João
Batista Natali
Don
Juan é um dos personagens mais intrigantes na música -no
mínimo 80 composições- e na literatura Da Reportagem Local
''Don Giovanni'' encarna o mito da sedução que não pode
ser levada às últimas consequências, e que em razão disso
está acoplada à punição do sedutor pelo inferno e pela
morte.
O
tema é um dos mais recorrentes no teatro, na música e
na literatura. Surgiu por volta de 1620, com o monge e
dramaturgo Tirso de Molina (1580-1648). A abundância bibliográfica
que o enredo original desencadeou é o mais nítido sintoma
de o quanto o donjuanismo é ao mesmo tempo problemático
e fascinante.
Levantamento
antigo indica existirem em torno dele 82 versões teatrais
ou literárias em línguas ibéricas, 26 em italiano, 95
em francês e 82 em alemão. No cinema, há no mínimo 14
versões depois de uma primeira, na Espanha, em 1906.
Quanto
à música, 80 compositores mergulharam no mito para a produção
de poemas sinfônicos, cantatas profanas, serenatas e,
evidentemente, também óperas. Mozart, o autor da mais
conhecida de todas elas, associou-se ao libretista Lorenzo
Da Ponte (1749-1835) para um ''Don Giovanni'' que agora
encerra a temporada lírica paulistana. Embora seja de
uma extrema beleza melódica, em termos puramente teatrais
''Don Giovanni'' não possui uma estrutura tão rígida quanto
''As Bodas de Figaro''(1786), a simetria de ''Cosi Fan
Tutte'' (1791) ou um itinerário tão bem sucedido quanto
''A Flauta Mágica'' (1791). Ou seja, é na musicografia
mozartiana uma ''ópera defeituosa'', conforme os termos
talvez excessivamente fortes do crítico francês Dominique
Jameux. Mas o essencial do enredo moralizador é mantido
em sua integralidade. Em Tirso de Molina e seus seguidores
imediatos, o pecado de don Juan estava na negação sistemática
e jocosa do vínculo monogâmico, no qual, em boa parte,
se assentavam os parâmetros morais da contra-reforma.
O
personagem pintado por Da Ponte é mais ''moderno'' em
sua transgressão. ''Don Giovanni'' é aquele que desafia
uma lei segundo a qual a terra e as mulheres têm dono.
Sem pretender se contrapor ao princípio da propriedade,
já que é um bom aristocrata, o libertino se entrega a
tentativas de pôr em cheque o contrato conjugal. Há ainda
em ''Don Giovanni'' o prazer da quantificação de suas
conquistas, catalogadas pelo criado Leporello. São cem
na França e 1.003 na Espanha. Depara-se, ao final de uma
carreira tão profícua, com o personagem do Comendador,
cuja filha ele procura seduzir e a quem mata em duelo.
Sob a forma de estátua, o Comendador volta à cena para
punir o sedutor e destruí-lo com as chamas da danação.
''DON
GIOVANNI'' ACREDITA QUE É UM DEUS
Ópera
de Mozart, dirigida por Isaac Karabtchevsky, encerra temporada
lírica de 95 no Teatro Municipal
João
Batista Natali
Da
Reportagem Local
O
libertino ''Don Giovanni'', retratado pela ópera de Wolfgang
Amadeus Mozart (1756-1791), está com o saudável hábito
de frequentar as rarefeitas cenas líricas brasileiras.
Nos últimos seis anos, foi objeto de uma montagem de Sérgio
Bianchi, em Curitiba, uma outra de Gianni Ratto, no Rio,
e ainda uma terceira de Bia Lessa, em Fortaleza, que em
agosto de 1992 foi encenada em São Paulo no Teatro Municipal.
A obra, estreada em Praga em 1787, volta ao Municipal
a partir de hoje, para oito récitas com direção musical
do brasileiro Isaac Karabtchevsky, 61, titular da orquestra
do teatro paulistano e também da orquestra do Teatro La
Fenice, de Veneza.
A
direção cênica é da italiana Maria Francesca Siciliani,
com currículo por Bolonha e Catânia, antes de se fixar
no Conservatório Santa Cecília, de Roma. Esta é sua terceira
montagem de ''Don Giovanni''. Para ela, ''há uma profundidade
filosófica no mito do sedutor, cujo prazer não se esgota
na libertinagem, como ocorre com Giacomo Casanova''. Ao
fim de um século 18 -quando Da Ponte escreveu o libreto-,
argumenta, uma das questões centrais estava na existência
de Deus, e ''Don Giovanni não é um agnóstico porque acredita
encarnar ele próprio a divindade''. O barítono norte-americano
Justino Diaz, 55, calcula já ter participado de duas dezenas
de montagens desta ópera e concebe o papel título como
o de um delírio sem freios, por parte de um libertino
que se esforça para desconhecer a possibilidade de se
dar mal. Os papéis femininos, diz ele, são para Don Giovanni
meros veículos do trajeto desse declive que o leva à morte.
Por mais que nem sempre essas sutilezas estejam presentes,
o fato é que a montagem promete não chocar porque é de
inequívoco tradicionalismo cênico. Os figurinos de época
foram alugados ao Teatro Colón, de Buenos Aires.
Os
cenários, de J.C. Serroni, são feitos com base em arcos
clássicos e a iluminação segue à risca as indicações das
cenas de penumbra. Durante o ensaio geral de anteontem,
o maestro Karabtchevsky demonstrou procurar obter maior
efeito de dramaticidade por meio da ênfase no tempo lento,
com a acentuação de acordes espaçados. A montagem, que
custou R$ 250 mil segundo a Secretaria Municipal da Cultura,
traz no primeiro elenco, além de Justino Diaz, a eslovena
Ana Pusar (Donna Anna), o austríaco de origem inglesa
John Dicke (Don Ottavio), a norte-americana Patricia Wise
e o italiano Renato Girolami (Leporello). Os brasileiros
Rosana Lamosa (Zerlina) e Sandro Bodilon (Masetto) completam
o elenco. No elenco B estão o ucraniano Vladimir Poltorak
e os brasileiros Adélia Issa, Fernando Portari, José Gallisa,
Luiza de Moura, Sandro Christopher, Israel Pessoa e Andrea
Ferreira.