MOZART TRAZ MITO DA MORTE DO SEDUTOR


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 15 de novembro de 1995


João Batista Natali

Don Juan é um dos personagens mais intrigantes na música -no mínimo 80 composições- e na literatura Da Reportagem Local ''Don Giovanni'' encarna o mito da sedução que não pode ser levada às últimas consequências, e que em razão disso está acoplada à punição do sedutor pelo inferno e pela morte.

O tema é um dos mais recorrentes no teatro, na música e na literatura. Surgiu por volta de 1620, com o monge e dramaturgo Tirso de Molina (1580-1648). A abundância bibliográfica que o enredo original desencadeou é o mais nítido sintoma de o quanto o donjuanismo é ao mesmo tempo problemático e fascinante.

Levantamento antigo indica existirem em torno dele 82 versões teatrais ou literárias em línguas ibéricas, 26 em italiano, 95 em francês e 82 em alemão. No cinema, há no mínimo 14 versões depois de uma primeira, na Espanha, em 1906.

Quanto à música, 80 compositores mergulharam no mito para a produção de poemas sinfônicos, cantatas profanas, serenatas e, evidentemente, também óperas. Mozart, o autor da mais conhecida de todas elas, associou-se ao libretista Lorenzo Da Ponte (1749-1835) para um ''Don Giovanni'' que agora encerra a temporada lírica paulistana. Embora seja de uma extrema beleza melódica, em termos puramente teatrais ''Don Giovanni'' não possui uma estrutura tão rígida quanto ''As Bodas de Figaro''(1786), a simetria de ''Cosi Fan Tutte'' (1791) ou um itinerário tão bem sucedido quanto ''A Flauta Mágica'' (1791). Ou seja, é na musicografia mozartiana uma ''ópera defeituosa'', conforme os termos talvez excessivamente fortes do crítico francês Dominique Jameux. Mas o essencial do enredo moralizador é mantido em sua integralidade. Em Tirso de Molina e seus seguidores imediatos, o pecado de don Juan estava na negação sistemática e jocosa do vínculo monogâmico, no qual, em boa parte, se assentavam os parâmetros morais da contra-reforma.

O personagem pintado por Da Ponte é mais ''moderno'' em sua transgressão. ''Don Giovanni'' é aquele que desafia uma lei segundo a qual a terra e as mulheres têm dono. Sem pretender se contrapor ao princípio da propriedade, já que é um bom aristocrata, o libertino se entrega a tentativas de pôr em cheque o contrato conjugal. Há ainda em ''Don Giovanni'' o prazer da quantificação de suas conquistas, catalogadas pelo criado Leporello. São cem na França e 1.003 na Espanha. Depara-se, ao final de uma carreira tão profícua, com o personagem do Comendador, cuja filha ele procura seduzir e a quem mata em duelo. Sob a forma de estátua, o Comendador volta à cena para punir o sedutor e destruí-lo com as chamas da danação.

 

''DON GIOVANNI'' ACREDITA QUE É UM DEUS

Ópera de Mozart, dirigida por Isaac Karabtchevsky, encerra temporada lírica de 95 no Teatro Municipal

João Batista Natali

Da Reportagem Local

O libertino ''Don Giovanni'', retratado pela ópera de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), está com o saudável hábito de frequentar as rarefeitas cenas líricas brasileiras. Nos últimos seis anos, foi objeto de uma montagem de Sérgio Bianchi, em Curitiba, uma outra de Gianni Ratto, no Rio, e ainda uma terceira de Bia Lessa, em Fortaleza, que em agosto de 1992 foi encenada em São Paulo no Teatro Municipal. A obra, estreada em Praga em 1787, volta ao Municipal a partir de hoje, para oito récitas com direção musical do brasileiro Isaac Karabtchevsky, 61, titular da orquestra do teatro paulistano e também da orquestra do Teatro La Fenice, de Veneza.

A direção cênica é da italiana Maria Francesca Siciliani, com currículo por Bolonha e Catânia, antes de se fixar no Conservatório Santa Cecília, de Roma. Esta é sua terceira montagem de ''Don Giovanni''. Para ela, ''há uma profundidade filosófica no mito do sedutor, cujo prazer não se esgota na libertinagem, como ocorre com Giacomo Casanova''. Ao fim de um século 18 -quando Da Ponte escreveu o libreto-, argumenta, uma das questões centrais estava na existência de Deus, e ''Don Giovanni não é um agnóstico porque acredita encarnar ele próprio a divindade''. O barítono norte-americano Justino Diaz, 55, calcula já ter participado de duas dezenas de montagens desta ópera e concebe o papel título como o de um delírio sem freios, por parte de um libertino que se esforça para desconhecer a possibilidade de se dar mal. Os papéis femininos, diz ele, são para Don Giovanni meros veículos do trajeto desse declive que o leva à morte. Por mais que nem sempre essas sutilezas estejam presentes, o fato é que a montagem promete não chocar porque é de inequívoco tradicionalismo cênico. Os figurinos de época foram alugados ao Teatro Colón, de Buenos Aires.

Os cenários, de J.C. Serroni, são feitos com base em arcos clássicos e a iluminação segue à risca as indicações das cenas de penumbra. Durante o ensaio geral de anteontem, o maestro Karabtchevsky demonstrou procurar obter maior efeito de dramaticidade por meio da ênfase no tempo lento, com a acentuação de acordes espaçados. A montagem, que custou R$ 250 mil segundo a Secretaria Municipal da Cultura, traz no primeiro elenco, além de Justino Diaz, a eslovena Ana Pusar (Donna Anna), o austríaco de origem inglesa John Dicke (Don Ottavio), a norte-americana Patricia Wise e o italiano Renato Girolami (Leporello). Os brasileiros Rosana Lamosa (Zerlina) e Sandro Bodilon (Masetto) completam o elenco. No elenco B estão o ucraniano Vladimir Poltorak e os brasileiros Adélia Issa, Fernando Portari, José Gallisa, Luiza de Moura, Sandro Christopher, Israel Pessoa e Andrea Ferreira.


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