devido a uma falha no sistema de refrigeração. Ao chegar a temperaturas entre 704 e 760 graus centígrados, a liga de zircão fundiu-se com a água, produzindo óxico de zircônio e hidrogênio. Daí, segundo os especialistas, é possível que o gás tenha penetrado na parte lacrada do reator e uma faísca, cuja causa é ignorada, tenha causado a explosão.
Ingram disse que essa versão não pode ser confirmada ainda, mas é a explicação mais plausível para o vazamento radiativo ocorrido na usina.
O pessoal de Three Mile Island espera reduzir a pressão dentro do reator, bombeando o hidrogênio para um "recombinador" situado num prédio anexo, onde o gás será novamente processado, transformando-se em água. A parede de proteção, conforme essa versão fornecida oficialmente, está sendo erguida em volta do "recombinador", a fim de proteger os trabalhadores da radiatividade do hidrogênio.
Outro porta-voz da comissão, Kenneth Clark, disse que o reator encontrava-se ontem estável, na fase dois, sem se aquecer nem desaquecer. As autoridades acrescentaram que os níveis de radiação na atmosfera nas proximidades da usina estão "muito baixos" e que a qualidade do leite em seis laticínios da região foi inspecionada e não apresentava sinais de contaminação.

Minimização

O diretor de operações da NRC, Harold Denton, numa entrevista à imprensa concedida após chegar a Harrisburg e conferenciar com o governador da Pensilvânia, Dick Thornburg, anteontem à noite, minimizou a ameaça à saúde da população dos arredores da usina, dizendo que os níveis da radiação até então disseminados por Three Mile Island causariam de "um a dois décimos de perigo latente para a saúde".
Denton foi enviado a Harrisburg especialmente pelo presidente Jimmy Carter, que anteontem se pronunciou pela primeira vez a respeito do problema. Conversando com um grupo de editores de jornais, Carter afirmou ser "provável" que o acidente em Three Mile Island leve "inexoravemente a mecanismos e normas de segurança mais rigorosos" para as usinas nucleares norte-americanas.

Receio

Entretanto, os senadores Richard Schwelker e John Heinz, os dois da Pensilvânia, e o senhor Gary Hart, presidente da subcomissão do Senado sobre Normas Nucleares, disseram recear que o caroço do reator derreta, emitindo grandes quantidades de gases radioativos. Hart afirmou que persiste "uma situação potencialmente catastrófica" na usina avariada e que poderia continuar emitindo radiação para a atmosfera. Os senadores conversaram com a imprensa depois de discutirem o assunto com membros da Comissão Reguladora Nuclear.
O secretário de Imprensa de Carter, Jody Powell, por seu lado afirmou que o presidente determinara ao presente da NRC, Joseph Hendrie, que desse total prioridade à crise de Harrisburg e criou uma comissão presidencial especial para coordenar os esforços governamentais. Acrescentou que o governo federal se prepara para a evacuação das imediações da usina, caso seja necessária, e que as autoridades estaduais e municipais já têm planos de emergência para tal situação.
O governador Dick Thornburg, entretanto, não só disse que ainda não vê motivos para retirar os residentes da área atingida, a não ser mulheres grávidas e crianças em idade pré-escolar, o que não passou, contudo, de uma recomendação, como também suspendeu o pedido para que os moradores numa área de 16 quilômetros de raio a partir da usina se mantivessem em suas casas, fechados, com os ventiladores ligados, até segunda ordem.

Toque de recolher

No entanto, os cerca de 100 mil residentes nessa área de 16 quilômetros, ontem abandonavam a região com seus pertences procurando lugares que imaginam mais seguros do que as imediações de Three Mile Island.
Os povoados de Goldsboro e Middletown ficaram praticamente desertos e seus prefeitos decretaram o toque de recolher, para evitar que as casas vazias fossem saqueadas por delinquentes.
De dez a quinze locais foram transformados em abrigos de emergência para as mulheres grávidas e as crianças em idade pré-escolar, que são as mais suscetiveis de sofrerem os efeitos da radiação. Ontem no ginásio de hockey de Hershey, quase 200 pessoas, entre mulheres grávidas e crianças, encontravam-se alojadas à espera de poderem voltar para seus lares, quando e se o drama de Three Mile Island terminar.
E apesar de tudo, o secretário de Energia, James Schlesinger, declarou anteontem, ante o subcomitê de Energia da Câmara que não pretendia descartar o uso da energia nuclear devido ao caso de Harrisburg.

Como ocorreu o acidente

O acidente nuclear na usina de Three Mile Island não foi o pior possível de ocorrer em uma instalação termo-nuclear, mas foi o mais grave ocorrido até hoje, e contém todos os fatores necessários para se transformar na maior catástrofe possível, caso as medidas de emergência adotadas não se mostrem eficazes.
O problema ali ocorrido é conhecido como "perda de refrigerante", isto é, o circuito primário de refrigeração das barras de dióxido de urânio (no local onde se dá a fissão), sofreu algum problema e a circulação d'água foi interrompida. O sistema de refrigeração de emergência não funcionou e as barras de combustíveis se fundiram, com à interrupção da retirada do calor do caroço do reator.
No caso americano, até o momento fundiram-se apenas parte das 100 toneladas de urânio e caso todas as barras venham a se fundir, comprometendo o circuito secundário onde passa o vapor que aciona as turbinas, ocorrerá a explosão térmica do caroço. Isto seria o mais grave acidente possível de acontecer em uma usina nuclear. De acordo com um estudo recente feito pela Fundação Ford, caso isto ocorra, 3.300 pessoas morrerão instantaneamente, 90 mil contrairiam câncer, 30 mil sofreriam defeitos genéticos e 240 mil teriam nódulos de tireóide dentro de uma população de 10 milhões de pessoas que residissem a uma distância de até 500 milhas do local do acidente. No estágio que está agora, a contaminação já ocorre, só que numa proporção bem menor.

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