O CÃO QUE ABRIU A PORTA AO LOBO


Publicado na Folha da Manhã, segunda-feira, 9 de janeiro de 1928

Neste texto foi mantida a grafia original

Em Middletown, Nova Jersey, um lobo, fugido da collecção de féras de um particular, penetrou numa casa e matou uma creança de dois annos e meio. Não ha nada de extraordinario tratando-se de um lobo.
O facto extraordinario é que nessa casa vivia Trix, uma cadella tão forte como o lobo, que em logar de defender o filhinho do seu amo, abriu calmamente a porta ao assassino e contemplou o ataque, a maxima indifferença.
Houve duas testemunhas da tragedia, e não cabe a menor duvida sobre o papel infame que nella desempenhou o cão.
A creança morta pelo lobo chamava-se Tommy Holton, e era filha de Oliverio W. Holton, dono de um jardim zoologico particular, que occupa grande parte da sua propriedade.
Naquella tarde fatal, o senhor Holton e dois dos seus empregados achavam-se e no jardim zoologico, concertando a cerca do recinto que encerrava a um casal de lobos.
Ao passar os animaes a uma jaula uma loba de tres annos conseguiu fugir.
O senhor Holton não se alarmou, posto que todo o jardim está rodeado por uma cerca de arame farpado.
Porém, nessa tarde o destino era curiosamente adverso ao menino que deveria ser a victima, como foi provado por uma série de lamentaveis circumstancias.
Um momento antes, um dos empregados tinha entrado no jardim com a comida para os animaes e tinha deixado a porta da cerca aberta.
Nem mesmo esta circumstancia parecia inquietante, pois ambos os lobos tinham nascido no captiveiro, e embora a loba que fugira fosse um animal de grande desenvolvimento, sempre manifestara indole pacifica, ao ponto de parecer domesticada.
Desde a porta da cerca ha um caminho que conduz, através do bosque, à casa Holton, situada a umas quatro quadras. A loba, em logar de occultar-se no bosque, dirigiu-se à casa.
No jardim, situado em frente à casa, encontrava-se Tommy brincando com Henry, um menino de seis annos, filho de uma senhora que trabalhava na casa da senhora Alma Mazza.
Por casualidade, nessa tarde só se encontrava em casa a senhora Mazza.
Esta ouviu gritos, correu para fóra e se encontrou com Henrique que vinha correndo, para dizer-lhe que "um canzarrão estava mordendo a Tommy".
A senhora sahiu e apenas acreditou no que via. Em absoluto silencio, um grande lobo rodeava a creança, como se brincasse com ella. Os cães ladram quando atacam; porém o lobo furtivo atacava silenciosamente.
A senhora Mazza viu-se numa situação horrivel. Si nada fizesse, o lobo levaria a creança comsigo. Mas, nessas condições que poderia fazer? Em casa havia uma espingarda, mas se fosse buscal-a, provavelmente voltaria demasiado tarde.
É perigoso molestar a um cãozinho que tem um osso. Sem duvida, essa mulher, desarmada, deveria arrancar uma presa das garras de um grande lobo, coisa que intimidaria ao homem mais resoluto.
Sem perder tempo, adeantou-se correndo e agarrou a féra a pontapés. Que damno podiam causar os pés de uma mulher calçados de chinellos?
O animal largou a presa, voltou-se e grunhiu ameaçadoramente.
A mulher percebeu que não tinha feito damno algum ao animal, porém continuou descarregando pontapés na cabeça do lobo.
A féra retrocedeu. A mulher levantou o menino e fugiu com elle para casa.
O menino tinha alguns arranhões. A mulher deixou a creança no chão e correu para um quarto ao lado, onde estava o telephone, para pedir auxilio.
Outra vez o destino adverso se interpõe nesse momento vital: o telephone não funcionava.
Entretanto Tommy, voltando-se a si do susto, poz-se a chorar desesperadamente. Os seus gritos attrahiram ao lobo.
A senhora Mazza viu através dos vidros da porta a sombra da féra. Nesse momento decidiu abandonar o telephone para levar os meninos no andar superior, mas, suspirando de allivio, viu que Trix, o grande cão policial, favorito e guarda da casa, descia lentamente pelas escadas attrahido pelos gritos da creança.
Trix é um animal do tamanho de um lobo e muito se parece com elle. Até esse dia tinha sido um animal manso, carinhoso e brincalhão para com as creanças, e excellente cão de guarda.
A mulher esperou que a cadella, ao notar a presença da féra, começasse a soltar latidos furiosos.
Trix, ao contrario do que a mulher esperava, quedou-se immovel por um momento; depois começou a mover a cauda e se adeantou para a porta, sempre em silencio.
Atraves da fenda da porta os dois animaes se cheiraram. Tommy parou de chorar um momento, e a mulher notou que a loba emitia um grunhido suave.
Trix movia a cauda cada vez mais rapidamente, porém sem latir nem grunhir.
Em seguida começou a parte incrivel da tragedia.
- Está-lhe abrindo a porta! exclamou Henry. E era assim mesmo.
A porta se fechava com um ferrolho de contrapeso, e uma das muitas habilidades que se tinha ensinado a Trix consistia em abrir a porta, baixando o extremo livre do ferrolho, com a pata e o focinho.
Apenas aberta a porta, o lobo penetrou na casa. Conhecia a sua presa. Sem vacillar dirigiu-se para Tommy e o agarrou com os dentes.
A senhora Mazz largou o telephone, e correu para apoderar-se da espingarda. Esta se achava no seu logar. Aqui apparece mais uma circumstasncia fatal: a espingarda estava descarregada. A mulher procurou a caixa de balas, e novamente o destino zombou-se della: alguem tinha retirado a caixa do seu logar.
Com a arma descarregada, a pobre senhora se precipitou no jardim. A loba, cravava os dentes na creança aterrorizada.
A senhora Mazza atacou violentamente. Agarrou a espingarda pela cano e descarregou uma pancada na cabeça do animal, a féra largou menino e fugiu.
A senhora levantou a creança ensanguentada e correu para casa, ao mesmo que lançava gritos agudos que chegaram a ser ouvidos pelo senhor Holton e os seus empregados.
Minutos depois, estes ultimos encontraram a senhora tratando em vão de conter o sangue que jorrava de duas horriveis feridas, uma no peito e a outra no ventre da desventurada creança. Ao ver chegar socorros, desmaiou.
O menino foi transportaddo ao Hospital Woodley. Os cirurgiões verificaram que tinha o ventre e os pulmões profundamente interessados pelos dentes da féra. Morreu poucas horas depois.
Era dever de Holton capturar a loba para evitar uma nova desgraça.
Felizmente, o golpe que lhe tinha dado a senhora Mazza foi certeiro.
Pouco depois foi encontrada a féra morta, com o cranio fracturado.

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